1 A EDUCAÇÃO NO DESEJO: A LINGUAGEM E A ÉTICA EM EMMANUEL LÉVINAS
MENEZES,
Magali Mendes de – FEEVALE GT-17:
Filosofia da Educação Introdução
Emmanuel Lévinas é considerado um dos mais importantes pensadores do século XX. Entre suas análises encontram-se questões relevantes para pensarmos a contemporaneidade, tais como Ética, Justiça, Conhecimento, relações de gênero, entre outros temas. O fato de ser um profundo estudioso dos textos talmúdicos isso traz a sua escrita uma originalidade advinda de uma tradição eminentemente diferente da grega. O fato de perder seus familiares durante o nazismo lhe forneceu argumentos para acreditar numa revisão profunda do pensamento filosófico. Angustiado pela perda de sentido no humano, acreditava que este sentido só poderia ser buscado no compromisso ético. Não uma ética racionalista, que justificasse o dever ser, mas uma ética que nasceria anterior a própria consciência humana. Esta ética encarnada faz do Outro a questão central de toda sua Filosofia. Lévinas se preocupou profundamente com as razões de uma Razão tornar-se tão onipotente. Seu pensamento visa demonstrar o quanto a história do pensamento Ocidental - como uma tradição eminentemente grega - surgiu a partir desse desejo de totalização. A Totalidade, assim neutraliza o poder desagregador da “diferença”. Se analisarmos o pensamento grego, perceberemos a inquietação diante do caos e o esforço para organizá-lo. Este movimento de totalização quer compreender, “à luz” da consciência, o mundo, os outros e o próprio homem, para desse modo, abarcá-lo. O ato de identificar-se com o mundo e com os outros reforça a idéia de um Eu centrado, unificado e profundamente idêntico a si mesmo. Assim, através de uma profunda crítica a este pensamento, Lévinas vai desconstruindo conceitos, caros tanto à Filosofia como à Educação, como a cmpreensão moderna de Sujeito, de Liberdade e a possibilidade da Sociabilidade. Não se apoiando em reflexões pós-estruturalistas, o filósofo constrói sua reflexão utilizando referências presentes na própria filosofia que questiona. A partir da idéia de Bem em Platão, do Infinito em Descartes, da Fenomenologia de Husserl, da essência em Spinoza, ou da 2 crítica à ontologia fundamental de Heidegger, Lévinas nos propõe uma difícil reflexão, permeada muitas vezes por aporias. No entanto, nos surpreende o desconhecimento deste pensador na Educação. Embora não tivesse a preocupação em abordar esta temática, encontramos em seus textos referenciais importantes para que possamos compreender melhor este espaço que denominamos Educação. Assim, nos inquietamos com a forma que teorias vão assumindo importância em determinadas épocas e questionamos porque alguns autores/as fundamentam pesquisas e reflexões enquanto outros são profundamente ignorados. Para tanto, a preocupação central deste artigo será resgatar algumas questões trazidas por Lévinas, buscando contribuir no diálogo entre Filosofia e Educação, a partir da análise da linguagem e sua intrínseca relação com a Ética. A linguagem é uma temática central na obra de Emmanuel Lévinas. Não apenas porque todo seu pensamento atravessa a questão da linguagem fazendo dela conteúdo de análise, mas porque é a própria linguagem que se faz sujeito, ou seja, a linguagem é a trama, o “lugar” onde todo sujeito emerge. Seu pensamento demonstra o esforço de uma linguagem - sempre traidora de si mesma - em expressar o sentido do humano no encontro da palavra com sua inspiração. Não de qualquer palavra que se faz doadora de significado, instauradora do sentido, soberana em seu monólogo de apresentação do mundo como um grande espetáculo. A palavra apresentada por Lévinas não é avessa à outra palavra, como se bastasse a si mesma. A palavra também é escuta, por isso hospitalidade. Lévinas propõe uma palavra como metáfora para falar da ambigüidade do que está ausente mas que, ao mesmo tempo, traz inspiração ao texto para que possa, através dele, fazer justiça. Esta é a tarefa da Filosofia e diria, da própria Educação: exposta ao drama do querer dizer, tendo a certeza de que sempre há algo ainda a ser dito, desdito, revisto, reconsiderado. A justiça do texto se faz aqui na intriga das palavras que perseguem desesperadamente o sentido último, mas que a todo momento se desfaz mostrando a fragilidade do texto e a onipotência (altura) de sua inspiração. O Outro é a inspiração da fala e o texto é uma das respostas possíveis a esse que exige resposta. Este texto tem o intuito de pensar a palavra como possibilidade de hospitalidade, a palavra em Lévinas é acolhedora, movimento infinito ao Outro. A palavra é, portanto, ensinamento! 3 Que implicações esta análise poderá trazer para a Educação? Palavra que aparece, muitas vezes, como sentido último do próprio ato de educar, pois é através da palavra que inauguramos o conhecimento e o próprio mundo, tornando-o “sólido”. O que significa colocar a palavra sob suspeita e com ela nosso pensar? Para Lévinas, a possibilidade de uma Razão Ética se dá justamente nessa capacidade de desconstruir o próprio pensar. Para isso, é preciso “educar a razão” não mais no sentido que Rousseau ou Kant dão a este termo, mas educar emerge agora do Outro. A Razão é, portanto heterônoma, e Lévinas ao desfazer a autonomia do sujeito moderno nos obriga a pensarmos uma subjetividade “alterizada”, ou seja, atravessada pelo Outro. 1. A palavra que hospeda o Outro “O Dizer é então a fulgurância da significação não substancial vindo romper a estabilidade do tema ou da substância, do logos e do ser – portanto é a própria ordem ética deixando seu vestígio enigmático entre os fenômenos, enquanto franqueza da expressão de um rosto e/ou exposição ao outro” (CALIN e SEBBAH, 2002:15- 16). Ao pensar a palavra, Lévinas descobre que seus hiatos, seus silêncios, não são frutos de uma insuficiência, limitação dos ditos, mas são provocadores da irrupção do próprio tempo. A palavra não surge como um mero signo, abstração de sua realidade concreta, mas como presença viva. “A linguagem tem de excepcional o fato de assistir à sua manifestação. A palavra consiste em explicar-se sobre a palavra, em ser ensinamento. A aparição é uma forma fixa da qual alguém se retirou, ao passo que na linguagem se realiza o afluxo ininterrupto de uma presença que rasga o véu inevitável da sua própria aparição, plástica como toda aparição... assistência do ser à sua presença- a palavra é ensinamento ”( LÉVINAS,1961:99). Neste momento, hospitalidade e acolhida aparecem no texto levinasiano como sinônimos. Lévinas desafia a lógica ocidental, construída a partir de movimentos causais, para mostrar uma origem (anárquica) em que, a possibilidade da acolhida surge antes mesmo do próprio Rosto a ser acolhido. O Rosto não é derivado da acolhida, mas “não há rosto sem acolhida”(DERRIDA,1998:43). Absurda gratuidade que faz do 4 humano uma morada sem portas, fragilizando a preciosa liberdade moderna, apresentando uma subjetividade que não é mais esse lugar com trancas, mas uma abertura completa ao Outro, ao Infinito. “Abordar Outrem no discurso é acolher a sua expressão onde ele ultrapassa a cada instante a idéia que dele tiraria um pensamento[...] o que significa exatamente: ter a idéia do infinito”(LÉVINAS, 1961:43). Assim, a subjetividade não é compreendida como um lugar seguro, pronta para decidir e escolher. Não há escolhas possíveis no acolhimento, este põe em questão a própria liberdade – o que resta é dizer um sim ao Outro que ressoará para sempre. A porta aberta não significa um esvaziamento da subjetividade, ou uma mera inversão de identidades em que agora “eu serei o outro”. O acolhimento permite, por sua vez, um recolhimento, um encontro com o passado e o futuro. “O recolhimento do em-casa está supondo já a acolhida, é a possibilidade da acolhida e não o inverso”(DERRIDA, 1998:46). ö assim que o autor vai tramando essa teia ética em que a “memória” corporal assume uma importância particular. Essa subjetividade possui um corpo vivo, pulsando pela escuta quase atordoante desse Outro que nos chega sem pedir licença. Há aí um grito pela Justiça que não vem apenas do presente, vem do Desejo1 inscrito na memória do tempo, que nunca poderá se fazer presente, por isso é sempre exigente de justiça. Mas para compreendermos isso se faz necessário reconstruir a trajetória traçada por Lévinas, num movimento fenomenológico em que nosso pensador parece ter chegado ao limite do próprio fenômeno: o Rosto. 1.1 O Rosto como Infinito Totalidade e Infinito, uma obra fundamental para compreendermos o pensamento de Lévinas, marca o encontro do Mesmo com o Outro. Todo encontro supõe um deslocamento, sair de seu lugar e ir ao encontro do Outro. O Eu que antes se encontrava na hipocrisia de seu movimento, de um afastamento de si para logo reencontrar-se – movimento feito da saudade de si mesmo – agora, no encontro com o Outro perde seu cais. Essa ferida de uma exposição extrema ao Outro, como uma carne exposta que se sente incomodada a qualquer toque, se faz sem violência, conduzindo o Eu a deixar seu 1 Cf. LÉVINAS, 1961, p. 21- 23: “Na base do desejo comumente interpretado encontrar-se-ia a necessidade; o desejo marcaria um ser indigente e incompleto ou decaído da sua antiga grandeza...O desejo metafísico tem uma outra intenção – deseja o que está além de tudo o que pode simplesmente completá-lo.” 5 “país” sem possibilidade de retorno, seu chez-soi familiar, para descobrir o mundo sempre desconhecido do Outro. O Eu ao encontrar o Outro encontra o Infinito. Lévinas opõe Infinito à Totalidade, visando abalar um modelo de sistema filosófico, em que o Outro é julgado pelos cânones do Mesmo. O encontro não faz desaparecer a separação sempre absoluta entre o Eu e o Outro. Uma separação que não é oposição, nem complemento, mas abismo intransponível, impossibilitando qualquer correlação. A separação produzida pelo Infinito demonstra uma maneira de ser que resiste à totalidade, uma relação assimétrica com o Outro que pode ser percebida até mesmo na experiência mais banal em que, a forma como nos percebemos não é a mesma como percebemos o Outro. Há uma distância provocada pelo que Lévinas chama psiquismo, ou seja, um acontecimento no ser, em que o Eu constrói uma vida interior e é capaz de dizer que é Eu. Não se confunde com mais ninguém se tornando exemplar único de sua espécie, experiência de solidão. “A separação indica a possibilidade para um ente de se instalar e de ter o seu próprio destino, ou seja, de nascer e de morrer sem que o lugar desse nascimento e dessa morte no tempo da história universal contabilize a sua realidade. A interioridade é a própria possibilidade de um nascimento e de uma morte que de modo algum vão buscar o seu significado à história” (LÉVINAS, 1961:48). A interioridade está diretamente ligada à temporalidade de cada um, ao tempo próprio como uma vivência de si mesmo. O nascimento de um Eu que se percebe só, mas em uma solidão que não é necessariamente angustiante, apenas traduz a riqueza da temporalidade, experiência única feita a partir da interioridade. O tempo de cada um não pode ser absorvido por um tempo universal, não há historiografia possível que suporte uma temporalidade idiossincrática. O Outro é “atopos”, qualificação dada a Sócrates por seus interlocutores, ou seja, o inclassificável, de uma originalidade sempre imprevista. Não há mais lugar que possa classificar essa relação ou os sujeitos dessa relação, ela não tem modelo, nem história. Quando a História escreve, registrando o tempo, acaba assumindo a fala dos sujeitos dessa história como se fossem discursos comuns, violentando os rostos que nunca sentem o tempo, ou os fatos, da mesma forma. O histórico, em Lévinas, está ligado a um passado que não consegue mais falar por si só e ao ser resgatado pelo contar da história, perde-se. “O histórico está sempre ausente da sua própria presença” (LÉVINAS, 1961:60). O psiquismo é o princípio de individuação, 6 não apenas de uma matéria que passa a ser diferente da outra, mas de uma interioridade separada, resistindo para não ser absorvida pelo Todo ou pelo Nada. Grito desesperado pela existência, primeiro choro que não se contém, advertindo ao mundo: “estou aqui, já existo, não me matem”. Existência egoísta, não de um egoísmo moral que desemboca em um egocentrismo desenfreado, incapaz de olhar o Outro, mas egoísmo que possibilita esse olhar, pois só é possível encontrar o Outro porque se é interioridade. O que levaria o Eu a sair de seu lugar seguro e feliz, se arriscando a essa aventura sem ter a certeza do que virá? O que há no Rosto desse Outro que o impele a esse movimento sem retorno, sem a garantia ulissiana de voltar a Ítaca, encontrar seu amor, sua terra? Em Lévinas parece não haver mais terra, caminha-se sem a certeza de qualquer propriedade, há apenas a entrega ao Outro, ao Infinito. 2. O paradoxo do encontro expresso na “estranheidade familiar” do Infinito O deslocamento mostra a errância desse encontro entre pessoas que não tem mais pátria comum, estrangeiros em sua condição. O Eu não se dirige a uma terra familiar, saudoso para encontrar uma terra que também é sua. Nesse deslocamento não há nostalgia por uma terra que poderia trazer algo ainda de comum.“Mas eu, que não tenho conceito comum com o Estrangeiro, sou, tal como ele, sem gênero” (LÉVINAS, 1961:28). Assim, o Eu é também Estrangeiro, errante de si mesmo. Diante do Estrangeiro qual língua deve-se então, falar? Como os estrangeiros se comunicam? Assumir uma das línguas seria ainda manter-se em sua terra, mas aqui não há mais terra comum, o encontro é sempre encontro de estrangeiros. O Outro quando se vê obrigado a pedir asilo em uma outra língua, em que lhe é exigido uma tradução de seu próprio modo de ser: eis aí a primeira violência. Jacques Derrida comenta que há duas formas de hospitalidade: uma que ele denomina de Direito e outra Absoluta. A hospitalidade de Direito requer que o estrangeiro diga seu “nome”, ou seja, é necessário saber sua origem, seu histórico, é necessário então sempre interrogar quem chega. Na hospitalidade Absoluta o Outro estrangeiro é sempre anônimo, abre-se a porta de casa 7 sem saber quem é esse que se apresenta, sem saber sua língua, cede-se a ele nosso lugar. “A lei da hospitalidade absoluta manda romper com a hospitalidade de direito, com a lei ou a justiça como direito. A hospitalidade justa rompe com a hospitalidade de direito; não que ela a condene ou lhe oponha, mas pode, ao contrário, colocá-la e mantê-la em movimento incessante de progresso; mas também lhe é tão estranhamente heterogênea quanto a justiça é heterogênea no direito do qual, no entanto, está tão próxima” (DERRIDA, 2003:25). Em uma entrevista concedida2 a uma revista francesa, Derrida retorna a essa questão. Ele comenta a impossibilidade de fazer da hospitalidade incondicional um conceito político ou jurídico. Mas, ao mesmo tempo, ressalta a necessidade de que todo projeto político (e acrescento aqui, pedagógico) esteja sempre ancorado em uma hospitalidade incondicional. Ele chama essa argumentação de “impossível não negativo”, ou seja, não se pode fazer com que o direito avance sem uma idéia maior da própria justiça. “Se eu quero ser absolutamente acolhedor ao outro, deixar que o outro venha sem lhe pedir passaporte ou nome, e me expor incondicionalmente a vinda do outro, é preciso ainda que concretamente, eu tenha alguma coisa a dar, e assim eu condiciono a hospitalidade” (Idem:32). Essa mesma idéia de alguma forma parece também estar presente em Lévinas. Na Seção II de Totalidade e Infinito, o autor descreve o processo de construção do Eu, que passa pela relação de gozo com o mundo, pela casa, o feminino, o trabalho, o comércio. Esse é o processo de um Eu que se “prepara” para o encontro com o Outro, não que houvesse aí uma previsão desse encontro. Mas ao ser “tocado” pelo mundo e nesse toque se vai construindo uma interioridade, acompanha-se o nascimento de alguém que passa a ter algo a oferecer. Assim, quando Lévinas fala da entrega incondicional ao Outro, do “tirar o pão de sua boca para dar ao Outro”, supõe-se que o pão já exista. Esse ato de doação do que se tem descreve o sentido da Ética, mas para isso é necessário ter o pão a ser ofertado. E a pergunta parece inevitável: aqueles que não possuem absolutamente nada, nem casa nem pão, nem a si mesmo, a ética seria então, um 2 DERRIDA, J. Si je peux faire plus qu’une phrase... Les Inrockuptibles. Mars/avril, n° 435, p. 25-34 8 movimento impossível? A vivência da miséria absoluta seria incompatível com a ética? A relação com o Outro só pode ser feita a partir desse ser separado, é preciso a interioridade, que deve ser ao mesmo tempo fechada e aberta. Ou seja, é preciso ser, existir plenamente, mas estar aberto a esse encontro, em que o Outro arranca o Eu de seu fechamento lhe empurrando a uma exterioridade, ao Infinito. Essa pergunta ainda fica aberta, mas ela vai se esclarecendo na medida que avançamos em direção a sua última grande obra, Autrement qu’être. As obras posteriores avançarão pouco em relação à tese central defendida nessa obra. Falar então da hospitalidade é falar da ambigüidade diante do condicional e incondicional da Ética. De que forma então, a linguagem pode se tornar hospitalidade? Comumente compreendemos linguagem como “qualquer meio sistemático de comunicar idéias ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais, etc; como o modo próprio de um povo se expressar; comunicar-se por meio de uma língua”.3 Ou seja, a linguagem deseja a compreensão, requer o sentido, anseia pelo esclarecimento, retira a possível resistência de uma realidade que se entrega passivamente à palavra. Enfim, a linguagem deve comunicar. Mas em Lévinas a linguagem assume um outro estatuto, deseja uma comunicação que não desfaça o “mistério” do Outro, que não seja reveladora e sim, acolhedora. A linguagem dos estrangeiros necessita, portanto ser acolhida para que possa comunicar. Não podemos compreender a língua estrangeira relacionando-a com os sentidos que assume em nossa língua. Quando vamos aprender uma outra língua não podemos fingir falar a língua do Outro e, em pensamento, pensarmos com nossa própria língua. O encontro com o estrangeiro inaugura uma outra (autrement) língua, não há mais signos conhecidos, habitamos o estrangeiro do pensamento, agora analfabeto, por isso o encontro é ensinamento. A linguagem está tatuada no corpo, se faz na singularidade do Outro, seu discurso é sua presença. A relação, em sua estrangeiridade, apresenta então uma ambigüidade: se é estrangeiro porque se está separado totalmente do Outro, mas ao mesmo tempo, é isso que permite uma relação sem a busca pela totalidade. A estranheza do Outro é sua apresentação original, que não possui uma origem de sentido em mim, como uma imagem que aparece e faço a tradução, descrevendo a cor de seus cabelos, dos olhos, altura, impressões a respeito de seu caráter, como uma pintura sempre 3 Cf. HOUAISS. Dicionário da língua portuguesa.verbete: linguagem, p.1763. 9 imperfeita do Outro, mas que permite seu reconhecimento. Por mais que descreva o Outro, esse sempre transborda qualquer compreensão, se faz excesso de si mesmo, inaugura uma linguagem que provoca a ruptura com a ordem dos signos, do já estabelecido. “Pensar o infinito, o transcendente, o Estrangeiro, não é, pois pensar um objeto. Mas pensar o que não tem traços de objeto é, na realidade, fazer mais, ou melhor, do que pensar” (LÉVINAS, 1961:41). Isso nos levaria ao desafio de um pensamento que não é mais solitário, a uma racionalidade que se obriga a rever-se, não mais a partir de si mesma, em um movimento endógeno, pois a provocação dessa revisão vem agora de fora. A transcendência, ou seja, sair de si e ir ao encontro do Outro, se oporia ao movimento da objetividade, que visa o esgotamento da realidade, a ponto de assumir o próprio lugar dessa realidade. É dessa forma que funcionam os signos, que substituem a vivacidade da realidade, do novo, pela palavra representativa. Assim, o novo não precisa mais se apresentar, é substituído por seu signo. A palavra fica no lugar da própria realidade e não precisamos, toda vez que falamos de algo nos reportar a ele novamente. O mundo dos objetos é, pois objetivado.”O saber é uma relação do Próprio com o Outro onde o Outro se reduz ao Próprio e se despoja da sua alienidade, onde o pensamento se refere ao outro, mas onde o outro já não é outro enquanto tal, onde ele é já próprio, já meu” (LÉVINAS, 1982:14). Considerações finais Ao acompanharmos algumas reflexões presentes no pensamento de Lévinas percebemos o quanto sua escrita traz questões importantes para a Educação. O filósofo percorre a história do Ocidente, denunciando um pensar que facilmente substitui pessoas pelas idéias, interlocutor pelo tema, exterioridade da interpelação pela interioridade da relação lógica. Lévinas, no entanto nos faz pensar que o mundo humano, a natureza enquanto um ser que pulsa, que se manifesta e tem seu próprio movimento, não pode ser objetivada. É aí que se agudiza a questão ética não apenas mostrando um pensamento que justifica a Ética, mas um pensamento que só pode se fazer eticamente. Para isso, seria necessário outro modo de pensar (autrement), “seria necessário um pensamento em que deixaria de ser legítima a própria metáfora da visão e do visar”(LÉVINAS, 1982:20). 10 É dessa forma que Outro aparece no pensamento de Lévinas como Infinito, porque transborda qualquer reflexão, por mais que dele se tente fazer uma idéia, é sempre mais que essa idéia construída. Por isso, o Outro sempre surpreende, desestrutura o pensamento e impõe uma renovação constante desse Eu que não consegue mais se tornar o Mesmo. O Mesmo é aquele que sai de si e retorna como se nada tivesse acontecido, e a indiferença diante do acontecimento do Outro gera a violência. A Infinitude desse Outro penetra a relação do face-a-face porque a Infinitude se faz Rosto. Da mesma forma que o infinito cartesiano entra no mundo, a Infinitude desse Rosto (visage)4 encontra-se no Eu, mas não enquanto idéia, mas sob a forma de Desejo. “O infinito no finito, o mais no menos que se realiza pela idéia do Infinito, produz-se como Desejo” (LÉVINAS, 1961:42). Acolher o Outro em sua presença, para que a própria presença se faça possível, é ir além da capacidade do Eu, ter a idéia do infinito. Lévinas na primeira parte do capítulo inicial de Totalidade e Infinito chama esse Desejo de “Desejo do Invisível”. O Outro seria o invisível que exigiria outra forma de percepção que não a visão? “Pensamento que não é nem visar, nem visto, nem vontade, nem intenção” (LÉVINAS, 1982:23). O invisível está presente, mas assume a forma de um ausente, uma amálgama do Pothos (desejo do ser ausente) e do Hímeros (desejo do ser presente) que convida o Eu a esse encontro abismal com o Outro. O Outro é invisível porque dele não temos uma idéia. Os gregos já falam dessa relação estreita entre ver e idéia. Eidô significa ver,observar,fazer ver,instruir, informar, informar-se, conhecer, saber. Quem vê o eidós, adquire conhecimento, sabe a idéia. “A visão é uma adequação entre idéia e a coisa: compreensão que engloba. A inadequação não designa uma simples negação ou uma obscuridade da idéia, mas, fora da luz e do escuro, fora do conhecimento que mede os seres, a desmedida do Desejo” (LÉVINAS, 1961:22-23). Que questões para Educação emergem destas reflexões? Penso, primeiramente, que Lévinas nos instiga a pensar uma Educação no e a partir da idéia de Desejo. O desejo não se coloca como busca de satisfação e complementação de algo que nos falte, mas é justamente aquilo que nos movimenta, permitindo deslocamentos, não com intuito de retornar, mas de nos perdermos. É necessário nos perdemos! Abandonar as 4 Também traduzido como olhar por expressar essa abertura inesgotável do Outro. Não abarcamos o olhar, podemos fazer do olho um objeto de adoração, descrever seus traços, mas olhar é sempre mais que o olho. Segundo Fernando Pessoa é a “janela da alma”. 11 certezas, as receitas, nossas bússolas que se mostram seguras para orientar nossos discursos, é fundamentalmente, estarmos ao Outro. A Educação parece estar recheada de “pílulas” que nos vendem soluções e tranqüilidade diante da crise que vivemos. Basta olharmos para os ídolos na educação que lotam auditórios, vendendo milhões em livros, fundamentando a prática de muitos acadêmicos e educadores. O desejo também é o pensamento do estrangeiro, por isso a Educação não pode ser o espaço do familiar; é importante vivermos as tensões e aprender com elas. Acolher o Outro não é tolerá-lo, é abrir-se para o acontecimento que é o próprio encontro. Como aborda Lévinas, relação sempre assimétrica, não porque seja desigual hierarquicamente (professor e aluno), mas porque a diferença é mais que exterioridade, é algo que nos compõe. Poderíamos trazer aqui o discurso construído em torna da Inclusão, em que a diferença se encarna no Outro. A diferença aqui é mais que exterioridade, é a própria subjetividade tecida sempre pelo estrangeiro, um grito que habita em mim, onde toda e qualquer fala já se ergue como resposta a este apelo. A Educação é desse modo esta resposta possível e necessária a este grito. Bibliografia CALIN, Rodolphe et SEBBAH, François-David. Le vocabulaire de Lévinas. Paris: Ellipses Édition Marketing,2002. DESCARTES,R. Meditações.In: Obra escolhida. SP: Difusão européia do Livro, 1962 DERRIDA, Jacques. Adiós a Emmanuel Lévinas. Palabra de acogida.Madrid: Trotta, 1998. ________________. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da Hospitalidade.SP: Escuta, 2003. P.25. ________________. Si je peux faire plus qu’une phrase... Les Inrockuptibles. Mars/avril, n° 435. HOUAISS. Dicionário da língua portuguesa.Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. LÉVINAS, Emmanuel.Totalité et Infini. Essai sur l’extériorité. Haia: M. Nijhoff, 1961 (1974) _________________.Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Haia: M. Nijhoff, 1974. 12 _________________.Éthique et Infini. Dialogues avec Philippe Nemo. Paris: Librairie Arthème Fayard et Radio-France, 1982; Librairie Générale française, 1984.
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