Postado por Jayme Fucs Bar em 7 de Dezembro de 2009 às 2:11am
A Reciprocidade na Dádiva – Condição Ética de Libertação? Euclides André Mance
IFIL - Instituto de Filosofia da Libertação Brasília, outubro de 2007
Introdução
Problematizando a práxis de libertação e considerando que oexercício da liberdade supõe condições materiais, políticas,educativo-informativas e éticas, pretendo explorar nesta
exposição um paradoxo que emerge quando relacionamos duas teses fundamentais, que à primeira vista não parecem contraditórias e que talvez não o sejam mesmo, de Paulo Freire e
de Emanuel Lévinas.
Em Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire nos ensina que “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, os homens se libertam em comunhão”1. Isso está relacionado ao fato de que a práxis de libertação requer, em alguma medida, um componente educativo e que, por suposto, “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam
entre si, mediatizados pelo mundo” 2. Variações dessa frase aparecem em outras obras de Freire. Em Política e Educação, lêse:
“Ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”3. Como Freire igualmente afirma em Pedagogia da
1 Paulo FREIRE. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 52.
2 Ibidem, p. 68. Já encontrei frases que parecem atribuídas a Freire, mas não sei se eles as proferiu: “Ninguém liberta ninguém. Tampouco ninguém se liberta sozinho. Homens e mulheres se libertam em comunhão, por intermédio do conhecimento do seu ser e estar no mundo.” Ou “Ninguém aprende sozinho. Tampouco ninguém ensina ninguém. Educadores/as e
educandos/as aprendem em comunhão, mediatizados/as pelos conhecimentos e saberes.”
3 Paulo FREIRE. Política e Educação. São Paulo: Cortez, 1993, p.9
1
Esperança que “...não posso pensar pelos outros nem para os outros, nem sem os outros”4, temos uma intrínseca relação entre gnosiologia, educação, ética e política, como dimensões da
interação dialógica, de problematização e transformação do mundo.
A segunda frase, relacionada a Lévinas e repetida várias vezes por ele, que desejo resgatar aqui, não é propriamente dele, mas de Fiodor Dostoievski, em Os Irmãos Karamazovi: “todos
somos responsáveis por todos e eu mais que todos os outros”
5.
Conforme as traduções a expressão responsáveis é substituida por culpados. Em Ética e Infinito, por exemplo, essa frase aparece assim: “Somos todos culpados de tudo e de todos
perante todos, e eu mais do que os outros.”6 E comenta Lévinas que “o eu tem sempre uma responsabilidade a mais que os outros.”
Antes, porém, de abordar o paradoxo que emerge da associação dessas duas teses, farei um preâmbulo, retomando “Totalidade e Infinito”, “De Outro Modo Que Ser” e “Ética e Infinito”, para
parcialmente explicitar a compreensão de Lévinas acerca dessa expressão.
[ 1 ]
Em Totalidade e Infinito, temos que o outro enquanto outro
escapa a fenomenologia do olhar. A fenomenologia reduz aquilo
que se vê a um ente no mundo com um sentido estabelecido a
partir do projeto fundamental, do ser: "A visão não é
transcendência. Outorga uma significação pela relação que faz
4 Paulo FREIRE. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia
do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 117
5 Fiodor DOSTOIEVSKI. Os Irmãos Karamazovi, L. Pleiad, p.310;
6 Citado em: Emmanuel LÉVINAS. Ética e Infinito, Edições 70, Lisboa,
2000, pg. 90 e 91. No original . Éthique et Infini. Dialogues avec Philippe
Nemo. Paris: Librairie Arthème Fayard et Radio-France, 1982, p. 105.
2
possível. Não abre nada... mais além do mesmo..."7. Contudo a
aparição do rosto desnudo em meu mundo é a revelação de outro
que exige respeito e acolhida, porque é pobre, peregrino,
estrangeiro, fraco e indefeso. O aparecimento do rosto no mundo
do mesmo instaura a exigência ética: Não Matarás! Matar
significa, desde tal momento, negar a infinitude do outro por
reduzi-lo a um mero ente do mundo, significando-o a partir da
totalidade. A transcendência da totalidade ontológica do Eu ao
Outro se dá pela abertura à palavra do outro que emerge em meu
mundo como um rosto. O outro se revela outro em seu rosto, mas
manifesta ser infinitamente Outro pela sua palavra. A linguagem
se torna, entretanto, apenas o espaço do encontro do Eu com o
Outro: "a linguagem não é mera experiência, nem um meio de
conhecimento de outrem, mas o lugar do Reencontro com o
Outro, com o estranho e desconhecido do Outro"8. No diálogo o
sentido da palavra interpelante sempre escapa à hermenêutica do
Eu que nunca conseguirá interpretá-la adequadamente. O outro e
sua palavra não podem ser reduzidos a uma psicologia,
sociologia ou outro logos qualquer, sem que haja a desfiguração
do rosto.
É na relação face-a-face, entre o eu e o outro, que se estabelece a
proximidade, cujo sentido primordial e último é a
responsabilidade do eu pelo outro, sem exigência de
reciprocidade, pois se houvesse tal exigência não se trataria mais
de uma relação des-inter-essada. Nesta responsabilidade
constitui-se a subjetividade do sujeito. "Esta fenomenologia da
proximidade toca uma esfera que, na subjetividade, precede a
intencionalidade, tendo uma trama espiritual anterior à
consciência, ao saber e ao tempo rememorável"9 pois o primeiro
movimento do homem não é a significação do mundo, mas o
7 Emmanuel LÉVINAS, Totalidad e Inifnito, Salamanca, Ed. Sigueme,
1977; p. 205
8 François POIRIÉ, Emmanuel Lévinas - Qui êtes-vous?, Lyon, La
Manufacture, 1987; p. 21
9 Emmanuel LÉVINAS, "La Proximité", Archives de Philosophie, Nº 34,
jul-set 1971; p. 373
3
desejo. Se no âmbito da consciência é impossível ao homem sair
de si mesmo, considera Lévinas que o real contato com a
alteridade somente é possível a partir do Desejo e da
necessidade.
A necessidade ou o desejo (grafado com "d" minúsculo)
expressam o "... primeiro movimento do Mesmo... e também
uma dependência frente ao outro"10, pois resulta na apropriação
dos elementos do mundo e se conclui no gozo. O Eu que goza, é
um Eu separado, inocentemente egoísta e só. A necessidade
subsume a alteridade, morde o real, dela se apropria.
O Desejo do Outro enquanto Outro é considerado por Lévinas
tanto como o Desejo do Invisível: pois deseja o outro que como
tal não pode ser visto sob a fenomenologia do olhar, sob a luz da
razão, que permanece um mistério não profanado; quanto como
Desejo do Infinito: pois o outro como outro revela-se
infinitamente outro não podendo ser aprisionado em um conceito
com suas determinações imanentes, manifestando-se sempre
como surpresa e novidade; ou ainda como Desejo Metafísico:
pois deseja o Outro para além da totalidade ontológica de um
sentido que a ele se estabeleça previamente em nosso mundo.
Este Desejo move o Eu e o Outro ao face a face, que se realiza
como proximidade em uma relação de responsabilidade aberta ao
Infinito. Tal Desejo não se conclui no gozo, pelo contrário o
desejado não satisfaz o Desejo, mas o aprofunda. A metafísica,
conforme Lévinas, deseja o outro para além das satisfações11.
10 Emmanuel LÉVINAS, Totalidad e Infinito p. 135
11 Em um capítulo dedicado à Fenomenologia do Eros, a relação erótica é
tratada simultaneamente como necessidade e Desejo. Considera Lévinas que
para além da totalidade erótica, que se estabelece entre o mesmo e o outro
movida pelo desejo e que se conclui no gozo, afirma-se a transcendência da
alteridade movida à proximidade pelo Desejo, sempre insatisfeito e
aprofundado, e a transcendência de um terceiro, o filho, que é também
outro, embora seja a continuação da vida do mesmo.
4
Esta metafísica contemporânea elaborada por Lévinas questiona a
ontologia: " A ontologia que retorna o Outro ao Mesmo... renuncia
ao Desejo metafísico, à maravilha da exterioridade, da qual vive
este Desejo"12. Mais enfaticamente dirá Lévinas que "A filosofia
do poder, a ontologia, como filosofia primeira que não questiona o
Mesmo, é uma filosofia da injustiça"13. A relação ética movida
pelo Desejo metafísico torna-se, portanto, anterior a qualquer
filosofia, teoria ou projeto político. Ser-para-o-outro é a própria
condição de constituição da subjetividade humana, emergindo da
neutralidade de um haver impessoal e da significação neutra dos
entes do mundo no horizonte do ser – horizonte em que os seres
humanos e sua história são reduzidos a movimentos de conceitos
no plano do saber, compostos teoricamente em função de projetos
que os reduzem a entes manipuláveis e que, ao serem realizados,
resultam na efetivação de inúmeras formas de injustiça.
No face a face, na relação de proximidade entre o eu e o outro,
estabelece-se a curvatura do espaço intersubjetivo, ou a
assimetria: o outro situa-se num plano mais elevado que o eu. Pela
sua palavra o Outro é mestre do Mesmo e o ensina, devendo o eu
julgar sua vida a partir da palavra do outro, com a consciência de
que jamais se é justo o bastante. Nesta relação de respeito movida
pelo Desejo Metafísico estabelece-se a morada em que o eu se
coloca a serviço do outro numa relação de proximidade, desde a
qual os elementos do mundo, o trabalho e a economia são
colocados como mediação.
[ 2 ]
Em De Outro Modo Que Ser - ou Para Além Da Essência,
Lévinas trata da Responsabilidade pelo Outro, que vai além da
autenticidade. Não se trata apenas de ser de uma outra maneira,
autêntica, mas sim de realizar uma condição que extrapole o
próprio modo do ser. Este outro modo que ser é uma espécie de
substituição do Eu pelo Outro.
12 Ibidem, p. 66
13 Ibidem, p. 70
5
A responsabilidade pelo Outro é tratada, neste último livro, como
estrutura fundamental da subjetividade. Afirma-se que a
percepção do rosto não é da ordem da intencionalidade que ruma
para a adequação. Assim, ao emergir o rosto do outro em meu
mundo, desde que o outro me olha, sou por ele responsável. E
somente no exercício de tal responsabilidade é estabelecida a
proximidade. Perante o outro, a atitude humana é dizer Eis-me
aqui!. Esta disposição de fazer alguma coisa por outrem, esta
dia-conia é anterior ao dia-logo. O rosto, que emerge no mundo,
simultaneamente nos pede e nos ordena, isto é, interpela-nos,
pede-nos na condição ética de nos ordenar. Contudo, por mais
que o eu assuma a sua responsabilidade pelo outro, não se pode
exigir reciprocidade, pois a responsabilidade do outro é problema
dele.
Esta responsabilidade sem limites pelo outro é um tema que
Lévinas retoma da literatura, citando Dostoievski, em Os Irmãos
Karamazovi: "Somos todos culpados de tudo e de todos perante
todos, e eu mais do que os outros". Para Lévinas somos
responsáveis de uma responsabilidade total: "...Eu próprio sou
responsável pela responsabilidade de outrem"14. Desta forma, ser
responsável significa substituir-se ao outro. A justeza deste
dispor-se à palavra interpelante do outro é julgada por um
terceiro, mas a justiça somente tem sentido ao conservar o
espírito do des-inter-esse que anima a idéia de responsabilidade
pelo outro. Afirma Lévinas que isto parece utópico, mas que não
há humano sem des-inter-esse.
Em De Outro Modo que Ser, o horizonte místico do pensamento
de Lévinas se faz plenamente presente. Neste substituir-se ao
outro, faz-se presente a glória de Deus, afirmada como o de outro
modo que ser: "Assumir a responsabilidade por outrem é, para
todo o homem, uma maneira de testemunhar a glória do Infinito,
de ser inspirado. Há profetismo, há inspiração no homem que
responde por outrem, paradoxalmente, mesmo antes de saber o
14 Emmanuel LÉVINAS, Ética e Infinito, p. 91
6
que, concretamente, se exige dele. Esta responsabilidade
anterior à Lei é revelação de Deus"15. Contudo, tal
responsabilidade se impõe, independentemente desta dimensão
mística, uma vez que "para ser digno da era messiânica é
necessário admitir que a ética tem um sentido, mesmo sem as
promessas do Messias"16.
[ 3 ]
Em Ética e Infinito, Philipe Nemo pergunta a Lévinas : “Mas o
outro não é também responsável a meu respeito?” E Lévinas
responde:
“Talvez, mas isso é assunto dele. Um dos temas
fundamentais, de que ainda não falamos, de
Totalidade e Infinito, é que a relação intersubjetiva é
uma relação não-simétrica. Neste sentido, sou
responsável por outrem sem esperar a recíproca, ainda
que isso me viesse a custar a vida. A recíproca é
assunto dele. Precisamente na medida em que entre
outrem e eu a relação não é recíproca é que eu sou
sujeição a outrem; e sou "sujeito" essencialmente
neste sentido. Sou eu que suporto tudo. Conhece a
frase de Dostoievski: "Somos todos culpados de tudo
e de todos perante todos, e eu mais do que os outros."
Não devido a esta ou àquela culpabilidade
efetivamente minha, por causa de faltas que tivesse
cometido; mas porque sou responsável de uma
responsabilidade total que responde por todos os
outros e por tudo o que é dos outros, mesmo pela sua
responsabilidade. O eu tem sempre uma
responsabilidade a mais do que todos os outros.”17
15 Ibidem, p. 107
16 Ibidem, p. 108
17 Ibidem, p. 105
7
Essa idéia permanece presente em Para Uma Ética da
Libertação Latino-Americana elaborada por Enrique Dussel e,
com certas variações, em outras elaborações de autores diversos
em torno da filosofia da libertação. Sou responsável pelo outro,
mais que todos, especialmente quando sua palavra se dirige a
mim, realizando um apelo na condição ética de exigir minha
resposta. Não posso interpretar adequadamente tal palavra, pois
tenderia a reduzi-la a meu mundo e devo respondê-la
faticamente. E como diz Lévinas, “sou responsável por outrem
sem esperar a recíproca”.
[ 4 ]
Creio que poderíamos associar essa atitude des-inter-essada à
dádiva do Eu pelo Outro.
Ora, “se ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho,
todos nos libertamos juntos”, então responder à palavra do outro
desinteressadamente é uma dádiva a ele dirigida, em que
colocamos nossa vida, nosso tempo, nossa atenção, ao serviço da
sua libertação. Mas esse é também um momento de nossa própria
libertação pessoal, pois nos libertamos juntos.
Quando o outro reconhece a dádiva, tem-se o início de um
processo solidário de libertação. Mas tal processo somente pode
avançar quando o outro assume a atitude de reciprocidade na
dádiva, mesmo que nada tenha que retribuir, mesmo que nada
tenha a retribuir, exceto o reconhecimento de sua própria
responsabilidade de colaborar na libertação de si mesmo e de
todos que lhe são solidários. Não se trata de exigir-lhe uma
retribuição pela dádiva recebida. Mas de uma esperança de que
venha a colaborar no processo de libertação (de si e de quem lhe
é solidário, pois “os homens se libertam em comunhão”). Não se
trata de esperar a reciprocidade da dádiva, mas de desejar a
libertação do outro, libertação que somente pode principiar
quando ele reconhecer que a reciprocidade na dádiva está na
base da “comunhão” entre as pessoas e de sua própria
libertação.
8
E aí surge o paradoxo. Se o Outro não reconhece a dádiva e não
se move pela reciprocidade na dádiva, estaria o Eu eticamente
obrigado em seguir empenhando sua vida, seu tempo e sua
atenção, nessa conduta solidária em relação a ele, ou deveria
voltar-se a outros sujeitos mais dispostos a assumirem as
responsabilidades de sua própria libertação (da libertação deles
mesmos) e da reciprocidade na dádiva, contribuindo para a
libertação de si e dos outros – uma vez que somos responsáveis
por todos e não apenas por aquela pessoa?
A resposta provisória a que cheguei é que se o Eu quer insistir
nessa relação, poderá eticamente fazê-lo e, provavelmente, se o
fizer, o fará por amor, mas não está eticamente obrigado a fazêlo.
Contudo, por outro lado, frente à responsabilidade ética de
colaborar com a libertação de todos e de cada um, poder-se-ia
perguntar: em que condições a responsabilidade ética do Eu
pelos Outros o obrigaria a atuar em colaboração com eles,
dedicando-lhes maior tempo e atenção, que a este outro que ele
ama?
A resposta desse problema, por sua vez, ao que parece depende
da solução de um outro problema ético: saber quando a
necessidade de um se sobrepõe à necessidade de muitos e quando
a necessidade de muitos se sobrepõe à necessidade de um. Em
outras palavras, se somos responsáveis por tudo e por todos,
como decidir a quem devo dar minha atenção e oferecer o tempo
de minha vida, se a palavra interpelante me vem não apenas de
uma pessoa, mas igualmente de inúmeras outras, de inúmeros
grupos e coletividades? Como é impossível multiplicar ao
infinito a disponibilidade de uma vida finita, cabe então
solucionar o enigma: como decidir entre a necessidade de um e a
necessidade de muitos?
Na mesma medida em que se dedica a uma relação em particular,
na qual não há reciprocidade libertadora, o Eu priva a outros –
que igualmente lhe apelam na condição de oprimidos – da oferta
9
de sua dádiva, de sua solidária colaboração em prol da libertação
de todos. Está, por outra parte, igualmente privado de poder
libertar-se, inclusive dessa mesma relação em que continua a darse
cotidianamente em sua gratuidade – pois as pessoas se
libertam juntas. A menos que a resistência em libertar-se, vivida
pelo outro, contribuísse para a libertação do mesmo – o que
parece implausível.
Ora, em que medida a necessidade desse outro, que não atua em
reciprocidade na dádiva, está acima da necessidade de libertação
de outros e inclusive do próprio Eu que se doa nessa relação?
Seria ético privar a terceiros da dádiva da colaboração solidária
do Eu, em favor de sua atenção e amor, a esse outro que reage
com indiferença, ceticismo ou cinismo à dádiva recebida?
Podemos explicitar esse paradoxo de outra maneira.
O Outro aparece, como ente, no mundo do mesmo. Retirando-se
tudo o que nele se aplica de camadas de significação ou sentido,
chegar-se-ia a uma espécie de coisa em si misteriosa. Mas ele
não pode ser reduzido à objetividade de seu corpo ou à
significação de sua palavra. Ele é transcendente à possibilidade
do Eu em compreendê-lo a partir de si mesmo.
A abertura à sua palavra, se por um lado não nos permite
conhecê-lo, no sentido de reduzi-lo a alguma identidade no
mundo do mesmo, pode, por outro lado, ampliar a liberdade do
Eu – se a atitude de ambos for colaborativa e solidária e se a
partir dessa atitude dialógica realimentarem suas práxis de
libertação, pessoais e coletivas.
Entretanto, colaborar somente em favor do projeto de Um ou de
Outro, pode reduzir, pode obliterar, a realização do projeto em
liberdade daquele que fica preterido e igualmente o projeto
colaborativo de ambos. O que salva, pois, a ética nessa relação é
a ação colaborativa e dadivosa na realização da liberdade de
ambos, na libertação de ambos – “pois ninguém liberta ninguém,
10
ninguém se liberta sozinho”. A quebra ou esquecimento da
palavra na dádiva, o esvaziamento da ação colaborativa e
solidária (em comunhão, para usarmos a expressão de Freire),
leva à redução do campo de possibilidades de libertação aberto
anteriormente – de um, de outro e de ambos.
Ora, a ética realização histórica de cada pessoa é a reafirmação
cotidiana de si mesma na ação de promover as liberdades
públicas e privadas de todos, inclusive a sua própria, pois toda
realização histórica é alguma forma de práxis e não há práxis
sem afirmação do Eu em sua relação com o Outro, mediatizada
pelo mundo. Portanto, a pretensa imediatez do face-a-face
originário, como proximidade afirmada por Dussel como anterior
a toda linguagem, a todo trabalho e a toda cultura – como
momento ilocucionário anterior à comunidade de comunicação e
fonte da ética –, não poderia existir, por exemplo, sem alguma
onda sonora ou luminosa, isto é, sem a mediação de elementos
do cosmos e sem a semiose indicial que nos possibilita perceber
que tal objeto dinâmico é um ser humano, que estamos ante outra
pessoa. Esta cognição não seria possível sem a mediação
semiótica de elementos do mundo. Graças a essas mediações, do
cosmos e do mundo, podemos perceber que estamos perante a
outra pessoa a quem devemos acolher de maneira ética, pois
somos por ela igualmente responsáveis, uma vez que "somos
responsáveis por todos perante todos, e eu mais do que os
outros".
Este encontro ético do Eu com o Outro institui um novo campo
aberto de possibilidades, de eventos colaborativos, que contribui
para a libertação de ambos, isto é, para a ampliação das
possibilidades do exercício da liberdade de ambos – ainda que a
escolha possa ser renunciar ao convite ou reterritorializar o
próprio campo de exercício da liberdade, abdicando ou não de
um conjunto de possibilidades imediatas ou de longo prazo, em
caráter provisório ou definitivo, em favor de um outro conjunto
de possibilidades em colaboração solidária.
11
Pode sempre haver, em alguma medida, a ampliação desse
campo de possibilidades, agregando-se novas possibilidades a
outras já existentes. Mas como não temos a qualidade da
ubiqüidade, como não podemos estar em todos os lugares a cada
momento, não podemos realizar as infinitas possibilidades de
campos colaborativos que se agregassem ao infinito. Assim, a
relação ética do Eu com o Outro funda-se, pois, em uma dádiva,
para que possa existir como relação desinteressada, e em uma
renúncia de outros exercícios possíveis de liberdade, da vivência
de outras relações com outras pessoas - pois não há como
escutarmos e respondermos à palavra de cada uma de todas as
pessoas ao mesmo tempo e nem ao longo de toda a nossa vida.
Por isso, o princípio da libertação é o reconhecimento da dádiva,
e sua permanente continuidade (a permanente continuidade da
libertação) supõe a reafirmação cotidiana do face-a-face na
reciprocidade na dádiva.
Sem o reconhecimento da dádiva, a doação de um pelo outro não
se conclui na libertação de ambos, mas na progressiva
aniquilação do Eu pelo Outro, que se utiliza dele (do Mesmo),
como meio para a realização dos interesses de si próprio.
Somente com a reciprocidade na dádiva a relação instaurada pelo
encontro do Eu com o Outro se torna efetivamente libertadora,
pois “as pessoas se libertam juntas”. Neste caso, quanto mais se
reorganiza o campo de possibilidades (materiais, políticas e
educativo-informativas) em favor da promoção da ética liberdade
de cada um, mais se amplia a liberdade de todos.
Mas pode ocorrer que o Outro, em seu mistério, que nos
interpela cotidianamente e a quem, de maneira dadivosa,
servimos faticamente vá aos poucos assumindo atitudes e
posturas cínicas, contando estrategicamente com nossa dádiva
em favor de seu projeto. Na vida cotidiana não há o claro e
escuro dos modelos formais e o amor pelo outro pode levar-nos à
submissão de uma palavra que não compreendemos
adequadamente e que não contribui para a libertação do próprio
Eu e também do Outro.
12
Com efeito, a dádiva do Eu pelo Outro não espera retribuição.
Mas se o outro, ainda que lentamente, tendo condições para fazêlo
e compreendendo minimamente o convite que se lhe faz para
solidariamente libertar-se, não colabora na libertação de si mesmo,
na reconstituição solidária de seu mundo, fundando-o eticamente
com outro horizonte projetual (re-significando suas mediações
materiais, políticas, educativo-informativas e éticas em favor da
libertação de todos, inclusive de si mesmo), e não reconhece a
dádiva que alimenta a relação do Eu para consigo, o Eu não tem
nenhuma obrigação ética de permanecer na sua entrega, não tem
obrigação de obliterar os campos de possibilidade de sua própria
libertação (por privar-se de vivenciar o face-a-face na práxis de
libertação com outras pessoas), após ter insistido e reinsistido em
sua dádiva nessa relação de busca de solidariedade libertadora
com este outro que não assume a responsabilidade pela libertação
de si mesmo e de todos. O Eu todavia, pode permanecer dedicado
em sua dádiva a este Outro, porque a entrega de si mesmo no
amor não tem limites, mas não está eticamente obrigado a isso.
Pelo contrário, pode dar-se em relação solidária com outros na
sua coerente busca de libertação de todos – de si e das outras
pessoas.
Por fim cabe destacar que o Eu é sempre responsável pelo Outro,
independentemente de qualquer mérito do Outro. Não importa
qual seja a sua atitude, se ética, indiferente, cética ou cínica, ele
sempre deve ser tratado eticamente, devendo-se promover a sua
libertação. Mas o Outro, cuja libertação o Eu deve promover,
somente exerce eticamente sua liberdade quando também
colabora para a libertação de si e dos demais – promovendo o
justo compartilhamento das mediações materiais, políticas,
educativo-informativas para a vivência ética das liberdades
públicas e privadas de todos. Com base no princípio de
solidariedade, portanto, cabe coletivamente impor limites ao
exercício da liberdade de cada pessoa, do Eu, do Outro e de
todos, sempre que tal exercício renegue as liberdades públicas e
privadas eticamente exercidas.
13
Considerações Finais
O título deste texto não é uma afirmação, mas uma pergunta: A
Reciprocidade na Dádiva – Condição Ética de Libertação?.
Se, de fato, a reciprocidade na dádiva é o que alimenta os mais
belos relacionamentos humanos e está muito mais presente em
nossas sociedades do que possa parecer à primeira vista, todavia,
tomá-la como condição ética da libertação é, para mim, ainda um
questionamento. As reflexões apresentadas neste texto carecem
ainda de maior problematização, cabendo explorar as
conseqüências dessa suposição tendo em vista confirmá-la ou
refutá-la, considerando as diversas dimensões da consistência
humana.
Tenho a impressão que muitos relacionamentos interpessoais na
esfera privada, bem como engajamentos sociais e políticos de
esquerda na esfera pública, começam a definhar quando a
reciprocidade inicial alentada pelo acolhimento do outro e pelo
desejo de libertação de si e de todos vai se perdendo. Isto é,
quando a utopia coletiva sonhada na realimentação das
liberdades do eu, do outro e de todos, vai dando lugar a
realizações históricas em que o projeto coletivo (tanto nos
relacionamentos privados quanto nos engajamentos públicos) é
secundarizado em razão de interesses não-manifestos que,
progressivamente, vão suprimindo a ética – a reciprocidade na
dádiva – em favor do projeto de um (na esfera privada) ou do
projeto de um grupo de pessoas (na esfera pública), que já não
realimentam mais as liberdades pessoais e públicas de cada um e
de todos.
No campo da esfera privada, por exemplo, parece ético que um
pai ou uma mãe não devam esperar que seus filhos retribuam as
dádivas recebidas na relação inter-pessoal que viveram até o
presente (mesmo porque isso é impossível: os filhos jamais
poderão retribuir aos pais a vida que deles receberam). Mas
14
parece ético que devam esperar que os filhos progressivamente
se libertem no aprofundamento dessa própria relação interpessoal
com os pais, isto é, que reconheçam a dádiva recebida e
passem a agir com eticidade, assumindo desinteressadamente sua
responsabilidade para com todas as pessoas, inclusive para com
seus pais, realimentando a reciprocidade na dádiva, contribuindo
com suas atitudes práticas para a expansão das liberdades
públicas e pessoais eticamente exercidas, para o bem-viver de
todos. Uma vez mais cabe destacar que não se trata da
reciprocidade pela dádiva recebida (pois, nesse caso, a relação
não mais seria desinteressada e o sentido mesmo da dádiva teria
sido perdido), mas sim da reciprocidade na dádiva, única
condição de os filhos se libertarem e de colaborarem com a
libertação de seus próprios pais e das outras pessoas.
No campo da esfera púbica, por exemplo, particularmente no
campo da economia solidária, já há uma considerável literatura
sobre a economia da dádiva, economia do dom, economia de
doação ou economia da oferta. Não apenas a comunidade
científica reconhece que, mesmo nas sociedades capitalistas
contemporâneas, a economia da dádiva coexiste com outras
formas de práticas econômicas, como também um número
crescente de economistas e cientistas sociais tem investigado
suas relações com a expansão da economia solidária nas últimas
décadas. Mas cabe igualmente problematizar essas reflexões e
avaliar em que medida práticas compreendidas como economia
da dádiva contribuem efetivamente para a libertação das pessoas
e dos povos ou já não estariam subsumidas em intercâmbios de
outra ordem, onde prevaleçam interesses não-econômicos. Se
devemos agir eticamente em relação a todas as pessoas, e se as
relações econômicas são relações entre pessoas, então devemos
igualmente agir eticamente no campo econômico. Contudo,
como eticamente decidir o que deve reger-se pela economia da
dádiva e o que deve reger-se pela economia do intercâmbio de
valores e como promover a libertação de todos com ambas as
práticas? Como criticar ambas a partir da esperança da
reciprocidade na dádiva e promover a libertação econômica do
15
eu, do outro e de todos no compartilhamento desses valores? Isso
é necessário, pois, embora seja possível praticar o intercâmbio de
valores de modo ético, a introdução da exigência de intercâmbio
econômico pela ação realizada em favor do outro pode converter
o que seria justo em injusto, o que seria ético em imoral. A
doação de órgãos, por exemplo, é um ato eticamente defensável e
nenhum valor econômico é intercambiado nessa relação, mas a
venda de órgãos é eticamente reprovável e considerada um crime
em quase todas as sociedades. Entretanto, há situações em que a
passagem da dádiva à troca não é tão fácil de avaliar sob o
aspecto ético, como a que ocorre entre trabalho voluntário e
trabalho remunerado. Por exemplo. Numa parte dos clubes de
troca, que se valem de moedas sociais emitidas pelos próprios
participantes, é perceptível uma tendência de monetizar algumas
atividades que antes poderiam ser consideradas como trabalho
voluntário e remunerar as pessoas que as executam: “nós
devemos evitar ao máximo todo trabalho voluntário, posto que
na Rede este não tem sentido: temos a 'moeda social' de que
necessitamos...”18. Esta afirmação, se fosse estendida para as
diversas situações de trabalho voluntário, poderia levar a
resultados paradoxais (e creio que a autora da frase não proporia
tal extensão, limitando-a exclusivamente às atividades de
coordenação compartilhada dos clubes nas redes de trocas).
Ocorre, todavia, que muitas atividades que hoje consideramos
justo remunerar – com moeda social ou oficial – como, por
exemplo, a obtenção de sementes em uma feira para o plantio,
poderiam ser compreendidas sob a lógica da dádiva, da
responsabilidade de cada um por todos e de todos por cada
pessoa – como ocorre, de certo modo, na prática do Trafkinto na
tradição Mapuche, onde o recebimento da semente é apenas um
aspecto em relação aos vínculos de responsabilidade muito mais
amplos que se criam ou se confirmam entre as pessoas
envolvidas no ato de dar e receber as sementes – sendo
importante avaliar, nesse caso, em que medida tais solidariedades
18 Heloísa PRIMAVERA. "Como formar un primer club de trueque pensando
en la economia global". Medellin/Bogotá, janeiro de 1999. Fonte:
http://www3.plala.or.jp/mig/howto-es.html. Disponível em set/2007.
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grupais também não levariam a níveis diferenciados de satisfação
de necessidades no seio de uma mesma comunidade. E por fim,
como a aplicação de interpretantes semióticos sobre
relacionamentos que envolvem bens de valor econômico é
modelizada pelos sentidos da cultura em que estamos situados,
não é raro que ao final das “festinhas de Natal”, no Brasil, na
forma de “Amigo Secreto”, algumas pessoas saiam pensando que
deram um presente mais caro enquanto receberam outro de
menor valor – posto que a lógica hegemônica de mercado, do
intercâmbio econômico de valores no horizonte da escassez,
acaba suplantando a lógica da dádiva, da própria celebração da
festa.
Vemos, pois, que, eticamente, uma parte das mediações materiais
do exercício da liberdade – como um órgão a ser transplantado,
por exemplo – não pode ser objeto de intercâmbio econômico e
que outra parte delas, tanto pode ser oferecida como dádiva ou
como elemento de intercâmbio em que se pratique preços justos.
Mas todas essas ações somente serão eticamente exercidas se
forem expressão do desejo de promover-se as liberdades públicas
e privadas de todos em sua melhor composição possível,
considerando que cada qual é responsável por todos e todos por
cada qual, posto que ninguém liberta ninguém, ninguém se
liberta sozinho, que as pessoas se libertam juntas, quando
praticam a reciprocidade na dádiva, elemento fundante de toda
práxis de libertação.
Mantenho, todavia, a interrogação inicial, pois seria preciso
problematizar melhor em que medida essa posição permitiria
efetivamente enfrentar a atitude do cínico que se apresenta como
solidário em processos colaborativos ao passo que atua em favor
de seus interesses estratégicos. Bem como resolver o problema
dos critérios a adotar para melhor compreender quando a
necessidade de um tem prioridade frente à necessidade de muitos
ou vice-versa, nos marcos dessa reciprocidade na dádiva. E ainda
resolver o problema da relação entre amor e eticidade,
particularmente na figura hipotética em que uma pessoa que se
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move pela reciprocidade na dádiva vai descobrindo que a pessoa
a quem ama (um amigo, filho, marido, esposa, pai, mãe, irmão
entre tantas outras) e a quem oferece o melhor de si, está se
tornando, a cada dia, mais cínica. Todavia, apresento-as neste
Seminário Internacional Levinas e Educação, como uma
contribuição ao debate. Imagino que o aprofundamento do
paradoxo apresentado poderá contribuir na melhor compreensão
e no aprimoramento das práxis de libertação.
Referências Bibliográficas
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987
________. Política e Educação. São Paulo: Cortez, 1993
________. Pedagogia da esperança: um reencontro com a
pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992
LÉVINAS, Emmanuel. Ética e Infinito, Edições 70, Lisboa,
2000
________. Totalidad e Inifnito, Salamanca, Ed. Sigueme, 1977
________."La Proximité", Archives de Philosophie, Nº 34, julset
1971
________. De otro modo que ser - o más allá de la esencia.
Salamanca: Sígueme, 1987
POIRIÉ, François. Emmanuel Lévinas - Qui êtes-vous?, Lyon, La
Manufacture, 1987
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