A Reciprocidade na Dádiva – Condição Ética de Libertação? Euclides André Mance IFIL - Instituto de Filosofia da Libertação Brasília, outubro de 2007 Introdução Problematizando a práxis de libertação e considerando que oexercício da liberdade supõe condições materiais, políticas,educativo-informativas e éticas, pretendo explorar nesta exposição um paradoxo que emerge quando relacionamos duas teses fundamentais, que à primeira vista não parecem contraditórias e que talvez não o sejam mesmo, de Paulo Freire e de Emanuel Lévinas. Em Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire nos ensina que “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, os homens se libertam em comunhão”1. Isso está relacionado ao fato de que a práxis de libertação requer, em alguma medida, um componente educativo e que, por suposto, “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” 2. Variações dessa frase aparecem em outras obras de Freire. Em Política e Educação, lêse: “Ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”3. Como Freire igualmente afirma em Pedagogia da 1 Paulo FREIRE. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 52. 2 Ibidem, p. 68. Já encontrei frases que parecem atribuídas a Freire, mas não sei se eles as proferiu: “Ninguém liberta ninguém. Tampouco ninguém se liberta sozinho. Homens e mulheres se libertam em comunhão, por intermédio do conhecimento do seu ser e estar no mundo.” Ou “Ninguém aprende sozinho. Tampouco ninguém ensina ninguém. Educadores/as e educandos/as aprendem em comunhão, mediatizados/as pelos conhecimentos e saberes.” 3 Paulo FREIRE. Política e Educação. São Paulo: Cortez, 1993, p.9 1 Esperança que “...não posso pensar pelos outros nem para os outros, nem sem os outros”4, temos uma intrínseca relação entre gnosiologia, educação, ética e política, como dimensões da interação dialógica, de problematização e transformação do mundo. A segunda frase, relacionada a Lévinas e repetida várias vezes por ele, que desejo resgatar aqui, não é propriamente dele, mas de Fiodor Dostoievski, em Os Irmãos Karamazovi: “todos somos responsáveis por todos e eu mais que todos os outros” 5. Conforme as traduções a expressão responsáveis é substituida por culpados. Em Ética e Infinito, por exemplo, essa frase aparece assim: “Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do que os outros.”6 E comenta Lévinas que “o eu tem sempre uma responsabilidade a mais que os outros.” Antes, porém, de abordar o paradoxo que emerge da associação dessas duas teses, farei um preâmbulo, retomando “Totalidade e Infinito”, “De Outro Modo Que Ser” e “Ética e Infinito”, para parcialmente explicitar a compreensão de Lévinas acerca dessa expressão. [ 1 ] Em Totalidade e Infinito, temos que o outro enquanto outro escapa a fenomenologia do olhar. A fenomenologia reduz aquilo que se vê a um ente no mundo com um sentido estabelecido a partir do projeto fundamental, do ser: "A visão não é transcendência. Outorga uma significação pela relação que faz 4 Paulo FREIRE. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 117 5 Fiodor DOSTOIEVSKI. Os Irmãos Karamazovi, L. Pleiad, p.310; 6 Citado em: Emmanuel LÉVINAS. Ética e Infinito, Edições 70, Lisboa, 2000, pg. 90 e 91. No original . Éthique et Infini. Dialogues avec Philippe Nemo. Paris: Librairie Arthème Fayard et Radio-France, 1982, p. 105. 2 possível. Não abre nada... mais além do mesmo..."7. Contudo a aparição do rosto desnudo em meu mundo é a revelação de outro que exige respeito e acolhida, porque é pobre, peregrino, estrangeiro, fraco e indefeso. O aparecimento do rosto no mundo do mesmo instaura a exigência ética: Não Matarás! Matar significa, desde tal momento, negar a infinitude do outro por reduzi-lo a um mero ente do mundo, significando-o a partir da totalidade. A transcendência da totalidade ontológica do Eu ao Outro se dá pela abertura à palavra do outro que emerge em meu mundo como um rosto. O outro se revela outro em seu rosto, mas manifesta ser infinitamente Outro pela sua palavra. A linguagem se torna, entretanto, apenas o espaço do encontro do Eu com o Outro: "a linguagem não é mera experiência, nem um meio de conhecimento de outrem, mas o lugar do Reencontro com o Outro, com o estranho e desconhecido do Outro"8. No diálogo o sentido da palavra interpelante sempre escapa à hermenêutica do Eu que nunca conseguirá interpretá-la adequadamente. O outro e sua palavra não podem ser reduzidos a uma psicologia, sociologia ou outro logos qualquer, sem que haja a desfiguração do rosto. É na relação face-a-face, entre o eu e o outro, que se estabelece a proximidade, cujo sentido primordial e último é a responsabilidade do eu pelo outro, sem exigência de reciprocidade, pois se houvesse tal exigência não se trataria mais de uma relação des-inter-essada. Nesta responsabilidade constitui-se a subjetividade do sujeito. "Esta fenomenologia da proximidade toca uma esfera que, na subjetividade, precede a intencionalidade, tendo uma trama espiritual anterior à consciência, ao saber e ao tempo rememorável"9 pois o primeiro movimento do homem não é a significação do mundo, mas o 7 Emmanuel LÉVINAS, Totalidad e Inifnito, Salamanca, Ed. Sigueme, 1977; p. 205 8 François POIRIÉ, Emmanuel Lévinas - Qui êtes-vous?, Lyon, La Manufacture, 1987; p. 21 9 Emmanuel LÉVINAS, "La Proximité", Archives de Philosophie, Nº 34, jul-set 1971; p. 373 3 desejo. Se no âmbito da consciência é impossível ao homem sair de si mesmo, considera Lévinas que o real contato com a alteridade somente é possível a partir do Desejo e da necessidade. A necessidade ou o desejo (grafado com "d" minúsculo) expressam o "... primeiro movimento do Mesmo... e também uma dependência frente ao outro"10, pois resulta na apropriação dos elementos do mundo e se conclui no gozo. O Eu que goza, é um Eu separado, inocentemente egoísta e só. A necessidade subsume a alteridade, morde o real, dela se apropria. O Desejo do Outro enquanto Outro é considerado por Lévinas tanto como o Desejo do Invisível: pois deseja o outro que como tal não pode ser visto sob a fenomenologia do olhar, sob a luz da razão, que permanece um mistério não profanado; quanto como Desejo do Infinito: pois o outro como outro revela-se infinitamente outro não podendo ser aprisionado em um conceito com suas determinações imanentes, manifestando-se sempre como surpresa e novidade; ou ainda como Desejo Metafísico: pois deseja o Outro para além da totalidade ontológica de um sentido que a ele se estabeleça previamente em nosso mundo. Este Desejo move o Eu e o Outro ao face a face, que se realiza como proximidade em uma relação de responsabilidade aberta ao Infinito. Tal Desejo não se conclui no gozo, pelo contrário o desejado não satisfaz o Desejo, mas o aprofunda. A metafísica, conforme Lévinas, deseja o outro para além das satisfações11. 10 Emmanuel LÉVINAS, Totalidad e Infinito p. 135 11 Em um capítulo dedicado à Fenomenologia do Eros, a relação erótica é tratada simultaneamente como necessidade e Desejo. Considera Lévinas que para além da totalidade erótica, que se estabelece entre o mesmo e o outro movida pelo desejo e que se conclui no gozo, afirma-se a transcendência da alteridade movida à proximidade pelo Desejo, sempre insatisfeito e aprofundado, e a transcendência de um terceiro, o filho, que é também outro, embora seja a continuação da vida do mesmo. 4 Esta metafísica contemporânea elaborada por Lévinas questiona a ontologia: " A ontologia que retorna o Outro ao Mesmo... renuncia ao Desejo metafísico, à maravilha da exterioridade, da qual vive este Desejo"12. Mais enfaticamente dirá Lévinas que "A filosofia do poder, a ontologia, como filosofia primeira que não questiona o Mesmo, é uma filosofia da injustiça"13. A relação ética movida pelo Desejo metafísico torna-se, portanto, anterior a qualquer filosofia, teoria ou projeto político. Ser-para-o-outro é a própria condição de constituição da subjetividade humana, emergindo da neutralidade de um haver impessoal e da significação neutra dos entes do mundo no horizonte do ser – horizonte em que os seres humanos e sua história são reduzidos a movimentos de conceitos no plano do saber, compostos teoricamente em função de projetos que os reduzem a entes manipuláveis e que, ao serem realizados, resultam na efetivação de inúmeras formas de injustiça. No face a face, na relação de proximidade entre o eu e o outro, estabelece-se a curvatura do espaço intersubjetivo, ou a assimetria: o outro situa-se num plano mais elevado que o eu. Pela sua palavra o Outro é mestre do Mesmo e o ensina, devendo o eu julgar sua vida a partir da palavra do outro, com a consciência de que jamais se é justo o bastante. Nesta relação de respeito movida pelo Desejo Metafísico estabelece-se a morada em que o eu se coloca a serviço do outro numa relação de proximidade, desde a qual os elementos do mundo, o trabalho e a economia são colocados como mediação. [ 2 ] Em De Outro Modo Que Ser - ou Para Além Da Essência, Lévinas trata da Responsabilidade pelo Outro, que vai além da autenticidade. Não se trata apenas de ser de uma outra maneira, autêntica, mas sim de realizar uma condição que extrapole o próprio modo do ser. Este outro modo que ser é uma espécie de substituição do Eu pelo Outro. 12 Ibidem, p. 66 13 Ibidem, p. 70 5 A responsabilidade pelo Outro é tratada, neste último livro, como estrutura fundamental da subjetividade. Afirma-se que a percepção do rosto não é da ordem da intencionalidade que ruma para a adequação. Assim, ao emergir o rosto do outro em meu mundo, desde que o outro me olha, sou por ele responsável. E somente no exercício de tal responsabilidade é estabelecida a proximidade. Perante o outro, a atitude humana é dizer Eis-me aqui!. Esta disposição de fazer alguma coisa por outrem, esta dia-conia é anterior ao dia-logo. O rosto, que emerge no mundo, simultaneamente nos pede e nos ordena, isto é, interpela-nos, pede-nos na condição ética de nos ordenar. Contudo, por mais que o eu assuma a sua responsabilidade pelo outro, não se pode exigir reciprocidade, pois a responsabilidade do outro é problema dele. Esta responsabilidade sem limites pelo outro é um tema que Lévinas retoma da literatura, citando Dostoievski, em Os Irmãos Karamazovi: "Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do que os outros". Para Lévinas somos responsáveis de uma responsabilidade total: "...Eu próprio sou responsável pela responsabilidade de outrem"14. Desta forma, ser responsável significa substituir-se ao outro. A justeza deste dispor-se à palavra interpelante do outro é julgada por um terceiro, mas a justiça somente tem sentido ao conservar o espírito do des-inter-esse que anima a idéia de responsabilidade pelo outro. Afirma Lévinas que isto parece utópico, mas que não há humano sem des-inter-esse. Em De Outro Modo que Ser, o horizonte místico do pensamento de Lévinas se faz plenamente presente. Neste substituir-se ao outro, faz-se presente a glória de Deus, afirmada como o de outro modo que ser: "Assumir a responsabilidade por outrem é, para todo o homem, uma maneira de testemunhar a glória do Infinito, de ser inspirado. Há profetismo, há inspiração no homem que responde por outrem, paradoxalmente, mesmo antes de saber o 14 Emmanuel LÉVINAS, Ética e Infinito, p. 91 6 que, concretamente, se exige dele. Esta responsabilidade anterior à Lei é revelação de Deus"15. Contudo, tal responsabilidade se impõe, independentemente desta dimensão mística, uma vez que "para ser digno da era messiânica é necessário admitir que a ética tem um sentido, mesmo sem as promessas do Messias"16. [ 3 ] Em Ética e Infinito, Philipe Nemo pergunta a Lévinas : “Mas o outro não é também responsável a meu respeito?” E Lévinas responde: “Talvez, mas isso é assunto dele. Um dos temas fundamentais, de que ainda não falamos, de Totalidade e Infinito, é que a relação intersubjetiva é uma relação não-simétrica. Neste sentido, sou responsável por outrem sem esperar a recíproca, ainda que isso me viesse a custar a vida. A recíproca é assunto dele. Precisamente na medida em que entre outrem e eu a relação não é recíproca é que eu sou sujeição a outrem; e sou "sujeito" essencialmente neste sentido. Sou eu que suporto tudo. Conhece a frase de Dostoievski: "Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do que os outros." Não devido a esta ou àquela culpabilidade efetivamente minha, por causa de faltas que tivesse cometido; mas porque sou responsável de uma responsabilidade total que responde por todos os outros e por tudo o que é dos outros, mesmo pela sua responsabilidade. O eu tem sempre uma responsabilidade a mais do que todos os outros.”17 15 Ibidem, p. 107 16 Ibidem, p. 108 17 Ibidem, p. 105 7 Essa idéia permanece presente em Para Uma Ética da Libertação Latino-Americana elaborada por Enrique Dussel e, com certas variações, em outras elaborações de autores diversos em torno da filosofia da libertação. Sou responsável pelo outro, mais que todos, especialmente quando sua palavra se dirige a mim, realizando um apelo na condição ética de exigir minha resposta. Não posso interpretar adequadamente tal palavra, pois tenderia a reduzi-la a meu mundo e devo respondê-la faticamente. E como diz Lévinas, “sou responsável por outrem sem esperar a recíproca”. [ 4 ] Creio que poderíamos associar essa atitude des-inter-essada à dádiva do Eu pelo Outro. Ora, “se ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, todos nos libertamos juntos”, então responder à palavra do outro desinteressadamente é uma dádiva a ele dirigida, em que colocamos nossa vida, nosso tempo, nossa atenção, ao serviço da sua libertação. Mas esse é também um momento de nossa própria libertação pessoal, pois nos libertamos juntos. Quando o outro reconhece a dádiva, tem-se o início de um processo solidário de libertação. Mas tal processo somente pode avançar quando o outro assume a atitude de reciprocidade na dádiva, mesmo que nada tenha que retribuir, mesmo que nada tenha a retribuir, exceto o reconhecimento de sua própria responsabilidade de colaborar na libertação de si mesmo e de todos que lhe são solidários. Não se trata de exigir-lhe uma retribuição pela dádiva recebida. Mas de uma esperança de que venha a colaborar no processo de libertação (de si e de quem lhe é solidário, pois “os homens se libertam em comunhão”). Não se trata de esperar a reciprocidade da dádiva, mas de desejar a libertação do outro, libertação que somente pode principiar quando ele reconhecer que a reciprocidade na dádiva está na base da “comunhão” entre as pessoas e de sua própria libertação. 8 E aí surge o paradoxo. Se o Outro não reconhece a dádiva e não se move pela reciprocidade na dádiva, estaria o Eu eticamente obrigado em seguir empenhando sua vida, seu tempo e sua atenção, nessa conduta solidária em relação a ele, ou deveria voltar-se a outros sujeitos mais dispostos a assumirem as responsabilidades de sua própria libertação (da libertação deles mesmos) e da reciprocidade na dádiva, contribuindo para a libertação de si e dos outros – uma vez que somos responsáveis por todos e não apenas por aquela pessoa? A resposta provisória a que cheguei é que se o Eu quer insistir nessa relação, poderá eticamente fazê-lo e, provavelmente, se o fizer, o fará por amor, mas não está eticamente obrigado a fazêlo. Contudo, por outro lado, frente à responsabilidade ética de colaborar com a libertação de todos e de cada um, poder-se-ia perguntar: em que condições a responsabilidade ética do Eu pelos Outros o obrigaria a atuar em colaboração com eles, dedicando-lhes maior tempo e atenção, que a este outro que ele ama? A resposta desse problema, por sua vez, ao que parece depende da solução de um outro problema ético: saber quando a necessidade de um se sobrepõe à necessidade de muitos e quando a necessidade de muitos se sobrepõe à necessidade de um. Em outras palavras, se somos responsáveis por tudo e por todos, como decidir a quem devo dar minha atenção e oferecer o tempo de minha vida, se a palavra interpelante me vem não apenas de uma pessoa, mas igualmente de inúmeras outras, de inúmeros grupos e coletividades? Como é impossível multiplicar ao infinito a disponibilidade de uma vida finita, cabe então solucionar o enigma: como decidir entre a necessidade de um e a necessidade de muitos? Na mesma medida em que se dedica a uma relação em particular, na qual não há reciprocidade libertadora, o Eu priva a outros – que igualmente lhe apelam na condição de oprimidos – da oferta 9 de sua dádiva, de sua solidária colaboração em prol da libertação de todos. Está, por outra parte, igualmente privado de poder libertar-se, inclusive dessa mesma relação em que continua a darse cotidianamente em sua gratuidade – pois as pessoas se libertam juntas. A menos que a resistência em libertar-se, vivida pelo outro, contribuísse para a libertação do mesmo – o que parece implausível. Ora, em que medida a necessidade desse outro, que não atua em reciprocidade na dádiva, está acima da necessidade de libertação de outros e inclusive do próprio Eu que se doa nessa relação? Seria ético privar a terceiros da dádiva da colaboração solidária do Eu, em favor de sua atenção e amor, a esse outro que reage com indiferença, ceticismo ou cinismo à dádiva recebida? Podemos explicitar esse paradoxo de outra maneira. O Outro aparece, como ente, no mundo do mesmo. Retirando-se tudo o que nele se aplica de camadas de significação ou sentido, chegar-se-ia a uma espécie de coisa em si misteriosa. Mas ele não pode ser reduzido à objetividade de seu corpo ou à significação de sua palavra. Ele é transcendente à possibilidade do Eu em compreendê-lo a partir de si mesmo. A abertura à sua palavra, se por um lado não nos permite conhecê-lo, no sentido de reduzi-lo a alguma identidade no mundo do mesmo, pode, por outro lado, ampliar a liberdade do Eu – se a atitude de ambos for colaborativa e solidária e se a partir dessa atitude dialógica realimentarem suas práxis de libertação, pessoais e coletivas. Entretanto, colaborar somente em favor do projeto de Um ou de Outro, pode reduzir, pode obliterar, a realização do projeto em liberdade daquele que fica preterido e igualmente o projeto colaborativo de ambos. O que salva, pois, a ética nessa relação é a ação colaborativa e dadivosa na realização da liberdade de ambos, na libertação de ambos – “pois ninguém liberta ninguém, 10 ninguém se liberta sozinho”. A quebra ou esquecimento da palavra na dádiva, o esvaziamento da ação colaborativa e solidária (em comunhão, para usarmos a expressão de Freire), leva à redução do campo de possibilidades de libertação aberto anteriormente – de um, de outro e de ambos. Ora, a ética realização histórica de cada pessoa é a reafirmação cotidiana de si mesma na ação de promover as liberdades públicas e privadas de todos, inclusive a sua própria, pois toda realização histórica é alguma forma de práxis e não há práxis sem afirmação do Eu em sua relação com o Outro, mediatizada pelo mundo. Portanto, a pretensa imediatez do face-a-face originário, como proximidade afirmada por Dussel como anterior a toda linguagem, a todo trabalho e a toda cultura – como momento ilocucionário anterior à comunidade de comunicação e fonte da ética –, não poderia existir, por exemplo, sem alguma onda sonora ou luminosa, isto é, sem a mediação de elementos do cosmos e sem a semiose indicial que nos possibilita perceber que tal objeto dinâmico é um ser humano, que estamos ante outra pessoa. Esta cognição não seria possível sem a mediação semiótica de elementos do mundo. Graças a essas mediações, do cosmos e do mundo, podemos perceber que estamos perante a outra pessoa a quem devemos acolher de maneira ética, pois somos por ela igualmente responsáveis, uma vez que "somos responsáveis por todos perante todos, e eu mais do que os outros". Este encontro ético do Eu com o Outro institui um novo campo aberto de possibilidades, de eventos colaborativos, que contribui para a libertação de ambos, isto é, para a ampliação das possibilidades do exercício da liberdade de ambos – ainda que a escolha possa ser renunciar ao convite ou reterritorializar o próprio campo de exercício da liberdade, abdicando ou não de um conjunto de possibilidades imediatas ou de longo prazo, em caráter provisório ou definitivo, em favor de um outro conjunto de possibilidades em colaboração solidária. 11 Pode sempre haver, em alguma medida, a ampliação desse campo de possibilidades, agregando-se novas possibilidades a outras já existentes. Mas como não temos a qualidade da ubiqüidade, como não podemos estar em todos os lugares a cada momento, não podemos realizar as infinitas possibilidades de campos colaborativos que se agregassem ao infinito. Assim, a relação ética do Eu com o Outro funda-se, pois, em uma dádiva, para que possa existir como relação desinteressada, e em uma renúncia de outros exercícios possíveis de liberdade, da vivência de outras relações com outras pessoas - pois não há como escutarmos e respondermos à palavra de cada uma de todas as pessoas ao mesmo tempo e nem ao longo de toda a nossa vida. Por isso, o princípio da libertação é o reconhecimento da dádiva, e sua permanente continuidade (a permanente continuidade da libertação) supõe a reafirmação cotidiana do face-a-face na reciprocidade na dádiva. Sem o reconhecimento da dádiva, a doação de um pelo outro não se conclui na libertação de ambos, mas na progressiva aniquilação do Eu pelo Outro, que se utiliza dele (do Mesmo), como meio para a realização dos interesses de si próprio. Somente com a reciprocidade na dádiva a relação instaurada pelo encontro do Eu com o Outro se torna efetivamente libertadora, pois “as pessoas se libertam juntas”. Neste caso, quanto mais se reorganiza o campo de possibilidades (materiais, políticas e educativo-informativas) em favor da promoção da ética liberdade de cada um, mais se amplia a liberdade de todos. Mas pode ocorrer que o Outro, em seu mistério, que nos interpela cotidianamente e a quem, de maneira dadivosa, servimos faticamente vá aos poucos assumindo atitudes e posturas cínicas, contando estrategicamente com nossa dádiva em favor de seu projeto. Na vida cotidiana não há o claro e escuro dos modelos formais e o amor pelo outro pode levar-nos à submissão de uma palavra que não compreendemos adequadamente e que não contribui para a libertação do próprio Eu e também do Outro. 12 Com efeito, a dádiva do Eu pelo Outro não espera retribuição. Mas se o outro, ainda que lentamente, tendo condições para fazêlo e compreendendo minimamente o convite que se lhe faz para solidariamente libertar-se, não colabora na libertação de si mesmo, na reconstituição solidária de seu mundo, fundando-o eticamente com outro horizonte projetual (re-significando suas mediações materiais, políticas, educativo-informativas e éticas em favor da libertação de todos, inclusive de si mesmo), e não reconhece a dádiva que alimenta a relação do Eu para consigo, o Eu não tem nenhuma obrigação ética de permanecer na sua entrega, não tem obrigação de obliterar os campos de possibilidade de sua própria libertação (por privar-se de vivenciar o face-a-face na práxis de libertação com outras pessoas), após ter insistido e reinsistido em sua dádiva nessa relação de busca de solidariedade libertadora com este outro que não assume a responsabilidade pela libertação de si mesmo e de todos. O Eu todavia, pode permanecer dedicado em sua dádiva a este Outro, porque a entrega de si mesmo no amor não tem limites, mas não está eticamente obrigado a isso. Pelo contrário, pode dar-se em relação solidária com outros na sua coerente busca de libertação de todos – de si e das outras pessoas. Por fim cabe destacar que o Eu é sempre responsável pelo Outro, independentemente de qualquer mérito do Outro. Não importa qual seja a sua atitude, se ética, indiferente, cética ou cínica, ele sempre deve ser tratado eticamente, devendo-se promover a sua libertação. Mas o Outro, cuja libertação o Eu deve promover, somente exerce eticamente sua liberdade quando também colabora para a libertação de si e dos demais – promovendo o justo compartilhamento das mediações materiais, políticas, educativo-informativas para a vivência ética das liberdades públicas e privadas de todos. Com base no princípio de solidariedade, portanto, cabe coletivamente impor limites ao exercício da liberdade de cada pessoa, do Eu, do Outro e de todos, sempre que tal exercício renegue as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas. 13 Considerações Finais O título deste texto não é uma afirmação, mas uma pergunta: A Reciprocidade na Dádiva – Condição Ética de Libertação?. Se, de fato, a reciprocidade na dádiva é o que alimenta os mais belos relacionamentos humanos e está muito mais presente em nossas sociedades do que possa parecer à primeira vista, todavia, tomá-la como condição ética da libertação é, para mim, ainda um questionamento. As reflexões apresentadas neste texto carecem ainda de maior problematização, cabendo explorar as conseqüências dessa suposição tendo em vista confirmá-la ou refutá-la, considerando as diversas dimensões da consistência humana. Tenho a impressão que muitos relacionamentos interpessoais na esfera privada, bem como engajamentos sociais e políticos de esquerda na esfera pública, começam a definhar quando a reciprocidade inicial alentada pelo acolhimento do outro e pelo desejo de libertação de si e de todos vai se perdendo. Isto é, quando a utopia coletiva sonhada na realimentação das liberdades do eu, do outro e de todos, vai dando lugar a realizações históricas em que o projeto coletivo (tanto nos relacionamentos privados quanto nos engajamentos públicos) é secundarizado em razão de interesses não-manifestos que, progressivamente, vão suprimindo a ética – a reciprocidade na dádiva – em favor do projeto de um (na esfera privada) ou do projeto de um grupo de pessoas (na esfera pública), que já não realimentam mais as liberdades pessoais e públicas de cada um e de todos. No campo da esfera privada, por exemplo, parece ético que um pai ou uma mãe não devam esperar que seus filhos retribuam as dádivas recebidas na relação inter-pessoal que viveram até o presente (mesmo porque isso é impossível: os filhos jamais poderão retribuir aos pais a vida que deles receberam). Mas 14 parece ético que devam esperar que os filhos progressivamente se libertem no aprofundamento dessa própria relação interpessoal com os pais, isto é, que reconheçam a dádiva recebida e passem a agir com eticidade, assumindo desinteressadamente sua responsabilidade para com todas as pessoas, inclusive para com seus pais, realimentando a reciprocidade na dádiva, contribuindo com suas atitudes práticas para a expansão das liberdades públicas e pessoais eticamente exercidas, para o bem-viver de todos. Uma vez mais cabe destacar que não se trata da reciprocidade pela dádiva recebida (pois, nesse caso, a relação não mais seria desinteressada e o sentido mesmo da dádiva teria sido perdido), mas sim da reciprocidade na dádiva, única condição de os filhos se libertarem e de colaborarem com a libertação de seus próprios pais e das outras pessoas. No campo da esfera púbica, por exemplo, particularmente no campo da economia solidária, já há uma considerável literatura sobre a economia da dádiva, economia do dom, economia de doação ou economia da oferta. Não apenas a comunidade científica reconhece que, mesmo nas sociedades capitalistas contemporâneas, a economia da dádiva coexiste com outras formas de práticas econômicas, como também um número crescente de economistas e cientistas sociais tem investigado suas relações com a expansão da economia solidária nas últimas décadas. Mas cabe igualmente problematizar essas reflexões e avaliar em que medida práticas compreendidas como economia da dádiva contribuem efetivamente para a libertação das pessoas e dos povos ou já não estariam subsumidas em intercâmbios de outra ordem, onde prevaleçam interesses não-econômicos. Se devemos agir eticamente em relação a todas as pessoas, e se as relações econômicas são relações entre pessoas, então devemos igualmente agir eticamente no campo econômico. Contudo, como eticamente decidir o que deve reger-se pela economia da dádiva e o que deve reger-se pela economia do intercâmbio de valores e como promover a libertação de todos com ambas as práticas? Como criticar ambas a partir da esperança da reciprocidade na dádiva e promover a libertação econômica do 15 eu, do outro e de todos no compartilhamento desses valores? Isso é necessário, pois, embora seja possível praticar o intercâmbio de valores de modo ético, a introdução da exigência de intercâmbio econômico pela ação realizada em favor do outro pode converter o que seria justo em injusto, o que seria ético em imoral. A doação de órgãos, por exemplo, é um ato eticamente defensável e nenhum valor econômico é intercambiado nessa relação, mas a venda de órgãos é eticamente reprovável e considerada um crime em quase todas as sociedades. Entretanto, há situações em que a passagem da dádiva à troca não é tão fácil de avaliar sob o aspecto ético, como a que ocorre entre trabalho voluntário e trabalho remunerado. Por exemplo. Numa parte dos clubes de troca, que se valem de moedas sociais emitidas pelos próprios participantes, é perceptível uma tendência de monetizar algumas atividades que antes poderiam ser consideradas como trabalho voluntário e remunerar as pessoas que as executam: “nós devemos evitar ao máximo todo trabalho voluntário, posto que na Rede este não tem sentido: temos a 'moeda social' de que necessitamos...”18. Esta afirmação, se fosse estendida para as diversas situações de trabalho voluntário, poderia levar a resultados paradoxais (e creio que a autora da frase não proporia tal extensão, limitando-a exclusivamente às atividades de coordenação compartilhada dos clubes nas redes de trocas). Ocorre, todavia, que muitas atividades que hoje consideramos justo remunerar – com moeda social ou oficial – como, por exemplo, a obtenção de sementes em uma feira para o plantio, poderiam ser compreendidas sob a lógica da dádiva, da responsabilidade de cada um por todos e de todos por cada pessoa – como ocorre, de certo modo, na prática do Trafkinto na tradição Mapuche, onde o recebimento da semente é apenas um aspecto em relação aos vínculos de responsabilidade muito mais amplos que se criam ou se confirmam entre as pessoas envolvidas no ato de dar e receber as sementes – sendo importante avaliar, nesse caso, em que medida tais solidariedades 18 Heloísa PRIMAVERA. "Como formar un primer club de trueque pensando en la economia global". Medellin/Bogotá, janeiro de 1999. Fonte: http://www3.plala.or.jp/mig/howto-es.html. Disponível em set/2007. 16 grupais também não levariam a níveis diferenciados de satisfação de necessidades no seio de uma mesma comunidade. E por fim, como a aplicação de interpretantes semióticos sobre relacionamentos que envolvem bens de valor econômico é modelizada pelos sentidos da cultura em que estamos situados, não é raro que ao final das “festinhas de Natal”, no Brasil, na forma de “Amigo Secreto”, algumas pessoas saiam pensando que deram um presente mais caro enquanto receberam outro de menor valor – posto que a lógica hegemônica de mercado, do intercâmbio econômico de valores no horizonte da escassez, acaba suplantando a lógica da dádiva, da própria celebração da festa. Vemos, pois, que, eticamente, uma parte das mediações materiais do exercício da liberdade – como um órgão a ser transplantado, por exemplo – não pode ser objeto de intercâmbio econômico e que outra parte delas, tanto pode ser oferecida como dádiva ou como elemento de intercâmbio em que se pratique preços justos. Mas todas essas ações somente serão eticamente exercidas se forem expressão do desejo de promover-se as liberdades públicas e privadas de todos em sua melhor composição possível, considerando que cada qual é responsável por todos e todos por cada qual, posto que ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, que as pessoas se libertam juntas, quando praticam a reciprocidade na dádiva, elemento fundante de toda práxis de libertação. Mantenho, todavia, a interrogação inicial, pois seria preciso problematizar melhor em que medida essa posição permitiria efetivamente enfrentar a atitude do cínico que se apresenta como solidário em processos colaborativos ao passo que atua em favor de seus interesses estratégicos. Bem como resolver o problema dos critérios a adotar para melhor compreender quando a necessidade de um tem prioridade frente à necessidade de muitos ou vice-versa, nos marcos dessa reciprocidade na dádiva. E ainda resolver o problema da relação entre amor e eticidade, particularmente na figura hipotética em que uma pessoa que se 17 move pela reciprocidade na dádiva vai descobrindo que a pessoa a quem ama (um amigo, filho, marido, esposa, pai, mãe, irmão entre tantas outras) e a quem oferece o melhor de si, está se tornando, a cada dia, mais cínica. Todavia, apresento-as neste Seminário Internacional Levinas e Educação, como uma contribuição ao debate. Imagino que o aprofundamento do paradoxo apresentado poderá contribuir na melhor compreensão e no aprimoramento das práxis de libertação. Referências Bibliográficas FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 ________. Política e Educação. São Paulo: Cortez, 1993 ________. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992 LÉVINAS, Emmanuel. Ética e Infinito, Edições 70, Lisboa, 2000 ________. Totalidad e Inifnito, Salamanca, Ed. Sigueme, 1977 ________."La Proximité", Archives de Philosophie, Nº 34, julset 1971 ________. De otro modo que ser - o más allá de la esencia. Salamanca: Sígueme, 1987 POIRIÉ, François. Emmanuel Lévinas - Qui êtes-vous?, Lyon, La Manufacture, 1987

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