Uma antiga tradição rabínica ensina que no texto bíblico não existe o antes ou o depois. Princípio talmúdico que subverte a narrativa sagrada ao tornar os tempos e os textos simultâneos à sua leitura. Relação que evitou o enrijecimento de uma escritura marcada pelo signo da santidade. O sentido hebraico de não haver nem antes e nem depois aponta para um método de leitura em que acontecimentos distanciados na ordem cronológica são percebidos como parte de um sistema de afinidades, uma simultaneidade que abole o tempo linear. Postura que possibilita a erupção de uma fagulha reveladora dentro da narrativa estabelecida. Luz originária que a mesmice repetitiva do hábito de ler o mesmo no mesmo tornou opaca ao transformar o texto em verdade cristalizada.
Ao injetar ruído no cristal enrijecido, a interpretação transforma a linha do tempo e torna o leitor parceiro da revelação que se dá no momento da leitura. Rav Isaac de Berditchev, um dos expoentes do movimento hassídico na Europa Oriental no século XVIII, encontrava nas preces diárias a inspiração para a maneira judaica de observar o texto:
“Dizemos ‘cria a luz e faz a escuridão’ no tempo presente e não ‘criou a luz e fez a escuridão’ em tempo passado, porque o processo de criação do mundo iniciado com os maasei breshit (atos do começo) não terminou até hoje, mas se mantém, a cada minuto e momento, em vias de ficar pronto. Como dizemos (nas benções diárias), Aquele que em sua generosidade renova a cada dia permanentemente os maassei breshit (atos do começo) Tal qual o senhor do universo renova a cada dia os maasei bereshit é dever do humano inovar a cada dia alguma coisa de sua vida”.
Na mesma linha de reflexão o Rav Aharon de Karlin afirmava que “tal qual o senhor do universo renova a cada dia os maasei bereshit (atos do começo) é dever do humano inovar a cada dia alguma coisa de sua vida”.
Para estes pensadores, a obra divina não se consumou na criação e os humanos são vistos como parte de um processo que influencia aqueles atos fundadores, ainda abertos para o futuro. De maneira semelhante, a revelação do Sinai também pode ser renovada a cada dia por quem a lê como quem cria mundos. A Torah, que fala na linguagem dos homens, deixa de ser um texto mágico composto de sinais ocultos e se transforma num discurso a ser interpretado pelos humanos que, deste modo, se tornam corresponsáveis pela criação sempre por recomeçar. Se o copista da Torah não pode errar um só caráter, pois destruiria a criação, o erro da grafia não deve ser confundido com enganos ortográficos. Devemos considerar igualmente a ordem das letras porque estas, em sua potência criativa, ao trocarem de lugar, produzem novos sentidos e mundos.
Em Provérbios 8, 30-31, a Torah, chamada de sabedoria, declara a sua condição de brincante que antecede a criação. “Eu fui para ele um instrumento, prazeres o dia inteiro jogando e brincando com ele em todas as horas. Com Ele e com os filhos dos homens”. O texto faz a Torah anteceder ao mundo e anunciar inúmeras possibilidades contidas no brincar das escrituras, os instrumentos da criação.
Na convergência das narrativas os tempos e os textos se encontram, se chocam e se fundem através da saturação de temas e palavras que a leitura permanente é capaz de provocar. A saturação, gerada pelo adensamento de uma leitura sem fim, pode, ocasionalmente, fazer surgir uma centelha reveladora que a tradição talmúdica chamou de Hidush. Hidush é a Inovação que, uma vez liberada pelo reaparecimento de uma fagulha originária encapsulada pelas cascas opacas da mesmice, torna-se capaz de criar novas revelações.
Para as posturas apegadas a uma ordem refratária ao jogo das possibilidades, ultrapassar o texto através da inovação é correr o risco da heresia. A heresia tem lugar na medida em que só um eleito de Deus poderia conhecer o caminho até Ele e interpretar a sua voz de forma verdadeira. Em tal postura, que sugere mistérios ocultos inacessíveis aos seres comuns, resta aos homens o lugar de intérpretes desesperados.
Enquanto certas tradições veem no texto bíblico a palavra encarcerada pela santidade, o pensamento talmúdico espera que em cada geração possam surgir novos intérpretes do texto igualmente sagrado. Dor Dor Ve Dorshaiv - cada geração e seus intérpretes. Em hebraico a palavra Lidrosh, procurar e solicitar, originou Drash, interpretação. Interpretar tem aí o sentido de persistir no estudo permanente da palavra sem um objetivo preconcebido. Ato de entrega e dedicação que nos permite, eventualmente, ultrapassar os limites da repetição revelando de maneira súbita o acontecimento fundador de nova possibilidade. Um instante de fulgor que logo se desfaz. Um anjo súbito que louva Deus em seus cânticos para desaparecer em seguida, como narra certa tradição talmúdica, através de uma imagem que inspirou Walter Benjamin.
Tudo se passa como se os antigos escribas e mestres da Torah, pressentindo os riscos da sacralização da palavra revelada, temessem pelo futuro da escritura. Suspeitando do potencial de violência contida num texto santificado, percebendo as possibilidades do terror a ser praticado em nome da verdade divina, cientes dos perigos contidos na ideia de um Deus senhor da palavra que abarca o Todo, aqueles homens instauraram a Inovação-Hidush como maneira de protegerem os futuros leitores das ameaças sufocantes do tempo enrijecido.
Não será casual o episódio em que Deus procura e pergunta por Adão e Eva como se não soubesse onde encontrá-los em seu paraíso (Gen. 3, 9). É como se no início de todos os princípios já fosse necessário deixar claro que a Torah nos falará de um Deus cuja presença implica ausência e desconhecimento. Um Deus cuja ausência radical fosse marcada por uma presença só desvelada através de uma palavra sempre carente de interpretação. Quando Rubem Alves define a teologia como a saudade de Deus, ele está apontando para o sentimento de falta como motor do esforço de conhecê-Lo. O judaísmo, sem theo-logia, vive a permanente saudade de Sua ausência através dos seus traços contidos nas passagens da Torah.
Experiência oposta ao paganismo, um mundo sufocante e sem saídas que obriga os homens a uma negociação permanente com divindades sempre presentes, tudo sabendo e influenciando. Como alternativa, em seu brincar, a Torah indicou a diversidade dos sentidos da palavra como caminho de saída da totalidade dominadora. Princípio judaico que evitou a ideia de um Deus pessoal que protege os seus filhos e com eles conserva uma intimidade assustadora. Sair deste sufoco implicou percebê-Lo como fora do mundo, no qual vivemos e morremos sem a Sua graça.
Existe algo na língua hebraica que convida ao sair de si em direção ao diverso. Algo que marcou a narrativa das origens de maneira definitiva. Em hebraico ninguém é. Não existe a conjugação do verbo ser em tempo presente. Em hebraico Deus não falou com Moisés o célebre sou o que sou, usado na tradução ocidental encantada pelo ser que é. Um erro de tradução criador de uma teologia incapaz de sustentar a radical e definitiva saudade de Deus. Dificuldade que alimentou a pressa messiânica, o desejo de criar paraísos artificiais distantes do mundo real, como nos ensina Catherine Chalier. Pressa que construiu um paradoxo insustentável para o pensamento ocidental. Por um lado, a atração pelo desejo revolucionário contido no discurso dos profetas hebreus; e pelo outro, a incapacidade de lidar com as transformações dentro de um tempo de longa duração. Duração messiânica. Duração permanente. Devir sem porvir.
Hebraico. Língua sem vogais. Sem elas a palavra lida convida à multiplicidade. Ao movimento. Nomadismo. Criação. Mas também ao risco da desorganização dispersiva dos sentidos do texto. Sem terreno para conter o movimento expansivo, as letras se dispersariam retornando à forma antes da forma. Ao Tohu Vavohu, o nada de nada. Será por isto que Deus forma a sabedoria da Torah antes de criar o mundo?
Antes dela, só existiam letras que viviam em total separação. Quando correu a notícia que Deus se dispunha a criar o mundo, elas se apresentaram diante do futuro autor suplicando pela oportunidade de ser o primeiro caráter da palavra criadora. Depois de ouvi-las, o autor escolheu a letra Beit porque através dela começa Brarrhá, bênção, e também Bereshit, início, a palavra fundadora do mundo e da Bíblia judaica. Com a letra Beit de Baruch , abençoado, Deus iniciou a organização das palavras e deu texto ao mundo. Uma vez escrita a Torah com fogo negro sobre fogo branco, na medida em que Deus a lia, linha a linha o mundo foi sendo criado.
O Maharal de Praga, associado à lenda do Golem, acrescenta uma inovação ao esclarecer o uso do Beit como letra inicial da criação do mundo. O sábio, que viveu entre 1512 e 1609, considerava que o uso desta segunda letra do abecedário, com valor numérico de dois, signo da dualidade e da ruptura, apontava para um mundo sem coesão. Se o desejo de Deus fosse criar um todo unificado, ele usaria a letra Alef, o símbolo maior da unidade.
“Com o início criou Elohim céus e terra”. Foi assim que os cabalistas desleram o primeiro termo da primeira sentença, subvertendo em poesia a palavra signo da criação. Be Reshit pode ser lido em hebraico como sendo com o início e não no início, como quer o modo corriqueiro de entender o texto. Reshit deixa de ser “começo” e se transforma na primeira forma de revelação divina, instrumento de criação de um Deus que se mantém fora do mundo, sujeito oculto pela ação.
Após a destruição de Jerusalém, a dispersão dos judeus e o desterro da Torah, os homens resolveram complementar a escrita de Deus criando vogais para que o texto não corresse o risco de retornar à dispersão. Se, desfeito o texto fundador e, com ele, o mundo da criação, seria o fim da possibilidade de renovar a revelação e o fim do povo judeu. Assegurando a continuidade criativa da alma viva do mundo, poderíamos salvá-la da rigidez, protegê-la na dispersão e manter o processo de renovar a cada dia os atos da criação. Ler e reler até que do rumor criado pelas palavras surja, ou não, o Hidush.
O primeiro a ouvir a palavra revelada foi Abrão. Um arameu que ficou conhecido como IVRI, Hebreu, por ter chegado MeeVer, do outro lado do rio. Mais tarde os seus descendentes chegariam do outro lado do deserto trazendo a Torah do Sinai e construindo ao longo dos séculos um modo de ler a terceira margem do texto sagrado. Um modo de vida chamado Israel. Um conceito mais que um povo, como assinala Emmanuel Lévinas. Conceito que não se reduziu a ter fé em um Deus para alcançar a sua presença protetora. Era uma nova ótica. Uma ética centrada na presença de um outro que interpela a minha eterna responsabilidade por ele. O monoteísmo faz de Deus uma questão humana ao considerar que a única maneira de conhecê-Lo é praticar a Torah escrita na linguagem dos mortais. Percebendo esta peculiaridade e intrigados com aquele povo estranho, os gregos nos consideraram ateus. Sem Deus. Só Torah.
Shaná Tová.
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