A sobrevivência dos costumes judaicos, fenômeno que resultou, em partes, no surgimento do criptojudaísmo, aconteceu principalmente em função da localização geográfica das comunidades de cristãos-novos, que se situaram, em geral, nas regiões mais desconectadas dos grandes centros urbanos, em relativo isolamento do resto do mundo. Em Portugal, observa-se a ocorrência do fenômeno nas zonas montanhosas e fronteiriças, como a região das Beiras, de Trás-os-Montes e do Alto do Douro. No Brasil, isso se verificou praticamente em todas as regiões, com destaque para o interior de Minas Gerais e para o interior do Nordeste.
Sem dúvidas, o isolamento geográfico ajudou na manutenção dos costumes judaicos, que, em muitos casos, vão se associar e se mesclar com os costumes locais, sempre sob o efeito do medo causado pela perseguição religiosa, o que terminará criando uma cultura ímpar e extremamente rica completamente baseada no segredo: o criptojudaísmo, tema que continua aberto a novos estudos, importante episódio da história judaica que deve ser valorizado como uma verdadeira saga humana.
O criptojudaísmo se originou com base nas crenças e práticas judaicas da Península Ibérica do fim do período medieval, com fortes influências do misticismo judaico: a cabala. Contudo, as influências místicas mais fortes vêm de um ramo da cabala pouco conhecido e pouco utilizado atualmente, a cabala da magia. Durante esse período, diversos rabinos e cabalistas importantes praticaram ativamente a cabala da magia, como Yosef Caro (que deixou um livro sobre o tema, o “Maggid”), o Rabino Abraham Abulafia, o Rabino Joseph della Reina e tantos outros que se colocaram na busca de alterar o curso da natureza através dos métodos cabalísticos. Esses místicos empregavam o nome do Criador em ordens e composições diferentes, fazendo encantamentos, amuletos, selos, exorcismos, papiros e pergaminhos mágicos, círculos de proteção e diversas outras expressões místicas e supersticiosas.
Essas práticas certamente foram de grande importância para o judaísmo praticado na Península Ibérica durante o período medieval. Com o tempo, esses costumes poderão ser preservados na forma original ou, em inúmeros casos, terminarão recebendo influências da cultural local, predominantemente cristã, o que implicou na reinvenção e na recriação dessas práticas, que serão, por sua vez, bastante funcionais no meio criptojudaico, servindo como ferramenta importantíssima na resistência contra o cristianismo.
Ainda que diante de todas as dificuldades, o criptojudaísmo encontrará meios de comemorar as festividades judaicas, criando uma nova linguagem e estabelecendo novas formas de velhos costumes que, inevitavelmente, se distanciaram da tradição judaica majoritária sem, contudo, perder o elo com sua essência original: a Lei de Moisés, os costumes dos Antigos, as coisas da gente da Nação. Diante das dificuldades e das ameaças, o criptojudaísmo fez exatamente o mesmo que o judaísmo tradicional tem feito ao longo dos últimos milênios: se adaptado como forma de resistência.
Por séculos, os criptojudeus tiveram que enfrentar problemas diversos na realização das comemorações judaicas, já que não podiam mais seguir o Calendário Judaico (que é lunar). Por isso, as festividades passaram a corresponder aos meses do Calendário Gregoriano: o Pessach acompanhava a Semana Santa dos cristãos, a festa de Chanukah correspondia ao período do Natal dos católicos, entre outros. O mais curioso, porém, foi a manutenção da prática dos jejuns da rainha Ester e do Yom Kipur. A própria rainha Ester, aliás, teve grande importância como referência religiosa, principalmente no judaísmo criptojudaico, em que as mulheres terão um papel de liderança e de perpetuação das crenças através das gerações.
Grande parte das práticas criptojudaicas se relacionam intimamente com a vida rural, visto que muitos dos cristãos-novos eram pequenos proprietários de terra ou, no caso do Brasil, ricos proprietários. Ter acesso à terra permitiu que os criptojudeus tivessem mais facilidade em manter algumas práticas judaicas, como a alimentação kosher.
Com facilidades na agricultura e na pecuária, era mais fácil evitar o consumo de animais não permitidos, bem como controlar o abate ritual dos animais de acordo com as regras judaicas. Há, inclusive, pratos de origem criptojudaica que são reconhecidos como comidas típicas da culinária portuguesa: as alheiras de frango e as abafeiras de carne de vaca ou de cordeiro. Por outro lado, a crença nos preceitos alimentares judaicos resultou na criação de práticas e superstições que ajudarão na manutenção dos costumes de origem judaica.
No ciclo da vida, foi possível manter certos costumes, mas sempre com a renovação de determinados conceitos e a realização de adaptações às mais diversas situações de uma realidade difícil. Por exemplo, o casamento entre primos surgiu como forma de manter e guardar os segredos da família (o que também se fazia por razões de segurança). Ou ainda, a impossibilidade e o perigo da realização da circuncisão dos bebês, que gerou atividades simbólicas para marcar o oitavo dia de vida de um recém-nascido, quando se celebra o pacto da Casa de Israel com o Criador. Havia grande preocupação e muito respeito com os mortos e com o funeral, além de várias formas de lembrar e homenagear alguém que já se foi.
O mais interessante na força da cultura criptojudaica é que, apesar de quinhentos anos terem se passado desde o início da perseguição religiosa sistemática em Portugal e Espanha, muitos desses costumes não somente sobreviveram nas tradições e na cultura familiar dos criptojudeus, mas também se tornaram parte da cultura popular. Muitas pessoas até hoje praticam esses costumes diariamente sem saber do seu vínculo direto com o judaísmo.
De fato, as diferentes populações criptojudaicas viveram em diferentes regiões e sob diferentes condições socioeconômicas. Assim, reagiram ao desafio da sobrevivência de formas muito distintas, o que resultou em uma incrível diversidade das práticas criptojudaicas, por vezes até mesmo dentro de um mesmo espaço geográfico. Em Portugal, foi possível manter costumes judaicos de forma mais próxima do antigo judaísmo praticado na região antes da Inquisição. Na América, porém, os costumes mudaram de forma acentuada (por exemplo, não havia como obter vinho e farinha de trigo no interior do Nordeste).
Em minhas andanças, principalmente em Portugal, é sempre muito comum encontrar pessoas que me contam sobre esses costumes, sempre que já tem certa intimidade comigo.
Quando pergunto de onde vêm esses costumes, as respostas que recebo geralmente são estas:
"Coisa dos antigos!".
"Tradição da família!”.
"Coisa da gente da Nação”.
“Faz mal se eu não fizer”.
Ou, simplesmente: “Foi assim que minha avó me ensinou”.
Hoje, graças às diversas pesquisas e aos muitos estudos que vêm sendo produzidos sobre a temática do criptojudaísmo (além da maior facilidade que temos em acessar os arquivos da Inquisição), podemos alcançar cada vez mais informações sobre essas práticas e costumes. Contudo, para abranger e compreender um fenômeno tão extenso e profundo como o criptojudaísmo, ainda é necessário realizar muitos trabalhos sobre esses costumes, essas tradições e essas figuras históricas tão diversificadas.
Contudo, ainda importante frisar duas observações muito importantes e que merecem atenção.
Em primeiro lugar, há uma diferença profunda na forma com que diferentes famílias de diferentes regiões mantiveram as práticas de origem judaica. Por vezes, famílias comprovadamente cristãs-novas de uma mesma localidade mantiveram práticas que outras abandonaram, e vice-e-versa. Essa diversidade é natural, sendo apenas mais uma das expressões do quão diversificado e complexo é o criptojudaísmo.
Em segundo lugar, é preciso dizer que a realização dessas práticas não significa, necessariamente, que uma família é de origem cristã-nova. É preciso se aprofundar mais no estudo dessas raízes, ainda que grande parte da população das regiões que mencionei anteriormente (Trás-os-Montes, Alto Douro e Beiras, em Portugal, Minas Gerais e sertão do Nordeste, no Brasil) certamente venha a ter raízes judias. Por vezes, algumas práticas se tornaram parte integrante da cultura local. Isso, porém, não desqualifica a existência de uma alma verdadeira judaica em seu interior, mesmo que nenhum de seus antepassados tenha raízes judaicas.
Por fim, quero trazer dois textos que podem nos ajudar a compreender melhor como o fenômeno do criptojudaísmo atuou na vida de pessoas reais, em diferentes lugares e em diferentes tempos:
"Eu cá não sou ‘judeia’ (sic), mas, se fosse, não me envergonhava, porque até Deus, antes de ser português, foi judeu!” (Depoimento de uma senhora criptojudia de Acorzelo, em Portugal, extraído do artigo “Criptojudeus em Portugal”, escrito por Inácio Steinhardt ).
“No Brasil, durante a Visitação do Santo Ofício em Pernambuco, o Visitador, no dia 15 de dezembro de 1594, registrou uma denúncia contra o cirurgião cristão novo Fernão Soeiro que ‘à missa, quando o sacerdote alçava a Deus, alçando a hóstia sagrada’ foi visto estar de joelhos e batendo nos peitos para dissimular, mas pronunciando ‘eu creio no que creio...’ ”.
fontes: Utilizei os seguintes estudos para a composição deste capítulo:
César Santos Silva. Na rota dos judeus no porto. Porto: Cordão de Leitura, 2013.
António Júlio Andrade e Maria Fernanda Guimarães. Judeus em Trás-os-Montes: a rua da Costanilha. Lisboa: Âncora Editora, 2015.
Antonio Gutemberg da Silva. Entre a Cruz e a Estrela de Davi: problematizando as identidades judaicas no Brasil Imperial.
Campina Grande: Universidade Federal de Campina Grande, 2013.
Tânia Neumann Kaufman. Novos personagens. Novas identidades.
O marranismo contemporâneo em Pernambuco. Em: Helena Lewin. Judaísmo e Modernidade: suas múltiplas inter-relações. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009. Pp. 133-146.
Luiz Alberto Barbosa. A resistência cultural dos judeus no Brasil: presença marrana no Novo Mundo. Joinville: Clube de Autores, 2020.
DIAS, Eduardo Mayone. Portugal’s secret jews: the end of an era. Rumford: Peregrinação, 1999.
Arnold Wizniter. Os Judeus no Brasil Colônia. São Paulo: Pioneira Editora, 1966.
Flávio Mendes de Carvalho. Raízes Judaicas no Brasil. Sinop: Nova Arcádia, 2018.
Elaine Eiger e Luize Valente. A Estrela Oculta do Sertão. Documentário. 2005.
Nuno Guerreiro Josué. Os judeus secretos e o aperto de mão. A bem da Nação, 2015. Disponível em: < https://abemdanacao.blogs.sapo.pt/judeus-secretos-e-o.... >.
Marcos Silva. Aspectos fundamentais para o estudo do marranismo. Em: Simpósio da Associação Brasileira da História das Religiões, X, 2008, Assis. Disponível em: < https://www.catedra-alberto-benveniste.org/.../Marcos...>.
Schulamith Halevy e Nachum Dershowitz. Obscure practices among New World Anousim. Cidade do México: Proceedings of the Conferencia Internacional de Investigación de la Asociación Latinoamericana de Estudios Judaicos, 1995. Disponível em: .
Michael Freund e Eliahu Birnbaum. Você tem raízes judaicas? Guia prático para descobrir suas raízes judaicas. Jerusalém: Shavei Israel, 2015.
Jane Bichmacher de Glasman. Presença Judaica na língua portuguesa: expressões e dizeres populares em português de origem cristã-nova ou marrana. Disponível em: < http://www.filologia.org.br/viiifelin/39.htm>.
João Henrique dos Santos. Resgate histórico da vivência judaica no Brasil. “Gente da Nação”: os judaizantes e a preservação do judaísmo no Brasil. Em: Helena Lewin. Judaísmo e Modernidade: suas múltiplas inter-relações. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009. pp. 64-71.
Guiora Barak. Gracia de Lisboa. (Em hebraico). Tel Aviv: Web Reporter, 2012.
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