Como é possível que o judaísmo secular, que foi a principal força do judaísmo do século XX, desenvolvendo a cultura Yddish e permitindo o surgimento do sionismo e a criação do estado de Israel, esteja entrando no Século XXI na defensiva. Para responder esta questão devemos, como ponto de partida, lembrar que, como movimento social, não existiu nem existe um judaísmo secular, mas movimentos sociais e intelectuais no interior do judaísmo secular, e estes movimentos hoje estão em crise.
O que unifica os indivíduos seculares democráticos (a modernidade conhece formas de secularismo não democrático, como o fascismo ou o comunismo) é uma visão de mundo que dissocia o poder religioso do poder político a partir de valores de respeito a liberdade de consciência individual, a tolerância e a diversidade de crenças. Ser secular define os fundamentos sobre as quais deve dar-se a sociabilidade dentro de uma sociedade moderna democrática, mas não identifica nenhum objetivo específico para a ação social dos indivíduos ou grupos. Somente em certas circunstâncias históricas, em particular quando se trata de defender a própria existência de uma sociedade secular, a luta pela secularização se constitui num movimento social, como nos países onde a Igreja era poderosa (em vários países da Europa ou no México), ou hoje em Israel, onde a religião e os grupos religiosos colonizaram parte do estado.
No judaísmo moderno a secularização afetou tanto crentes e não crentes em deus, e ambos procuraram alternativas ao judaísmo ortodoxo. Os judeus crentes, em geral de orientação liberal, optaram por reformular as praticas e discurso religioso tradicional aceitando os valores da modernidade: a liberdade de consciência, o pluralismo, a tolerância, e a democracia. Os grupos seculares ateus (em particular aqueles associados à tradição marxista tinham no seus programas um componente ateu militante) ou agnósticos, tiveram no sionismo (nas maiorias de suas tendências e principais personalidades, desde o liberal Hertzl, pasando pelo nacionalismo chauvinista de Zeev Jabotinsky ao marxismo-leninismo de Meir Yaari) e no bundismo seus principais canais de expressão. Embora numa perspectiva sociológica pode-se argumentar que estes movimentos constituíam religiões seculares, podemos seguir os senso comum e diferenciar entre ideologias e movimentos seculares (não teístas) e religiões secularizadas (teístas), como os conservative e reformist). Esta opinião é compartilhada por Ruth Calderon3 ”Unlike what is commonly accepted, it is not the relationship with God that separates secular and religious Jews. I tend to define the secular Israeli as a non-halakhic Jew, a definition embodying a wide range of secularity. It includes complete atheists, those with a more traditional approach, and those who experience a Divine presence in their lives but do not accept rabbinical authority or belong to a formal congregation or observe the commandments. Religious people are also far from constituting a monolithic community. Various liberal trends make it possible to interpret customs and ceremonies in new ways.”
O judaísmo secular nunca foi, pelo menos ate hoje, um movimento social unitário, nem constituiu ele uma clara identidade coletiva na atualidade, isto é, um movimento social
3 “We enter the Talmud barefoot”, http://www.culturaljudaism.org/ccj/articles/26
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capaz de gerar um sentimento de comunidade relativamente fechada, delimitada por sistemas de crenças e/ou ideologias comuns, com instituições responsáveis pela manutenção da unidade, homogeneidade e reprodução do conjunto. Isto é, para se constituir em um movimento social os judeus seculares precisam de um cimento comum, de uma causa, ideologia, valores - como no seu momento foi a criação do estado de Israel ou a defesa da cultura Yddish - que os unifiquem a pesar de suas diferenças individuais. Mas, no momento, o que existe hoje são judeus seculares, isto é indivíduos isolados, cada um definindo e escolhendo aqueles aspectos da cultura judia que são relevantes para ele, na base de dúvidas constantes, das mais variadas experiências e constante inestabilidade- já que o assegura a estabilidade são consensos coletivos que limitam a dissonância cognitiva e homogenizam os discursos.
Os judeus seculares contemporâneos estão associados a um judaísmo profundamente instável, por falta de instituições capazes de dar-lhes uma unidade através da elaboração de um denominador comum. Isto faz que os judeus seculares, embora majoritários em Israel e na diáspora, sejam particularmente frágeis quanto à institucionalização de seu judaísmo. Os judeus seculares são maioria no povo judeu, mas minoria nas instituições comunitárias. Em particular a intelectualidade judia esta totalmente afastada, na sua grande maioria, da vida ativa das instituições judaicas, que aparecem como conservadoras, quando não reacionárias.
O sentimento de judeidade do judeu secular se expressa geralmente em termos de uma vontade de dar continuidade a memória de pais ou avós, uma solidariedade com outros judeus que possam ser perseguidos ou em perigo, mas não encontra expressão simbólica ou ideológica clara. Assim seria mais rigoroso indicar que a maioria do povo judeu está constituída por judeus confusos, no sentido de que são pessoas que se sentem judias não ortodoxas, mas não conseguem definir claramente o sentido deste sentimento. Por quê? Porque como comentamos anteriormente, as ideologias que no século XX permitiam dar expressão ao sentimento do judeu secular entraram em crise.
Os dois pilares sobre os quais se construiu o judaísmo secular não religioso foram o socialismo e o sionismo, promovendo ambos uma visão renovada da história judia. Não é preciso comentar a crise do socialismo, e, no que se refere ao sionismo ele realizou o sonho, e, no momento, Israel perdeu o atrativo que tinha antes da criação do estado e nas suas primeiras décadas. Na época pioneira (minha geração ainda se alimentou da força mística da noção de chalutz, hoje incompreensível para os jovens).
O judaísmo secular está intimamente ligado a uma visão histórica do povo judeu e a reconstituição do messianismo. A própria história judia, como disciplina de conhecimento, é produto do judaísmo secular. Ambos pilares hoje estão em crise. Vivemos um período de descrédito da idéia do progresso e de temor e incerteza sobre os ventos da historia. Hoje as novas gerações não encontram um sentido particular seja na história em geral e na história judia em particular. No lugar de História com maiúscula cada um se refugia na subjetividade e procura construir sua própria estória individual. O messianismo secular entrou em crise com a desintegração das grandes ideologias políticas.
O que está faltando? O que pode funcionar como um aglutinador e estabilizador da identidade judaica secular? A resposta é simples: uma causa ou objetivos comuns e/ou estruturas institucionais profissionais ou voluntárias, responsáveis pela organização/reprodução coletiva.
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Como e quando o judaísmo secular voltará a produzir movimentos sociais capazes de renovar o judaísmo? Se alguma certeza podemos ter é que o futuro é imprevisível e que nunca é uma repetição do passado. O processo de reconstrução do judaísmo secular não será a obra de intelectuais individuais. Estes podem contribuir realizando diagnósticos dos percursos do passado que possam ajudar a elaborar novas visões do futuro.
Podemos, no melhor dos casos, identificar algumas tendências no interior do judaísmo
que podem ajudar a atuação dos indivíduos e grupos de judeus seculares neste período de transição histórica. A nossa contribuição principal é quebrar os dogmas e camisas de força intelectual que foram andaimes do judaísmo secular no século XIX, mas que hoje são barreiras para seu desenvolvimento.
1) O novo judaísmo secular será produto de um diálogo crítico com o judaísmo religioso secular, e em geral com a cultura judia religiosa milenar. Não é casual que o principal movimento do judaísmo secular, representado pelo rabino Sherwin Wine, partiu de alguém formado na tradição religiosa liberal.
2) O ateísmo ou agnosticismo não preenchem as necessidades emocionais de dar sentido a vida. Eles motivaram gerações que acreditavam no poder da ciência, da razão e o progresso num período histórico em que a religião tinha poder político e se confrontava com os valores da modernidade. O ateísmo e o agnosticismo continuam mas em geral não motivam para a ação coletiva, nem respondem as necessidades de produção de sentido e de mobilização coletiva.
3) O antissemitismo e a solidariedade frente a perseguições de judeus continuará a ser um dos cimentos da identidade judia. Mas o antissemitismo não pode continuar sendo apresentado como um destino inelutável, nem ser associado, implícita ou explicitamente, a um discurso/sentimento que separa em forma visceral o judeu do não judeu.
4) O Estado de Israel deverá ser um dos pilares do judaísmo secular, tanto pela criatividade potencial de criação de uma cultura judia secular pelos israelenses, como pela identificação com o Estado de Israel pelos judeus da diáspora. Infelizmente o conflito árabe-israeli deformou o processo de identificação da diáspora com Israel em torno da guerra e atrasou o processo de constituição de um judaísmo secular no estado de Israel.
5) A importância do estado de Israel no deve obliterar que os judeus seculares enfrentam problemas diferentes na Diáspora e em Israel. Em Israel existe um motivação e um objetivo comum que unifica os judeus seculares: a luta contra a teocratização do Estado de Israel. Na diáspora esta motivação não existe. Por sua vez no Estado de Israel temas relativos da tradição judaica de uma forma ou outra estão presentes no sistema educacional e no dia a dia da vida do pais. Mais complexo ainda é a questão da definição de quem é judeu. Em Israel, a causa da lei do retorno, ela define o direito a cidadania, mobilizando interesses econômicos e políticos que não existem na diáspora.
Na diáspora por sua vez as culturais são muito diferentes afetando os conteúdos do judaísmo secular. Sendo efetivamente pluralista o judaísmo secular só tem a ganhar desta diversidade, mesmo reconhecendo que ela possa gerar tensões.
6) Finalmente, sabemos que o judaísmo é um criação geracional. Mais ainda nos tempos modernos. As primeiras gerações de judeus seculares se construíram como uma reação aos pais, que tinham como referencia um judaísmo ortodoxo, com valores rígidos que não respondiam aos desafios e expectativas do mundo moderno. Uma boa parte dos jovens
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judeus seculares na atualidade não tem nenhuma referência clara do judaísmo a partir ou contra a qual definir objetivos. Embora o novo judaísmo secular será fundamentalmente uma resposta das novas gerações, com propostas adequadas ao novo contexto histórico, a geração que está saindo de cena tem uma responsabilidade de apoiar e facilitar e apoiar esta transição, pois se não temos uma proposta clara para oferecer nem um modelo contra o qual deva-se reagir, podemos transmitir um legado cultural, reconhecendo que o testamento será escrito por aqueles que se disponham a assumir a herança da tradição judaica secular.
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