No Brasil, é muito comum que alguém, como forma de respeito, chame o outro de "doutor". Isso é feito principalmente pelas pessoas consideradas "simples", que valorizam o outro por seu "grande conhecimento".
Esse tema me chamou a atenção para uma linda história que Paulo Freire contava já antes de ser reconhecido como grande pedagogo.
Conta-se que o professor dava aula de alfabetização em uma aldeia de pescadores e as pessoas o chamavam de “doutor”, pelo fato de Paulo Freire ter uma sabedoria que os demais pescadores não possuíam.
Um dia, quando estava dando aula, os alunos o avisaram de uma tempestade que iria cair: "Doutor Paulo Freire, é melhor o doutor ir para casa, que vai cair um temporal danado!".
O professor olhou para o céu e viu um dia claro, com muitas nuvens, mas sem sinal de chuva, e pensou: "Essa gente inventa coisas mesmo!".
Passou-se uma hora. O céu ficou todo escuro e caiu um temporal tão grande e tão forte que Paulo Freire não pôde voltar para casa.
No dia seguinte, ao entrar na sala de aula, o professor perguntou: "Como vocês sabiam que ia cair um temporal?"
Eles responderam: "Ah, é muito simples, doutor! Quando há vento forte sudoeste e muitas gaivotas voando nessa direção, isso é sempre sinal de temporal".
Para Freire, esse foi o momento que mudou o rumo de sua vida como educador, o fez entender que todas as pessoas têm um tipo de conhecimento. Todos nós somos sábios em alguma coisa!
Paulo Freire, como forma de dar um sentido maior a essa situação pedagógica peculiar, faz um desafio aos seus alunos:
"Eu farei dez perguntas de minha sabedoria que vocês terão que responder!" Depois, vocês farão 10 perguntas da sabedoria de vocês que eu terei que responder".
Freire perguntou: "Quem foi Sócrates?”.
Todos riram, pois não sabiam responder!
Eles perguntaram a Freire:
"Qual é o período da pesca dos camarões?".
Freire riu, pois não sabia responder.
Freire nos ensina que todos nós somos "doutores" em alguma coisa! E com certeza cada um tem muito que aprender com o outro.
A grande sabedoria de Freire não foram os seus anos de estudo de direito ou, depois, todo seu período de atuação como professor de alfabetização, mas sim a sua capacidade humana de entender que sua "sabedoria" era muito limitada: ele não era melhor que os pescadores, seu grande saber foi aprender a compreender e a tratar com dignidade e respeito o conhecimento do outro.
O que é o conhecimento?
Essa é uma grande questão!
Médicos, professores, acadêmicos, lideranças religiosas, cientistas, entre outros, são com certeza seres com muitos conhecimentos, mas, como seres humanos, são pessoas limitadas, pessoas muito limitadas mesmo!
Ter certos conhecimentos não quer dizer que somos donos da verdade!
Quando Orpa, minha falecida esposa, estava num processo avançado de tratamento de câncer, no hospital Hadassah de Jerusalém, nas mãos de uma das maiores especialistas no tratamento de leucemia do mundo, a doutora, depois de usar todo o seu recurso e todos os seus saberes, nos declarou:
"Com todo o meu conhecimento de anos de estudo e de pesquisa, ainda sou muito limitada".
De um lado, sua franqueza nos tirou a esperança de que seus "conhecimentos" curariam Orpa do câncer. Do outro, porém, sua grandeza foi o seu lado humano, que não nos deixou cair no erro das ilusões.
Edgar Morin, em seu livro “Os Setes Saberes necessários para educação no futuro”, nos alerta sobre o que é o conhecimento :
"O ensino fornece conhecimento, fornece saberes. Porém, apesar de sua fundamental importância, nunca se ensina o que é, de fato, o conhecimento. Ao examinarmos as crenças do passado, concluímos que a maioria contém erros e ilusões."
Todos nós temos um tipo de conhecimento! Crenças, ideias, pensamentos, religiões e visões de mundo, todos nós estamos constantemente vivendo em erros e ilusões!
Temos que ter muita consciência de que esses conhecimentos são extremamente importantes e válidos na vida, mas são conhecimentos ainda muito limitados. Vivemos no erro da ilusão, pois pensamos que sabemos tudo, mas na verdade ainda sabemos pouco sobre nossas vidas e sobre o mundo que nos rodeia.
O grande desenvolvimento do conhecimento humano é um fato indiscutível e as proezas tecnológicas são deslumbrantes, mas isso tudo nada mais é do que uma pequena partícula do que vem a ser o segredo oculto existente em nossas vidas e em nosso mundo.
O grande conhecimento é ser consciente das limitações de nossos conhecimentos de nossas "verdades"!
Eu acredito no que acredito!
Mas minha crença está muito limitada e longe de ser uma verdade absoluta! Tenho consciência de minha limitação humana.
Sempre quando me perguntam: "Por que os judeus colocam quipá se essa mitzvah não está escrita na Torah?".
Eu respondo: "É para lembrar aos rabinos que eles não são deuses e sim seres humanos cheios de fraquezas e de limitações”.
Saber de nossas limitações e fraquezas é uma forma de sabedoria, através da qual complementamos o nosso vazio na sabedoria do outro e o outro complementa o seu próprio vazio em nossa sabedoria!
Exatamente como fez Paulo Freire, ao aprender o grande valor que tem a sabedoria dos pescadores, através de sua própria limitação.
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