ÉTICA JUDAICA SEGUNDA PARTE - Prof. Jacob Lichts e Prof. André Neher
NO PENSAMENTO JUDAICO POSTERIOR[4]
A religião judaica tem um caráter essencialmente ético. Desde suas origens bíblicas até o seu presente estágio de desenvolvimento, o elemento ético sempre foi central na religião judaica, tanto como princípio assim como objetivo. Entretanto, a íntima relação entre a religião e a ética foi interpretada de forma diferente em diferentes períodos do Judaísmo. Pelo menos duas tendências principais podem ser diferenciadas: a primeira identifica a ética judaica com a moderação (o meio-termo) e a segunda insiste nas exigências extremas de uma ética absoluta.
Na literatura talmúdica, as preocupações legislativas nunca são a última palavra. Não apenas a agadá[5] completa e modera a autonomia da halachá[6] por meio de lições morais e não apenas o tratado Avot é uma antologia de pensamento moral; mas, com maior obviedade, em cada conflito entre a rigidez jurídica da lei e os critérios da ética, o último supera o primeiro. O temor a D’us é superior à sabedoria. A ação sobrepuja as idéias. O homem é chamado a tomar uma posição não a favor da razão, mas a favor do bem. A ética aparece não na forma de princípios especulativos, mas em termos de experiência humana. Os sábios do Talmud são apresentados como exemplos morais e o ideal de santidade é identificado com uma vida escrupulosamente honesta e pura.
A literatura medieval e moderna testemunha uma tendência dupla de formular uma ética que seja tanto teórica como prática. Alguns filósofos judeus da Idade Média desenvolveram formulações sistemáticas de idéias éticas judaicas, como por exemplo Saadiah Gaon e Shlomo ibn Gabirol, cujo Tikun Midot há-Nefesh é inusitado por expor uma ética autônoma que não tem conexão com a doutrina religiosa. Shemona Perakim, obra clássica da ética judaica escrita por Maimonides, mostra semelhanças com a Ética de Aristóteles. Raramente encontramos um filósofo ou exegeta[7] judeu da Idade Média que não devote pelo menos parte de sua obra a demonstrar que o corpo do pensamento judaico e suas fontes bíblicas ou talmúdicas giravam ao redor da ética.
Esta tendência continua até a era moderna, quando filósofos judeus desde Moshe Mendelssohn colocam a ética no centro de sua descrição do universo. Por exemplo, Moritz Lazarus e Elias Benamozegh no século 19, deram a esta tendência uma expressão clássica: um compondo uma obra clássica denominada Die Ethik des Judentums (“A Ética do Judaísmo”) e o outro comparando a ética Judaica com a Cristã (Morale juive e morale chrétienne). Seria inadequado mencionar aqui Espinosa, pois enquanto seu Tractatus Theologico-Politicus mostra influências judaicas, o mesmo não se pode dizer com respeito à sua Ética.
Além da literatura mencionada, existe uma série de obras que são importantes para o desenvolvimento da ética judaica medieval e moderna, porque refletem uma experiência individual e coletiva. A Kabalá e outras correntes místicas contribuíram muito para a emergência destas obras. Exemplos deste tipo de literatura são : Hovot há-Levavot de Bahya ibn Paquda, o Sefer Hassidim de Hasidei Ashkenaz[8] e Mesillat Yesharim de M. H. Luzzatto. Estas obras se tornaram muito populares e foram adotadas por círculos judaicos opostos, tais como os Hassidim[9] e os Mitnagedim[10].
No século 19, sob a influência de R. Israel Lipkin (Salanter), o movimento Musar[11] reintroduziu a primazia da ética nas academias talmúdicas altamente intelectuais.
O meio-termo e o absoluto.
A íntima conexão entre a religião e a ética foi interpretada diferentemente em diferentes períodos da vida e do pensamento judaicos. Podem ser diferenciadas pelo menos duas tendências principais. Alinhada com o ideal estabelecido nos Provérbios e em vários Salmos, bem como nos escritos judaicos da era helenística e ensinamentos do período rabínico em Ertez Israel, a ética judaica empenha-se em ser moderada. Condena excessos, obviamente no sentido do mal, mas também no sentido do bem: condena igualmente a ganância e o desperdício, a devassidão e a abstinência, o prazer e o asceticismo, a irreverência e o fanatismo.
Maimônides desenvolveu esta identificação da ética judaica com o meio-termo (Shemonah Perakim; Yad, De’ot) ao longo do tempo, ele tende em direção a uma posição mais ascética. A maioria dos filósofos judeus modernos seguiu o ponto de vista geral de Maimônides e o tema da moderação na ética judaica. Consequentemente, eram opostos ao extremismo ético tal como o do cristianismo, e este ponto de vista se tornou um lugar comum na apologética[12] judaica.
Entretanto, a noção de moderação não é a única faceta da ética judaica. Os livros bíblicos de Jó e Eclesiastes criticam fortemente o meio-termo. Principalmente no livro de Jó, onde o meio-termo é recomendado por seus amigos, mas é finalmente rejeitado por D’us. O Talmud vai mais adiante ao declarar que a atitude de moderação é a atitude de Sodoma: “Aquele que diz, ‘O que é meu é meu e o que é teu é teu’ – este é o meio-termo e alguns dizem que este é o modo de Sodoma” (Avot 5:13). Portanto, não é surpreendente que o Talmud exalte os sábios bem conhecidos que, indo além da estrita letra da lei (lifenim mishurat hadin), deram toda sua fortuna aos pobres (R. Yeshevav), praticaram o celibato (Ben Azzai), gastaram muitas horas do dia e da noite em orações (R. Hanina b. Dosa) e, no geral, pareceram se conformar aos ideais monásticos dos Essênios[13]. O asceticismo é central nas obras de Bahya e Luzzatto, do Sefer há’Hassidim e, de certa forma, mesmo para o hassidismo do século 18. É verdade que neste movimento místico, cuja influência ainda se sente hoje em dia, o asceticismo foi transformado em alegria, mas a ética desta alegria era tão extrema e absoluta quando a ética ascética.
Portanto, seria incorreto associar a ética judaica com uma atitude uniforme e moderada. Esta atitude, que é frequentemente apresentada como um contraste à ética cristã, é na verdade apenas um aspecto da ética judaica. O outro aspecto, com suas exigências extremas e absolutas, é igualmente típico do pensamento judaico.
Bibliografia
NA BÍBLIA: F. Wagner, Geschichte des Sittlichkeitsbegriffs (1928-36); A. Weisner, Religion und Sittlichkeit der Genesis (1928); W.I. Baumgarten, Israelitische und altorientalische Weisheit (1933), 4-7, 24-30; F.R. Kraus, in: ZA, 43 (1936), 77-113; Kaufmann Y., Toledot, 1 (1937), 27 ff., 31 ff., 431-2; 2 (1945), 68-70, 557-628; J. Hempel, Das Ethos des Alten Testaments (1938); H.Duesberg, Les scribes inspirés, 1 (1938), 92-126, 481-500; H. Frankfort, Ancient Egyptian Religion (1948), 56-80; N.W. Porteous, in H.H. Rowley (ed.), Studies in Old Testament Prophecy (1950), 143-56; E. Neufeld, The Hittite Laws (1951), 53; A. Gelin, Morale et l’Ancient Testament (1952), 71-92; H. Kruse, in: Verbum Domini, 30 (1952), 3-13, 65-80, 143-53; H. Bonnet, Reallexikon der aegyptischen Religionsgeschichte (1952); W.G. Lambet, in: Ex Oriente Lux, 15 (1957-58), 184-96; idem, Babylonian Wisdom Literature (1960); S.E. Loewenstamm, in: Sefer S. Dim (1958), 124-5; idem, in BM, 13 (1962), 55-59; E. Jacob, in: VT Supplement, 7 (1960), 39-51.
[4] N.doT.: À Bíblia
[5] Nome dado às seções do Talmud e do Midrash contendo exposições homeliéticas [N.doT.: pregações com fundo moral] da Bíblia, histórias, lendas, folclore, anedotas ou máximas; em contraste com a halachá.
[6] Nome dado às partes do Talmud que trata de questões legais; em contraste com a agadá.
[7] Aurélio: Pessoa que faz exegese(s), que é um comentário ou dissertação para esclarecimento ou minuciosa interpretação de um texto ou de uma palavra. Aplica-se de modo especial em relação à Bíblia, à gramática, às leis.
[8] Movimento revivalista religioso de misticismo popular dentre os judeus da Alemanha na Idade Média.
[9] Membro do movimento religioso Hassídico fundado por Eliezer ben Eliezer Ba’al Shem Tov na primeira metade do século XVIII.
[10] Nome que originalmente se referia aos opnentes do Hassidismo na Europa Oriental.
[11] Movimento ético que se desenvolveu na segunda metade do século XIX dentre os grupos de judeus ortodoxos na Lituânia; fundado por R. Israel Lipkin (Salanter).
[12] N. do T. e Aurélio: Discurso que busca justificar, defender ou louvar algo.
[13] N. do T. e Aurélio: Diz-se de ou que pertence a uma das seitas judaicas, do II séc. a.C. ao primeiro séc. d.C., e que constituía um grupo fechado, coeso, de vida ascética. Os Manuscritos do Mar Morto são geralmente associados à esta seita.
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