ÉTICA JUDAICA - SEGUNDA PARTE Prof. Jacob Lichts e Prof. André Neher
Por: Prof. Jacob Lichts (Doutor, Professor Associado da Universidade de Tel Aviv) e Prof. André Neher (Doutor em Filosofia, Doutor em Medicina e Rabino, Professor de História e Fiolsofia na Universidade de Strasbourg e na Universidade de Tel Aviv)
Ensinamentos éticos na Bíblia.
MEIOS DE INSTRUÇÃO.
A orientação acerca da ética bíblica é uniforme em seu conteúdo, mas é expressa de formas diferentes de acordo com o ponto de vista de cada livro específico da Bíblia. A expressão mais forte e mais radical do objetivo da ética bíblica é encontrado nas repreensões dos profetas, que castigam as pessoas implacavelmente pelas transgressões éticas e exigem a perfeição ética sem concessões (principalmente no âmbito da ética social). Mas suas repreensões não constituem realmente instrução, porque nem sempre ensinam como a pessoa deve se comportar em determinadas situações.
A lei Bíblica se preocupa em fornecer o ensinamento ético através de ações específicas. Os capítulos jurídicos da Torá proíbem explicita e detalhadamente várias transgressões, tais como o assassinato, o roubo e a chantagem e exigem explicitamente o sustento aos pobres, o amor ao próximo, etc.
O livro de Jó também enfatiza o mandamento que sujeita o indivíduo ao comportamento justo, porém por outro aspecto. Jó não se contenta em protestar não ter cometido as transgressões de roubo, opressão ou chantagem, mas afirma que na realidade, observou os mandamentos éticos positivos, sendo rigoroso consigo mesmo mais além do que a Lei exigia. Ele reivindica, por exemplo, que fez muito para apoiar aqueles que precisaram de sua ajuda: “Porque eu resgatei os pobres que choravam e os órfãos que não tinham quem os ajudasse. A benção dos desamparados veio sobre mim e eu alegrei o coração da viúva” (Jó 29:12-13). Jó 31 contém uma série de juramentos relativos à sua probidade começando com “’im”, “se”, que frequentemente é equivalente a “eu juro”: “(Eu juro) que não rejeitei a causa de meu servo....” (verso 13): “(Eu juro) que não fiz do ouro minha crença....” (verso 24).
Os ensinamentos éticos em todos os livros bíblicos estudados até agora são considerados como elementos essenciais das exigências de D’us para com os homens. A este respeito, a atitude de Provérbios é diferente. A maioria dos provérbios objetiva provar ao homem que vale a pena seguir o bom caminho, ao invés de seguir a simples sabedoria mundana. Por exemplo, os Provérbios não declaram que o adultério é proibido, mas apontam para os perigos do mesmo (6:24-35). Numa linha semelhante estão os seguintes versos: “Não difame o servo perante seu amo, a fim de que o mesmo não te amaldiçoe e fiques culpado”(Prov. 30:10) e “Se teu inimigo tiver fome, da-lhe pão para comer... pois assim amontoarás brasas em fogo sobre a sua cabeça e o Senhor recompensar-te-á” (25:21-22). Embora também haja referência a D’us aqui, o homem é colocado no centro da instrução ética. Esta abordagem é mais prática e mais funcional do que a abordagem da Bíblia em geral, devido à orientação educacional prática do Livro dos Provérbios. Porquanto os Provérbios pertencem à categoria geral da literatura das Sabedorias que prevalecia no antigo Oriente Médio, ainda assim ele difere de outras obras deste tipo no que tange à importância que dá à instrução ética: nos Provérbios a instrução ética assume uma importância fundamental, ao passo que na literatura das Sabedorias dos povos do antigo Oriente Médio ela assume uma importância secundária. Existem duas razões para tal fato: em primeiro lugar, os Provérbios objetivam a educação de jovens cidadãos, ao passo que as obras de Ahikar e a literatura didática egípcia dão mais ênfase no treinamento do oficial; em segundo lugar, a literatura das Sabedorias Israelita identificou o homem justo com o sábio por um lado e, por outro, o homem mau com o tolo (ex. Prov. 10:21,23).
Eclesiastes, naqueles capítulos que se desviam da literatura das Sabedorias estereotipada, põe sombras de dúvidas sobre o benefício da erudição em geral e sobre a instrução ética funcional contida nos Provérbios. Ele sabe que “não há um homem justo sobre a terra que não faça o que é melhor (isto é, que leve aos resultados mais desejáveis, 6:12)e que não erre” (7:20). Em seu desespero ele diz: “não exagere a bondade...”(7:16-18).
INSTRUÇÃO ÉTICA NA NARRATIVA BÍBLICA.
A narrativa é única forma literária bíblica que não está completamente permeada por orientação ética. Nas narrativas bíblicas, a instrução ética é apresentada indiretamente na forma de palavras de louvor para feitos nobres e mesmo este louvor, na maior parte das vezes, não é explícito. Feitos que são incluídos como sendo nobres incluem a fuga de José do adultério(Gen. 39:7-18), a misericórdia demonstrada por Davi [ou David] ao não matar Saul (Sam I 24; 26:3-25) e a história de Rispa [ou Rizpa], filha de Aiá (Sam II 21:10). Abraão é o único personagem bíblico que pode ser verdadeiramente descrito como um modelo ético. Os outros heróis na narrativa bíblica (Judá, José, Moisés, Calebe [ou Caleb] e Josué), embora abençoados com excelentes qualidades, não são descritos como modelos de perfeição ética. A Bíblia retrata claramente suas falhas (embora de forma implícita: a fraqueza de caráter de Isaque, a astúcia de Jacó, os pecados de Saul e de Davi) e não faz a menor tentativa de encobrir os defeitos de seus heróis. Entretanto, a regra na narrativa bíblica é que a punição apropriada segue às transgressões específicas. Jacó, que comprou o direito de progenitura por meio de fraude, é, por sua vez, enganado por Labão; Davi é punido por seu pecado com Bate-Seba e assim por diante.
Mesmo assim, estas características não são especialmente enfatizadas e assim não dão à narrativa bíblica uma orientação ética importante. Foi dito que a narrativa bíblica não assume uma clara postura moral, mas se regozija no sucesso de seus heróis, mesmo que os eles ajam de forma imoral (Jacó quando comprou o direito de progenitura; Raquel quando roubou os ídolos da casa; Jael quando matou Sísera). É verdade que a principal intenção da narrativa bíblica é tornar conhecida a grandeza de D’us, cujos atos são os únicos perfeitos. Assim, o narrador pode se dar ao luxo de ver os seres humanos como eles são. Ele não se força a moralizar demais seus heróis ou fazer deles homens-modelo, mas introduz o aspecto ético apenas quando o mesmo se adapta à história. Assim, na atitude do narrador para com seus heróis, observamos um tipo de conhecimento tolerante e informado acerca da natureza humana. É isto o que torna a maioria das histórias bíblicas fascinantes.
A LEI E A ÉTICA.
A Bíblia não faz uma distinção formal entre aqueles mandamentos que poderiam ser classificados como éticos daqueles que são relacionados com rituais (circuncisão, sacrifícios, a proibição de ingestão de sangue), ou daqueles que lidam com medidas jurídicas comuns. Portanto, os sábios são obrigados a diferenciar entre as categorias acima e verificar onde aparece o objetivo ético. Este pode ser diferenciado através do reconhecimento da diferença entre o mandamento básico geral “Não matarás” e as leis relativas ao castigo do assassino (ex. Num 35). Assim, os mandamentos éticos, no senso estrito, são leis sem sanções a serem obedecidas mas não impostas a força, por exemplo, os mandamentos sobre a respigadura, o feixe esquecido e a borda do campo (Lev. 19:9-10, em hebraico: Leket, Shichechá e Pe’á[3]): a proibição de fazer mal ao órfão e à viúva (ex. Ex. 22:21-23) ou a proibição ao atraso do pagamento dos salários (Lev. 19:13).
Além dos mandamentos claramente éticos, existe uma tendência geral na lei bíblica de se enfatizar a aspiração de justiça que é a base para toda lei. Na verdade, toda lei se baseia no ponto de vista ético do legislador e tenta, através do poder de regulamentos práticos, impor a ética aceita pela sociedade existente. A lei bíblica, entretanto, aspira de forma clara e consistente atingir este objetivo, como no exemplo “Justiça, justiça perseguirás” (como resumo dos regulamentos práticos relativos ao estabelecimento dos tribunais, Deut. 16:18-20). As leis da Bíblia são definidas explicitamente como “leis e estatutos justos” (Deut. 4:8). Da mesma forma, as razões éticas e sociais foram vinculadas a várias leis, tais como o mandamento para o Shabat: “Que teu escravo e tua escrava denscansem como tu. Lembra-te de que foste escravo...” (Deut. 5:14-15). Esta tendência é revelada nas leis cuja finalidade era defender o fraco e limitar o poder do opressor, tais como as leis regendo o escravo hebreu (Ex. 21:2; Deut. 15:12) ou a punição relativamente branda ao ladrão.
Ainda assim, é preciso lembrar que a lei se baseia não apenas no ponto de vista abstrato do legislador, mas também nas necessidades da sociedade de acordo com sua estrutura e costumes peculiares. Assim, uma avaliação da lei bíblica é incompleta se for considerado apenas o aspecto ético. Entretanto, a discussão do objetivo da lei não é essencial para a definição da ética bíblica.
NO PENSAMENTO JUDAICO POSTERIOR[4]
A religião judaica tem um caráter essencialmente ético. Desde suas origens bíblicas até o seu presente estágio de desenvolvimento, o elemento ético sempre foi central na religião judaica, tanto como princípio assim como objetivo. Entretanto, a íntima relação entre a religião e a ética foi interpretada de forma diferente em diferentes períodos do Judaísmo. Pelo menos duas tendências principais podem ser diferenciadas: a primeira identifica a ética judaica com a moderação (o meio-termo) e a segunda insiste nas exigências extremas de uma ética absoluta.
Na literatura talmúdica, as preocupações legislativas nunca são a última palavra. Não apenas a agadá[5] completa e modera a autonomia da halachá[6] por meio de lições morais e não apenas o tratado Avot é uma antologia de pensamento moral; mas, com maior obviedade, em cada conflito entre a rigidez jurídica da lei e os critérios da ética, o último supera o primeiro. O temor a D’us é superior à sabedoria. A ação sobrepuja as idéias. O homem é chamado a tomar uma posição não a favor da razão, mas a favor do bem. A ética aparece não na forma de princípios especulativos, mas em termos de experiência humana. Os sábios do Talmud são apresentados como exemplos morais e o ideal de santidade é identificado com uma vida escrupulosamente honesta e pura.
A literatura medieval e moderna testemunha uma tendência dupla de formular uma ética que seja tanto teórica como prática. Alguns filósofos judeus da Idade Média desenvolveram formulações sistemáticas de idéias éticas judaicas, como por exemplo Saadiah Gaon e Shlomo ibn Gabirol, cujo Tikun Midot há-Nefesh é inusitado por expor uma ética autônoma que não tem conexão com a doutrina religiosa. Shemona Perakim, obra clássica da ética judaica escrita por Maimonides, mostra semelhanças com a Ética de Aristóteles. Raramente encontramos um filósofo ou exegeta[7] judeu da Idade Média que não devote pelo menos parte de sua obra a demonstrar que o corpo do pensamento judaico e suas fontes bíblicas ou talmúdicas giravam ao redor da ética.
Esta tendência continua até a era moderna, quando filósofos judeus desde Moshe Mendelssohn colocam a ética no centro de sua descrição do universo. Por exemplo, Moritz Lazarus e Elias Benamozegh no século 19, deram a esta tendência uma expressão clássica: um compondo uma obra clássica denominada Die Ethik des Judentums (“A Ética do Judaísmo”) e o outro comparando a ética Judaica com a Cristã (Morale juive e morale chrétienne). Seria inadequado mencionar aqui Espinosa, pois enquanto seu Tractatus Theologico-Politicus mostra influências judaicas, o mesmo não se pode dizer com respeito à sua Ética.
Além da literatura mencionada, existe uma série de obras que são importantes para o desenvolvimento da ética judaica medieval e moderna, porque refletem uma experiência individual e coletiva. A Kabalá e outras correntes místicas contribuíram muito para a emergência destas obras. Exemplos deste tipo de literatura são : Hovot há-Levavot de Bahya ibn Paquda, o Sefer Hassidim de Hasidei Ashkenaz[8] e Mesillat Yesharim de M. H. Luzzatto. Estas obras se tornaram muito populares e foram adotadas por círculos judaicos opostos, tais como os Hassidim[9] e os Mitnagedim[10].
No século 19, sob a influência de R. Israel Lipkin (Salanter), o movimento Musar[11] reintroduziu a primazia da ética nas academias talmúdicas altamente intelectuais.
O meio-termo e o absoluto.
A íntima conexão entre a religião e a ética foi interpretada diferentemente em diferentes períodos da vida e do pensamento judaicos. Podem ser diferenciadas pelo menos duas tendências principais. Alinhada com o ideal estabelecido nos Provérbios e em vários Salmos, bem como nos escritos judaicos da era helenística e ensinamentos do período rabínico em Ertez Israel, a ética judaica empenha-se em ser moderada. Condena excessos, obviamente no sentido do mal, mas também no sentido do bem: condena igualmente a ganância e o desperdício, a devassidão e a abstinência, o prazer e o asceticismo, a irreverência e o fanatismo.
Maimônides desenvolveu esta identificação da ética judaica com o meio-termo (Shemonah Perakim; Yad, De’ot) ao longo do tempo, ele tende em direção a uma posição mais ascética. A maioria dos filósofos judeus modernos seguiu o ponto de vista geral de Maimônides e o tema da moderação na ética judaica. Consequentemente, eram opostos ao extremismo ético tal como o do cristianismo, e este ponto de vista se tornou um lugar comum na apologética[12] judaica.
Entretanto, a noção de moderação não é a única faceta da ética judaica. Os livros bíblicos de Jó e Eclesiastes criticam fortemente o meio-termo. Principalmente no livro de Jó, onde o meio-termo é recomendado por seus amigos, mas é finalmente rejeitado por D’us. O Talmud vai mais adiante ao declarar que a atitude de moderação é a atitude de Sodoma: “Aquele que diz, ‘O que é meu é meu e o que é teu é teu’ – este é o meio-termo e alguns dizem que este é o modo de Sodoma” (Avot 5:13). Portanto, não é surpreendente que o Talmud exalte os sábios bem conhecidos que, indo além da estrita letra da lei (lifenim mishurat hadin), deram toda sua fortuna aos pobres (R. Yeshevav), praticaram o celibato (Ben Azzai), gastaram muitas horas do dia e da noite em orações (R. Hanina b. Dosa) e, no geral, pareceram se conformar aos ideais monásticos dos Essênios[13]. O asceticismo é central nas obras de Bahya e Luzzatto, do Sefer há’Hassidim e, de certa forma, mesmo para o hassidismo do século 18. É verdade que neste movimento místico, cuja influência ainda se sente hoje em dia, o asceticismo foi transformado em alegria, mas a ética desta alegria era tão extrema e absoluta quando a ética ascética.
Portanto, seria incorreto associar a ética judaica com uma atitude uniforme e moderada. Esta atitude, que é frequentemente apresentada como um contraste à ética cristã, é na verdade apenas um aspecto da ética judaica. O outro aspecto, com suas exigências extremas e absolutas, é igualmente típico do pensamento judaico.
BIBLIOGRAFIA
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