Postado por Jayme Fucs Bar em 24 de Fevereiro de 2011 às 8:16am
Franz Rosenzweig
O judaísmo como método.
O filósofo Franz Rosenzweig (1866-1929) é considerado por muitos comentadores como um dos mais importantes pensadores judeus do século XX. Um historiador que acabou se tornando filósofo, um filósofo que poderíamos chamar de existencialista e também, se nossa tentação de enquadrá-lo persistir, um pragmatista fundamentado, curiosamente, sobre a experiência de Deus. Rosenzweig é um pensador judeu que afirma seu judaísmo como um método. Esta afirmação não tem, contudo, a finalidade de validar a religião, pois não é ela que serve de pressuposto básico ao seu pensamento; pelo contrário, esse pensamento surge da experiência pessoal – experiência esta que se exprime na linguagem do judaísmo.
Uma das marcas do pensamento de Rosenzweig é a reflexão sobre a morte. A constatação de que todo mortal vive a angústia da morte, de que todo novo nascimento aumenta a angústia pois aumenta a mortalidade, de que tudo o que nasce, morre, e de que todos os mortais aguardam com terror o dia de sua viagem para o escuro, leva a razão a construir sentidos para remover a cruel contingência em que vivemos (Kant, Hegel, os grandes sistemas racionalistas). Para o pensador, grande parte dessa filosofia se constrói a partir da negação das angústias do terreno, pois o ser quer viver, quer permanecer, quer vir a ser. Assim, a grande tentação da filosofia seria a necessidade de integrar a morte em um sistema especulativo. Essa tentação, porém, é vencida pela própria experiência concreta que inviabiliza a racionalização da morte em um sistema fechado de pensamento.
Para Rosenzweig, é preciso optar por uma filosofia que leve em conta a existência real vivida por um ser humano, sem transformar o humano em um conceito abstraído pela racionalidade. O autor deixa claro que sua prioridade são as questões existenciais concretas, e sabe que elas pedem uma renovação total do pensamento. E é com esse espírito, sem negar sua condição humana e judaica, que ele desenvolve o que denominou de novo pensamento, no qual a existência torna-se o ponto de partida para o pensar, que é determinado pela consciência da finitude e do tempo.
Esse “novo pensamento” propõe a Revelação como categoria principal. Fundado a partir de uma crítica à filosofia tradicional [1],
o “novo pensamento” propõe a experiência como princípio e limite do conhecimento. Pode-se notar aqui, também, uma forte crítica à modernidade, por sinal característica de boa parte do do pensamento judaico renascido do século XX (Rosenstock-Huessy, Buber, Levinas). Se o Iluminismo europeu tinha trazido consigo a emancipação política dos judeus, em fins do século XIX e começos do XX o preço a pagar por ela tinha-se tornado alto demais: a integração social completa, a assimilação cultural e, conseqüentemente, a ruptura com as próprias raízes. Para Rosenzweig, essa crítica toma a forma ambiciosa do “novo pensamento”, cujas categorias são menos dependentes da Grécia e mais próximas de Jerusalém.
Podemos dizer que a construção do pensamento do autor inicia-se com o seu interesse pelo idealismo alemão, como nos mostra sua tese de doutoramento, Hegel und der Staat (“Hegel e o Estado”), defendida em 1908 sob a orientação de Friedrich Meinecke. A primeira parte das pesquisas iniciadas então só é terminada em 1912; segue-se ainda uma segunda parte, que reúne um denso material de trabalho publicado em 1920.
A inspiração para este trabalho surge do contato de Rosenzweig com o livro de Friedrich Meinecke, Weltbürgertum und Nationalstaat (“Burguesia mundial e Estado nacional”), cujo tema era justamente o desenvolvimento da idéia de nacionalismo na Alemanha a partir do século XIII, e, pois, tratava num dos capítulos da idéia de Estado em Hegel. Para Rosenzweig, a filosofia política de Hegel, dependente de um sistema do Absoluto, não resultava em algo universalista, mas, sim, nacionalista. As idéias políticas de Hegel – considerado por Meinecke o fundador da moderna idéia de Estado – desembocariam, segundo Rosenzweig, muito mais em uma exacerbação do autoritarismo do que em sua moderação. Como de fato se viu.
Ao reagir contra a influência do idealismo alemão, Rosenzweig acabará por transformar a idéia de “ser pensado a priori” na de “um ser que deve ser compreendido no tempo”. Se o ser a priori é concebido como eterno, dotado dessa espécie de “impassibilidade e imortalidade espiritual” própria do plano das idéias, o ser no tempo é cambiante, sujeito à dor e à morte. Por isso, todo o seu pensamento é um exercício constante de equilíbrio à beira do abismo, isto é, o reconhecimento de que o conhecimento não se dá sem angústia.
É justamente uma crise religiosa que criará essa tensão significativa em seu trabalho intelectual. Ela foi fruto do movimento de “retorno à religião” que se deu em vários círculos da época, incluindo o dos judeus alemães mais jovens, que acabaram por sofrer uma forte influência da fé cristã. A conversão ao cristianismo era parte do caminho natural do processo de assimilação, e Rosenzweig também se sentiu atraído por essa via; mas resolveu percorrê-la partindo das raízes da fé cristã, isto é, partindo do próprio judaísmo. Por essa razão, passou a freqüentar os serviços da sinagoga, que o levaram a uma intensa experiência vivida solitariamente no Yom Kippur de 1913, da qual brotou a decisão de não mais se converter ao cristianismo. Em uma carta a seu primo Rudolf Ehrenberg, ele declara que isto não era mais necessário; na realidade, a conversão havia-se tornado impossível para ele: “Permaneço judeu.”
É na busca de si próprio que o autor experimenta a presença de Deus e descobre que a linguagem judaica, já herdada e parte de sua memória, é a forma de expressão dessa experiência. Pode-se perceber que essa decisão tornou-se fundamental na construção de seu novo pensamento, pois “permanecer judeu” pedia outro modo de pensar, uma nova forma de conceber a realidade: a nova filosofia implicaria em uma renovada atenção ao “sentido comum”, entendido como um novo modo de pensar e compreender a realidade; e a “experiência”, tal como ele a compreende, já é um pensamento contaminado pela realidade. E é nessa realidade que é possível vivenciar o milagre.
Para o filósofo, pensar a vida sem a referência a Deus é esvaziar de sentido o ser humano. Aqui, sim, a Revelação torna-se categoria fundamental. Mas a Revelação não é entendida como mito; concebê-la dessa forma seria humanizá-la, reduzi-la a algo humano, o que o levará ao foco principal de seu texto Teologia atéia (Atheistische Theologie), de 1914, que qualificará essa humanização como uma concepção atéia. Neste texto, Rosenzweig discute com o amigo Martin Buber sobre os Três Discursos (Drei Reden) que este apresentou em Praga, em 1909-1911, e que foram publicados em 1911. O foco de sua discussão encontra-se justamente na idéia apresentada por Buber de “comunidade de sangue”. Rosenzweig entende que isso acaba reduzindo a religião judaica da Revelação à idéia do “mito do povo judeu”. Para ele, considerar a Revelação como um mito é a mesma coisa que compreender Jesus apenas como personalidade histórica. E mais, o pensador afirma que o milagre da Revelação deve ser mantido independentemente da construção filosófica que se pretenda realizar, e a experiência da presença desse milagre deve mostrar seu sentido e garantia na história. Essa condição de parceiro de Deus, relação real que constitui o núcleo da Revelação – a Aliança entre Deus e Israel -, se traduz em um compromisso de anunciar a presença de Deus no mundo.
Para Rosenzweig, a Revelação não é só experiência religiosa, é Torá, isto é, cumprir os mandamentos de acordo com a tradição. Rosenzweig discute com Buber sobre essa questão na carta Os construtores: sobre a Lei, pois embora ele esteja ciente de que as leis não possuem necessariamente significado religioso, a prática é o foco onde os mandamentos ganham vida e podem nos abrir para o divino. Rosenzweig, no texto Os mandamentos: divinos ou humanos, afirma que não podemos “expressar” Deus (Gott aussprechen), mas apenas nos dirigir a Deus (Gott ansprechen) no mandamento individual. E, segundo ele, ao cumprir o mandamento, ouvimos de forma diferente: ou seja, na ação de cumpri-lo, o conhecimento de Deus se produz no diálogo com Ele, assim como o conhecimento dos homens se produz no diálogo com outros seres humanos.
Para Rosenzweig, o conhecimento é debate, algo típico da tradição talmúdica. O trabalho humano é aprender que a capacidade da fala foi dada por Deus, os nomes – a linguagem – são os meios dados por Deus para falar com Ele, e, portanto, o fundamento de seu pensamento é caminhar com Deus.
Rosenzweig participou da Primeira Guerra Mundial, o que não interrompeu sua atividade intelectual. Ao contrário, ele a manteve ativa e enviou aos seus, por meio da correspondência, grande parte do trabalho realizado no front. Como exemplo, temos a carta de 18 de setembro de 1917 para os primos, na qual já está presente a “célula primeira” da Estrela da Redenção (Der Stern der Erlösung). E, no ano seguinte, redige a primeira parte desta que acabaria sendo sua principal obra, A Estrela da Redenção, e o faz em pequenos trechos escritos em postais para a sua mãe, que os transcreveu num manuscrito trabalhado por Rosenzweig no seu retorno, em 1918, e publicado posteriormente, em 1921.
A Estrela expressa a tensão vital entre o nada e o ser. Para o autor, o nada não é irreal, ele é impensável. A morte estabelece uma relação entre o pensar e o real na qual o real vem antes do pensar: não há identificação entre ser e pensar, fundamento de toda a totalidade pensada e expressão do que ele denomina de “velha filosofia”. A Estrela apresenta a crítica de Rosenzweig a essa “velha filosofia” -
no seu entender, a filosofia tradicional de Tales a Hegel -, justamente por ser o mundo, para estes pensadores, uma unidade derivada de um único princípio. A “velha filosofia” só pensa a totalidade pensável, em contraposição ao nada, que inevitavelmente é único e universal.
Sendo assim, Rosenzweig sugere outro caminho: um caminho que se revela na busca de Deus, mundo e ser humano, não como um todo único e universal, mas em sua facticidade, ou seja, em sua positividade. Pois, para o autor, partimos do nada, e diante do nada duas vias se apresentam: a do sim e a do não. Deus é ato, e o ato rompe o nada. É a criação, o sim, a ação que se abre na perspectiva do acontecer. O sim é o princípio, algo que fugiu do nada através da própria liberdade: é o ato. O nada, então, não é determinado, mas fonte de determinação, o ponto de partida do pensamento sobre Deus, é o lugar do estabelecimento do problema.
A Estrela apresenta dessa forma o “novo pensamento” (Das neue Denken) de Rosenzweig. Título, inclusive, de outro texto do autor escrito como prefácio a posteriori à Estrela da Redenção e publicado em 1925, no qual apresenta sinteticamente esse seu novo método filosófico. No mesmo ano de publicação da Estrela, temos a publicação de O Livrinho da saúde e da doença do senso comum (Das Büchlein vom gesunden und kranken Menschenverstand). O Livrinho, como é costumeiramente conhecido, é resultado de seminários dados por Rosenzweig; sua redação foi pensada para um círculo pequeno de leitores, mais interessados no conteúdo do seu pensamento, e explicitava de forma clara e direta a primeira parte da Estrela da Redenção. Esses seminários foram proferidos na Freies Jüdischen Lehrhaus (Casa Livre de Estudos Judaicos), fundada em Frankfurt no ano anterior (1920) e logo convertida no centro intelectual do judaísmo alemão. Foram professores da casa, entre outros, Martin Buber, Scholem e Fromm.
O Livrinho utiliza a metáfora da doença e da saúde para abordar o tema do conhecimento. Rosenzweig nos conta a história de um filósofo que adoece: é atacado pela paralisia da razão, pois descobre a impossibilidade de definir o “ser em si” das coisas. Rosenzweig faz uso da descrição irônica para revelar o absurdo metafísico da essência: partindo do ataque, passa pelo diagnóstico e finaliza com uma surpreendente proposta terapêutica que pretende devolver o funcionamento normal à razão, isto é, uma razão que, saudável, não pode negar a sua condição finita.
O “novo pensamento” se caracteriza por atender à vida, aos acontecimentos, ao instante, a tudo o que não está fora do tempo, descrevendo o sistema de correlações que o “senso comum” experimenta na concretude da existência. Ele supõe uma mudança de método – da lógica filosófica à lógica do sentido comum -, abandonando o método do “pensar somente” e substituindo-o pelo método do “falar”. O falar está ligado ao tempo e requer que o outro – concretamente – escute e se manifeste sem que se saiba o seu pensamento; na realidade, sem que se saiba como ocorrerá o encontro, e é nesta tensão que o filósofo entende que o pensamento deve fluir, sem que se saiba aonde irá parar.
A diferença entre o “velho” e o “novo pensar” é o que o próprio Rosenzweig distingue como “lógico” e “gramatical”. No caso do gramatical, o indivíduo deve levar o tempo a sério, pois como ele próprio explica, falar significa falar a alguém e pensar a alguém; e este alguém é sempre bem definido e tem, não só ouvidos, mas também uma boca. A ênfase está no diálogo, mas um diálogo que leve em consideração o outro em sua vida concreta, isto é, o “pensador falante” que necessita do tempo. O que significa que, para se realizar, um pensamento não pode antecipar-se, devendo esperar por tudo o que depende do outro e não de si. Para o autor, é na conversação real que algo acontece.
Rosenzweig entende a “metafísica” como uma forma exagerada da doença a que todos estamos sujeitos. O senso comum, ao qual o autor se refere, é o lugar onde a vida flui. Frente ao fluir da vida, o filósofo se paralisa diante da pergunta pelo ser, porém para essa questão não há respostas: a vida é contingência. Para uma pergunta atemporal – o que tal coisa é? – temos uma resposta também atemporal, que se traduz na busca pela essência, presente na filosofia tradicional. Nesse sentido, o autor analisa a história da filosofia e nos mostra que toda vez que tentaram responder a essa questão, isso foi feito por meio de uma redução da complexidade real a um único dos elementos que, então, se torna o fundamento último. Assim, a filosofia antiga reduz Deus e o homem ao mundo, o que resulta em uma perspectiva cosmológica; a Idade Média reduz o homem e o mundo a Deus, perspectiva teológica; e a Idade Moderna tem reduzido Deus e o mundo ao homem, o que nos coloca em uma perspectiva antropológica.
Porém, estes três elementos – Deus, mundo e homem – são irredutíveis entre si. Cada um deles existe separadamente, pois se não fosse assim, segundo Rosenzweig, eles não poderiam se relacionar. Portanto, o que experimentamos na realidade é uma experiência de transposição. Para o autor, quando querermos apreender Deus, ele nos escapa, se encobrindo. O mesmo acontece com o homem que acaba se retraindo, e o mundo para ele torna-se um enigma visível. É apenas nas relações recíprocas que os elementos se revelam, isto é, se expressam na criação, na Revelação e na Redenção.
Na Estrela, os três elementos constituem os três vértices de um triângulo. Entre os três há uma unidade superior – que não é a unidade de Deus. Os elementos se correlacionam determinando um primeiro triângulo, mas eles só são nessa correlação. E o imediato, as vias através das quais esses elementos do primeiro triângulo se conectam e formam um segundo triângulo inverso, são a criação, a revelação e a redenção. Ambos os triângulos compõem a Estrela da Redenção ou a estrela de Davi, em cujo centro está o fogo eterno -
o judaísmo – e cujos raios – o cristianismo – são a vida eterna. A estrela remete, então, a uma nova totalidade que expressa a verdade; a uma “nova verdade” cujo interior se manifesta em partes que permanecem identidades separadas. A verdade nasce em cada instante da vida, ela acontece.
O senso comum atende ao que é dado pela vida, confronta-se com o caráter diverso da realidade que se expressa no “e” – Deus e mundo e homem -, tanto no que se refere à experiência concreta como no que descreve a subjetividade
A fatualidade presente na Estrela força o pensamento a empregar a palavra “e”; palavra básica de toda experiência, expressão da multiplicidade que não perde a oportunidade de se reafirmar. É a relação original entre o sim e o não, a expressão de uma tensão que é a origem de tudo. A função do “e” é descrever as relações entre as experiências, revelando seu caráter múltiplo, contingente e aberto. Rosenzweig sabe que diante da morte há apenas o silêncio da falta de respostas. E é no encontro com a morte que nos é revelado o caráter insuficiente da linguagem. Para o autor, é necessário restabelecer o caráter real da pluralidade, isto é, o novo pensamento dá um caráter ontológico e epistemológico à pluralidade da experiência. O novo pensamento sabe que não pode ter conhecimento independente do tempo. O conhecimento está atado àquele exato instante e isso pode ser observado no cotidiano: um ato é um ato no presente, em uma vida que flui do nascimento até a morte.
Rosenzweig teve uma vida curta. Ironicamente, o Livrinho foi a última obra do Rosenzweig ainda saudável, pois após o término da sua redação manifesta-se nele uma esclerose lateral amiotrófica que o levará rapidamente a uma paralisia completa. A surpreendente coincidência acaba por originar inevitáveis comentários em vários leitores de sua obra. Os sintomas de sua doença surgem e lhe criam dificuldades para falar e escrever. (Em dezembro de 1922 não consegue mais escrever, em pouco tempo perde a faculdade da fala.) Com a ajuda de sua esposa, Rosenzweig continuará sua produção literária, textos e traduções. Entre elas está o já citado Das neue Denken, as traduções do poeta Jehuda Halevi (1924), e também a tradução da Bíblia para o alemão, terminada por Buber anos depois, pois Rosenzweig acabou morrendo sem finalizá-la em dezembro de 1927.
Maria Cristina Mariante Guarnieri é Psicóloga Clínica, Doutora em Ciências da Religião pela PUC/SP e pesquisadora do NEMES -
Núcleo de Estudos em Mística e Santidade – PUC/SP.
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