Israel está ferida - Miriam Christen da Conexão Israel

Tem tempo que eu quero escrever este artigo, e com o passar dos dias e o avanço (ou regresso) da guerra, vários acontecimentos me provocaram a necessidade de expressar-me. Um deles em especial inunda a minha cabeça com muito mais frequência que os outros. O mais urgente problema para a nossa sociedade é a ferida social e individual decorrente da operação Margem de Proteção, e como nós podemos influenciá-la.

Eu tive a oportunidade de dirigir nos últimos quatro anos um projeto de diálogo e pós- trauma (individual e coletivo) para jovens israelenses e palestinos. Durante o projeto se formam dois grupos, um israelense e o outro palestino. Os dois passam pelo um proceso de preparação para um encontro longo e intensivo com o outro grupo, em um seminário de duas semanas que é levado a cabo na Alemanha. O projeto resultou, para mim e para os outros, em muitas amizades sem barreiras e na compreensão verdadeira da complexidade desse conflito (além de histórica e política), das realidades que cada um vive, e as feridas sociais e pessoais que ele deixa. Mas o mais significativo que ele deixou em mim foi a capacidade de personalizar o “outro lado”: quando eu penso nos palestinos, consigo ver o Hani, a Nancy, o Mohanad e o Moayad (sem pretender que eles representem todo o povo palestino). Por participar deste projeto e ter amigos palestinos, eu ja fui chamada de “esquerdista maluca, Telavivit 1 que faz sexo com palestinos”, mas na verdade eu moro em Israel há mais de 12 anos por escolha própria, dos quais quatro e meio servi o exército, e passei a maior parte da minha vida em Israel na cidade de Beer-Sheva, tendo vivido assim por alguns períodos de tensão, bem antes que o Hamas começasse a lançar foguetes contra Tel Aviv.

Nas últimas semanas, desde o sequestro dos três meninos israelenses seguido da invasão das Forças de Defesade Israel na Cisjordânia, eu participo de uma outra guerra, além desta que vocês vêem nas notícias: a guerra por um discurso justo e moral nas sociedades israelense e palestina. Tem gente extremista que não tem nenhum problema em publicar coisas completamentes racistas sobre palestinos, israelenses, esquerdistas, direitistas, qualquer um que pense distinto. Mas não é sobre eles que eu quero falar, pois para mim, o fato de que sempre nos foquemos nestes radicais faz com que não lidemos com as pessoas que não são extremistas, mas que com cada um de estes episódios do conflito, modificam seu discurso, tornando-o menos moral, menos justo, menos democrático. Este é, para mim, o maior problema.

Eu me refiro a pessoas que todos os dias do ano são a favor dos direitos humanos e civis. Até que foguetes caiam em Tel Aviv: então a matança de civis em Gaza (não como objetivo, mas como uma consequência da situação) pelo lado de Israel passa a ser legítima, até necessária. Eu me refiro a pessoas que afirmam nestas crises que, lamentavelmente, enquanto houver ocupação, lançar foguetes ou fazer atentados seguirá sendo uma forma legítima de lutar pela libertação da Palestina. Me refiro a pessoas normais, inteligentes e até mesmo intelectuais, que nestes momentos podem publicar fotos de Benjamin Netanyahu ou de Khaled Mashal vestidos de nazistas, como eu mesma vi. Eu me refiro a pessoas com as quais eu convivo diariamente, pessoas de quem eu gosto, que com certeza não são extremistas (nem de direita, nem de esquerda, israelenses ou palestinos) que em dias de guerra, abandonam seus valores, as coisas nas quais acreditam, seu humanismo, e começam a atuar como se fossem os porta-vozes de algum lado nesta guerra. E nenhum deles realmente é. Lamentavelmente, esse é um fenômeno que existe nas sociedades israelense e palestina, e eu o conheço muito bem, ja que ele provém de um “conflito interno” que eu também sinto. Estes episódios nos fazem sentir uma grande dissonância cognitiva. Quando você sente medo por ter que fugir pra um abrigo anti-bombas, é muito difícil não se magoar e nao ter raiva de quem é responsável pelo seu perigo. A pergunta é: como isto nos afeta depois, quando nos sentamos a conversar com amigos sobre a situação, e o que nós esperamos dela? E é neste momento que eu penso que nós, como pessoas com consciência desenvolvida, podemos manter este diálogo interno entre o nosso instinto e a nossa consciência; o instinto nos manda falar e ter a opinão de que há de ser duro com eles, tem que se proteger a qualquer preço, mas nossa consciência nos lembra daquilo em que acreditamos ser o jeito correto de se comportar como país, e seres humanos, nos outros dias do ano – nos quais não sentimos o conflito de um jeito tao ameaçador. Este conflito interno, pelo qual cada um de nós passa nesta situação, tem suas bases na guerra existencial do Hobbes, na qual todos têm direito a tudo, e por isso qualquer atitude do outro é percebida por nós como uma tentativa de se impor – situação na qual qualquer um tem a legitimidade de fazer tudo pra se proteger. Só que nossa realidade não é a guerra existencial de Hobbes; nós temos Estados, sociedades civis, e de fato somos seres com uma consciência bem desenvolvida. Tem que ser a nossa decisão, deixar que a consciência ganhe do instinto nessa guerra interna.

Em nível social, e com respeto a como as pessoas se sentem, acho que nós deveríamos ao menos avaliar a possibilidade de que muitas vezes podemos adotar posturas pelo mesmo “estado natural” e sensação de insegurança, e esforçar-nos para mantermos as posturas que nós mantemos quando não nos sentimos ameaçados. Pois, de fato, eu não vi nenhuma dessas pessoas citadas (as não extremistas), expressando-se de forma imoral, injusta ou desumana em épocas nas quais o conflito não se expressa em eventos de violência.

Esta situação, na qual pessoas equilibradas, justas e morais deixam de atuar desta forma devido a um episódio (a mais) dentro do contexto do conflito palestino-israeli, é a verdadeira ameaça para nossas sociedades, e é exatamente o que nos distancia de uma possível futura solução, não só em nível poíitico, como também em nível social. Como civis em nossas sociedades, temos a obrigação de evitar sua decadência em relação à moral, à justiça e ao humanismo.

Eu proponho que sejamos fieis aos nossos valores, não deixemos de recordar que este conflito envolve pessoas principalmente, envolve os nossos amigos que são reservistas, são feridos e mortos, e envolve tambem o Hani, a Nancy, o Mohanad, o Moayad e a suas famílias. Não nos permitamos pensar que o conflito é só sobre as entidades políticas, forças de defesa e forças de ataque. Desafiem suas memórias a recordarem-se de que as nossas feridas, medos, sensações e perdas são as mesmas das pessoas que estão do outro lado, e que não possuem nem mas nem menos valor. E provoquem esta reflexão nas pessoas que perdem a razão pelo medo ou pelo ódio. O que importa no final não é a quantidade de pessoas que morreu, mas sim cada um deles.

Vamos juntos reavaliar se nossas atitudes e opiniões sobre as possíveis formas de acabar com este triste episódio (que já tem por volta de 1300 mortos) são baseadas nos valores que sustentamos durante os 365 dias do ano, com ou sem guerra. E questionemos se as ideias que estamos espalhando por aí neste momento realmente ajudarão de alguma forma na resolução final deste conflito em seu aspecto social, ou qualquer outro aspecto.

Miriam Christen é argentina, formada em Políticas e Governo e Oriente Médio pela Universidade Ben-Gurion, além de mestre em Políticas Públicas pela Universidade de Tel-Aviv.

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Foto de capa retirada do site: http://digital-art-gallery.com/picture/9331

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