JUDAISMO JUSTIÇA Por: Rabino Dr. Raphael Posner (Professor Honoris Causa e Rabino, Professor Assistente de Literatura Rabínica no Jewish Teological Seminary of America, Jerusalém) e pelo Conselho Editorial. TRADUTOR - Daniel Strum Declarou-se amplamente que a justiça é o valor moral que caracteriza singularmente o Judaísmo tanto conceitual como historicamente. Historicamente, a busca judaica pela justiça começa com declarações bíblicas do tipo “ Justiça, justiça (em hebraico tzedek) perseguirás” (Deut. 16:20). Do ponto de vista conceitual, a justiça ocupa um lugar central na visão judaica do mundo e muitos outros conceitos judaicos básicos evoluem à volta da noção de justiça. O primeiro atributo de ação de D’us é a justiça (em hebraico mishpat: Gen. 18:25; Sl. 9:5). Seus mandamentos aos homens, e especialmente para Israel, têm essencialmente o objetivo de estabelecer a justiça no mundo (ver Sl. 199:137-44). Os homens cumprem esta finalidade agindo de acordo com as leis de D’us e de outras formas imitando a qualidade divina da justiça (Deut. 13:5; Sot. 14a; Maimônides, Guia dos Perplexos 1:54, 3:54). Este processo de estabelecimento de justiça no mundo deverá ser completado no reino messiânico de justiça universal (ver Isa. 11:5ff.; Deut.R. 5:7). Portanto, assim como a própria Torá, que é um paradigma, toda a História começa e termina com justiça (Ex. R. 30:19). Os dois principais termos bíblicos para justiça são tzedek e tzedaká. Eles se referem tanto à justiça divina como à humana, bem como às “obras da justiça” (Ex. 9:27; Prov. 10:25; Sl. 18:21-25). Esta justiça é essencialmente um sinônimo de divindade (Isa. 5:16). Ademais, na Bíblia, a “justiça” é tão consistentemente comparada com a “misericórdia” ou com a “graça” (chesed; Isa. 45:19, Sl. 103:17ff.), que nos tempos talmúdicos e posteriores, o termo tzedaká veio a significar quase que exclusivamente “caridade” ou “trabalhos de amor” (BB 10b)e a noção de “justiça” é apresentada pelos termos “verdade” (emet), “confiança” (emuná) e “integridade” (yosher). Finalmente, ao longo da literatura, outros valores, principalmente paz e redenção, são consistentemente associados com justiça, como sendo seus componentes ou produtos (Os.12:7; Sl. 15:1; Ta’an. 6:12). Portanto, todo o espectro de valores éticos está virtualmente compreendido dentro da noção de justiça. A justiça judaica é diferente da visão filosófica clássica (Grega - Ocidental) deste conceito. Nesta última, a justiça é geralmente considerada sob os títulos de “distributiva” e “retribuidora”. Estes conceitos, é claro, também são englobados na tzedaká, mas enquanto a justiça “distributiva” e “retribuidora” são essencialmente princípios de procedimento (isto é, como fazer as coisas), a justiça judaica é essencialmente substantiva (isto é, como deveria ser a vida humana). A justiça substantiva depende de um compromisso final de valores (isto é, messiânico). Isto também é deixado claro pelos pensadores modernos tais como Hermann Cohen, que encara a sociedade justa como a sociedade ideal de dignidade humana e liberdade universais (Ethik des reinem Willens (1904). capítulo 15; Religion der Vernunft aus des Quellen des Judentums (1929), capítulo 19) e Ch. Perelman, que em sua análise de justiça escreve “.... e no final, cada um sempre enfrentará uma certa visão irredutível do mundo expressando valores e aspirações não racionais [embora justificáveis]” (Perelman, Justice (1967), 54). Embora Perelman não reivindica estar discutindo um conceito particularmente judaico, ele tem consciência do conteúdo judaico de seu etos[14] (cf. W. Kaufmann em: Review of Metaphysics, 23 (1969), 211, 224ff., 236). A visão substantiva da justiça se preocupa com a melhoria completa da vida humana e, acima de tudo, da vida social. Assim, se espalha por todas as relações humanas e as instituições sociais – o estado ( a dicotomia comum entre a responsabilidade individual e coletiva, frequentemente ilustrada pelo contraste entre Ex. 20:5 e Ezek. 18, é transcendida no reconhecimento da interrelação dialética entre as duas em Deut. 24:16, juntamente com Lev. 19:16 (ver também Sanh. 73a) e no envolvimento contemporâneo do cidadão individual nas ações coletivas de sua nação), tribunais (por ex. 11 Chron. 19:6. Yad, Sanhedrin, 23:8-10), economia (Lev. 19:36) e assuntos particulares. Na realidade, a única prática positiva também imposta a todos os não judeus é o estabelecimento de tribunais de justiça (Sanh. 56a). A justiça não é contrastada com amor, mas sim correlacionada com ele. Na literatura rabínica, na filosofia judaica e na Kabalá, D’us é descrito como atuando a partir de dois “atributos de legitimidade e compaixão” (PR 5:11,40:2; Maimônides, Guia dos Perplexos 3:53). O problema crítico pertencente à justiça é aquele da teodicéia (doutrina da justiça divina): se D’us é justo e rege o mundo, como podem ser explicados os sucessos do mal? O problema da teodicéia, um tema recorrente na literatura, é levantado pelo Salmista e é o tema de Jó. E, é também o assunto da história de Elie Wiesel, escrita na esteira do Holocausto, na qual três rabinos intimam D’us para um julgamento e o consideram culpado. Na história do pensamento judaico, embora muitas soluções para o problema tenham sido sugeridas, entre elas a noção essencialmente neoplatônica[15] de que o mal é privação, isto é, que não é algo positivo em si, mas meramente a ausência do bem (Guia dos Perplexos 3:18-25); a visão de que o mal e o sofrimento constituem provações do justo, ou as “aflições do amor” na literatura rabínica, isto é, D’us testa os justos fazendo-os sofrer em seu mundo; e a doutrina da recompensa e punição no Olam há-Ba[16] (Sanh. 90b-92a: Albo, Sefer há-Ikkarim 1:15). Os rabinos encaram Moisés como o ideal da justiça rigorosa e inflexível, em contraste com Arão [ou Aarão], que é o protótipo do ideal de paz. Eles interpretam o incidente do Bezerro de Ouro como exemplo do problema que surge com o choque destes dois ideais (cf. Sanh. 6a-7b e paralelos). No mesmo contexto, eles sugerem que o compromisso em casos legais possa constituir uma negação da justiça (ibid.) Embora não seja uma solução, pode se tentar dar uma resposta ao problema da teodicéia em duas direções: (a) para protestar contra a injustiça na tradição de Jó, de Honi ha-Me’aggel e do líder hassídico Levi Isaac de Berdichev, que é possível apenas perante uma autoridade responsável, isto é, um D’us justo; (b) para encarar a justiça como um conceito normativo ao invés de descritivo, como o faz Cohen, que escreve que a “justiça mantém a tensão entre a realidade e o ideal eterno” (Religion der Vernunft, p.569). De acordo com este ponto de vista, a justiça pode ser procurada apenas no futuro – seja no futuro da humanidade como um todo (a Era Messiânica) ou do indivíduo – isto é, em D’us, cuja justiça de julgamento é confirmada na benção recitada na hora da morte, “abençoado seja o Juiz justo”. O homem é obrigado a imitar a D’us agindo de acordo com o princípio de justiça com compaixão (Miquéias 6:8; Mak. 24b; BM 30b, 83a) e – na consumação final da história – a justiça e a misericórdia se tornam idênticas. Bibliografia Fassel, Tugend- und Rechtslehre … des Talmuds… (1848, 1862); M. Bloch, Die Ethik in der Halacha (1886); S. Schaffer, Das Recht un seine Stellung zur Moral nach talmudischer Sitten- und Rechtslehere (1889); M. Lazarus, Die Ethik des Judentums, 2 vols. (1904-11); I.S. Zuri, Mishpat ha-Talmud, 1 (1921), 86 ff.; S. Federbusch, Ha-Musar ve-ha-Mishpat be-Yisrael (1947); S. Pines, Musar ha-Mikra ve-ha-Talmud (1948); J.Z. Lauterbach, Rabbinic Essays (1951), 259-96; ET, 1 (1951), 228-30, 334 f.; 7 (1956), 382-96; E. Rackman, in Judaism, 1 (1952), 158-63; Y. Kauffmann, The Religion of Israel (1960), 122-211, 291-340; M. Silberg, Kakh Darko shel Talmud (1961); M. Elon, in: De’ot 20 (1962), 62-67; Z.J. Melzer, in: Mazkeret … le-Zekher … ha-Rav Herzog (1962), 310-5; B. Cohen, in: Jewish and Roman Law, 1 (1966), 65-121; 2 (1966), 768-70; E. Urbach, Hazal – Pirkei Emunot ve-De’ot (1969), 254-347. TRABALHO Por: Prof. Moshe Greenberg (Doutor e Rabino, Professor de Bíblia na Universidade Hebraica de Jerusalém) e pelo Conselho Editorial. NA BÍBLIA E NA LITERATURA APÓCRIFA. Dirigida ao homem comum, a Bíblia encara o trabalho como o destino do homem e um aspecto da ordem cósmica. De acordo com o Gênesis 2:5, uma condição da criação da vida vegetal foi a presença do homem para cultivá-la: o papel de Adão era de arar e manter o Jardim do Éden (Gênesis 2:15). Da mesma forma, as visões utópicas dos profetas dão como certo a continuação do trabalho do homem (conforme Isaías 2:4 “... em arados .... podadeiras”), a benção dos tempos sendo manifestada na abundância dos produtos da terra (“O homem que ara a terra alcançará aquele quem colhe e o comerciante das uvas aquele que as semeia” Amós 9:13). A maldição trazida pelo pecado de Adão não foi o trabalho, mas o esforço sudorento requerido daí em diante para obter o pão de uma terra espinhosa e sedenta (Gênesis 3:17ff.). O trabalho era considerado uma parte da ordem cósmica a tal ponto que mesmo D’us é ilustrado como um trabalhador. Ele “fundou” a terra, e os céus são o trabalho de suas mãos (ou “dedos”) (Salmos 8:4; 102:26). Foi ele quem “moldou” (yotzer) tudo (Jer. 10:16): o homem é barro e D’us o ceramista (yotzer; Isaias 64:7, baseado em Gênesis 2:7). Ele trabalhou seis dias para criar o mundo e descansou (Ex. 20:11; em Gênesis 2:2-3 “Parou”) no sétimo dia. Portanto os Israelitas precisam fazer o mesmo (Ex. 20:8ff.; cf. a lição de colher o mana, Ex. 16). Portanto, não é extraordinário que muitos heróis de Israel fossem trabalhadores ou que tenham começado como tais: Moisés (Ex. 3:1), Gideão (Juízes 6:11), Saul (11:5), Davi (17:34), Elias (Reis I 19:19) e Amós (1:1; 7:14). A literatura das Sabedorias enaltece o trabalho e condena a preguiça e a indolência: “Quem é relapso em seu trabalho é irmão do destruidor” (Prov. 18:9). O indolente é mandado ao providente para uma lição de diligência (6:6ff.: cf 20:4). O trabalho é melhor do que as palavras (14:23), pois “aquele que ara seu solo terá pão em abundância, mas aquele que persegue coisas vãs terá pobreza em abundância” (28:19; cf. 10:4; 12:24). A mulher eficiente e trabalhadora (‘eshet hayil) não é menos louvada que o homem (‘ish mahir bi-melakhto) (22:29; 31:10ff.). O contentamento é o prêmio do trabalhador honesto. Quando do trabalho de tuas mãos comerás, feliz serás e te contentarás (Salmos 128:2) Doce é o sono do trabalhador; quer coma pouco, quer muito (Ecle. 5:11) Entretanto, o sucesso não é o resultado automático do trabalho. “A não ser que o Senhor construa a casa, seus construtores terão trabalhado em vão” (Salmos 127:1); consequentemente, a felicitação costumeira com que são saudados os trabalhadores: “A Benção do Senhor seja convosco” (Salmos 129:8; conf. Juizes 6:12; Rute 2:4). Eclesiastes, um escritor posterior, concluiu depois de muito pensar e observar que até o desfrute das aquisições de uma pessoa era uma questão de sorte – um presente de D’us àqueles que o agradaram (por razões incompreensíveis ao homem; Ecles. 2:18-26; 3:12; 13:5; 12-6:2, etc.) A Torá é solícita para com o assalariado. Um empregador precisa pagar a seu trabalhador diarista “no mesmo dia, antes do pôr do sol, porque ele é necessitado e depende urgentemente do dinheiro; caso contrário, ele clamará ao Senhor contra ti e a culpa recairá sobre ti” (Deut. 24:15; cf. Lev.19:13; sobre a duração do dia de trabalho, do nascer ao por do sol, cf. Salmos 104:23). Esta regra se aplica tanto aos trabalhadores Israelitas quanto aos estrangeiros (Deut. 24:14). As violações à injunção são denunciadas pelos profetas (Jer. 22:13; Mal. 3:5). As leis concernentes aos débitos, aos devedores e ao Jubileu[17] tinham como objetivo a proteção dos trabalhadores e camponeses. Os Israelitas não aceitavam bem o recrutamento de mão de obra para servir a seus reis (isto é, a corvéia). Samuel advertiu os reis acerca das privações (Sam I 8:11-12), talvez com base na prática real cananita. Sob Salomão, os rigores eram tais (Reis I 5:27-28) que levaram à rebelião e secessão do Norte (Reis I 12). (Por meio de privilégio real, um cidadão ou família poderia ficar isenta (hofshi) de tal serviço: Sam. I 17:25). Uma olhada na vida entre tantas privações é dada por uma carta datada do sétimo século A.C., recuperada de uma fortaleza próxima a Yavneh, registrando a queixa de um trabalhador contra seu superior por ter–se apoderado de seu manto (Textos Pritchard (3), 568). Na maioria das vezes, a literatura da época do Segundo Templo que se preservou expressa este ponto de vista plebeu. “Não odeie o trabalho duro ou a criação de animais” diz Ben Sira, “pois eles não foram ordenados por D’us (7:15). Issacar é a figura ideal de um camponês: trabalhador, casto e temente a D’us no Testamento dos Doze Patriarcas. Obrigações de tratar de forma amável a mão de obra contratada e não reter seu pagamento aparecem em Tobit 4:14; Ben Sira[18] 7:20, 34:22. O horror à vida de um mendigo é expresso em Ben Sira 40:28ff.. Uma nova nota (antecipada numa “Sátira sobre as Profissões” de origem egípcia, um milênio antes (Textos Pritchard, 43ff.)) é proferida em Ben Sira 38:24-34. Aqui a superioridade do escriba letrado sobre o trabalhador e o artesão é declarada de forma vigorosa. Admite-se que os últimos são necessários, mas seus horizontes são estritamente limitados pelos requisitos de seu trabalho. Sem eles a cidade não pode ser habitada. E onde eles morarem, não passarão fome. Mas não serão chamados para o conselho público E na assembléia não gozarão de precedência. Não se sentarão na cadeira dos juízes, E, não entendem a lei ou a justiça. Eles não expõem a instrução da sabedoria, Nem entendem os provérbios dos sábios. Eles entendem o trabalho do mundo, E seu pensamento está sobre a prática de sua arte (38:32-34) Aqui que fala é um patrício[19] educado, anunciando uma luta de valores que logo iria amadurecer e se transformar num conflito sectário. No Talmud. Das muitas referências ao trabalho na literatura talmúdica, um quadro claro emerge da atitude rabínica com relação ao trabalho. A necessidade de ter uma ocupação foi levantada ao nível de um mandamento bíblico positivo. A primeira metade do Êxodo 20:9, “trabalharás seis dias”, foi vista como uma prescrição separada e não meramente como uma introdução à proibição do trabalho no Shabat. Rabi (Yehudá ha-Nasi) disse: “estas palavras constituem um mandamento separado. Da mesma forma como Israel foi instruído com relação ao Shabat, também foram instruídos com relação ao trabalho” (Mekh. SbY a 20:9; cf. ARN(3) 11,44 e Gen R. 16:8). As virtudes do trabalho são proclamadas constantemente: “O homem deve amar o trabalho e não odiá-lo”. Adão não participou de nada até que tenha trabalhado, e conforme é dito, “para vesti-lo e mante-lo”: a Shechiná[20] desceu sobre os filhos de Israel apenas depois deles terem trabalhado, conforme é dito, “e eles me farão um santuário e eu habitarei em seu meio” (ARN(3) Loc. Cot.). Foram fornecidas duas razões para o dever de ser empregado e receber pagamento pelo trabalho. Uma foi a necessidade da independência econômica. Nenhum trabalho que permitisse tal independência era considerado degradante: ”Faça seu Shabat como um dia de semana (em relação a perder uma refeição especial acrescentada) ao invés de ser dependente de outros”. (Shab. 118a). “Esfole uma carcaça na rua e ganhe um soldo e não diga: ‘Eu sou um grande homem e o trabalho degradante não é para mim’” (BB 110a); e “aquele que aprecia o trabalho de suas mãos é maior do que o homem que teme o céu” (Ber,8a). Quando R. Yehudá foi ao beit midrash[21], ele carregou uma bilha em seu ombro declarando “grande é o trabalho, pois ele honra a pessoa que o executa” (Ned. 49b) “Grande é o trabalho, pois mesmo o sumo sacerdote, se fosse entrar no Santo dos Santos no Dia do Perdão em outro momento que não o do Avodá, é passível de morte; mas para alí trabalhar, mesmo aqueles ritualmente impuros ou maculados, tiveram a permissão de entrar” (Mekh. SbY a 20:9). Não menos importante, contudo, foi a consideração do mal social da indolência, independentemente das necessidades econômicas: “A indolência leva à falta de castidade”, ou “à degeneração” (Ket. 5:5) e “nenhum homem morre, exceto pela indolência” (ARN ibid.) “Se um homem não tem trabalho a fazer, o que deverá fazer? Se ele tem um quintal ou campo negligenciado, deixe-o ir e trabalhar nele” (ibid). “Aquele que não ensina um ofício a seu filho, é como se o tivesse ensinado a ser um ladrão” (Kid. 29a). Aquele que tem um ofício é como se fosse uma videira cercada por uma cerca protetora” (Tosef. Kid. 1:11). O valor terapêutico do trabalho também é enfatizado (Git. 67b). Entretanto, até onde é possível, deveríamos ser seletivos ao escolher uma ocupação. Havia ofícios “limpos e fáceis” tais como a fabricação de perfumes e bordados, mas também havia ocupações inferiores tais como “condutor de asnos, carroças, pastoreio e donos de lojas”. O ofício de açougueiro era visto como sendo especialmente inferior e para evitá-lo, as pessoas preferiam escolher os ofícios anteriores. Da mesma forma, ofícios que colocavam os homens em contato indesejável com mulheres, tais como joalheiros, cardadores de lã, barbeiros, lavadores e ajudantes de banhos, deveriam ser evitados (Kid. 82a-b). A dignidade do trabalho era enfatizada: “Aqueles engajados no trabalho não precisam ficar em frente a um sábio enquanto estiverem engajados em suas tarefas” (Kid. 33a). Enfatizou-se que trabalhadores também são “os filhos de Abraão, Isaque e Jacó” (BM 7:1). Não obstante, este ponto de vista sobre a suprema importância do trabalho em si é diminuído pela consideração de que o ideal mais elevado é estar livre de toda e qualquer ocupação mundana de forma a ser capaz de se devotar totalmente às atividades espirituais: ao estudo da Torá, ou em geral “para servir ao Criador”. De acordo com este ponto de vista, o trabalho é uma punição infligida ao homem: “Shimon ben Eleazar disse: “ Alguma vez você já viu um animal ou pássaro selvagem praticando um ofício? Mesmo assim encontram seu sustento sem problemas, embora tenham sido criados apenas para me servir. Porém eu, que fui criado para servir meu Criador, tanto mais deveria receber para meu sustento sem problemas? Mas eu forjei o mal e assim perdi meu direito’” (Kid. 4:14). Este ponto de vista é enfatizado por Simeon bar Yochai: “Se um homem tem que arar durante a época de se arar, colher ... debulhar... e separar o joio do trigo, o que acontecerá com a Torá? Mas quando Israel preencher o desejo do Onipresente, seu trabalho será feito para ele por outros e quando não cumprirem com a vontade do Onipresente, não apenas eles terão de realizar o trabalho eles mesmos, mas terão de realizar o trabalho dos outros” (Ber. 35b:cf ARN 11:44). Sua expressão mais elevada está na declaração de Nehorai: “Eu ignoraria todas as profissões do mundo e ensinaria apenas a Torá a meu filho”, já que ao contrário do trabalho manual, ela o protegerá tanto na velhice e na doença, como no mundo vindour (Kid. 4:14). O compromisso entre estes dois pontos de vista extremos é encontrado no ideal seguido pela maioria dos rabinos: a combinação do estudo com uma ocupação mundana. Em contradição explícita ao ponto de vista de Simeon bar Yohai acima mencionado e a máxima de Raban Gamaliel em Avot (2:2), Ishmael afirmou: “excelente é o estudo da Torá combinado com uma ocupação mundana, pois o trabalho envolvido nas duas atividades faz com que o pecado seja esquecido. Todo o estudo da Torá sem o trabalho é fútil e é a causa de pecado”. Este ideal é advogado especialmente por Meir, que em adição a suas muitas máximas exortando o valor do trabalho manual, urge as pessoas a diminuir suas ocupações mundanas o tanto quanto possível de forma a estarem livres para o estudo da Torá (Avot 4:10). “As antigas gerações fizeram do estudo sua principal preocupação e de seu trabalho uma atividade secundária e prosperaram em ambos. As gerações posteriores fizeram o oposto e não prosperaram em nenhum deles (Ber. 35b). Empregados e Empregadores. Conforme mencionado, a dignidade do trabalho e a preocupação pelos direitos dos trabalhadores é enfatizado. A injunção bíblica de que se deve pagar o trabalhador na hora certa (Lev. 19:13) é expandida no sentido de que “aquele que retém o soldo de um empregado é como se tivesse lhe tirado a vida” (BM 112a) e em litígios entre empregadores e trabalhadores, os direitos dos últimos recebiam preferência sobre os dos primeiros (BM 77a). Especialmente significativa é a regra que estabelece que o trabalhador tem o direito de se retirar de seu trabalho a qualquer momento como expressão de sua liberdade, da ausência de uma relação de servidão para com seu semelhante (BK 116b; BM10a). São cuidadosamente estabelecidos o quanto o empregador era responsável pelo alimento do trabalhador (BM 7:1) e os pré-requisitos aos quais o trabalhador tinha direito (BK 119a-b). Não obstante, uma ansiedade constante é expressa com relação à tendência à ociosidade e a exploração dos empregadores pelos empregados. “Os trabalhadores são displicentes”, declarou Tarfon metaforicamente acerca do serviço de D’us (Avot 2:15) e parece refletir condições reais de seu tempo. “Um trabalhador geralmente trabalha fielmente durante as primeiras duas ou três horas do dia apenas, e depois disso se torna indolente” (Gen. R 70:20). “Ele que herdou uma grande fortuna de seu pai e deseja desperdiçá-la, deixe que contrate trabalhadores e que não trabalhe junte com eles” (BM 29b). A lei que permitia ao trabalhador recitar o Shemá[22] enquanto estivesse em cima de uma árovore ou no andaime de um prédio (Ber. 2:4), ou encurtar a Benção de Graças após as Refeições (Ber. 46a), foi criada não no interesse do trabalhador, mas de acordo com o interesse de seu empregador sobre o uso de seu tempo. Entretanto, para recitar a Amidá[23], que é a reza propriamente dita, eles tinham que descer ao solo. Escritos Rabínicos Posteriores[24] e Tendências Modernas O trabalho manual e a justiça social foram frequentemente enfatizadas nos escritos rabínicos. O trabalho era tido como uma benção em si mesmo e considerava-se que a Bíblia requeria que o Estado se preocupasse com seus cidadãos durante o desemprego, a velhice e a doença. Estes benefícios deveriam ser outorgados como um princípio legal e de modo que não fosse ofendesse o sentimento de dignidade daqueles que os recebessem (Simon Federbush, The Jewish Concept of Labor (1956), 50,51, Z. Warhaftig (ed.) Osef Piskei Din Rabbaniyyim, 45). O direito dos trabalhadores de se organizarem em sindicatos foi apoiado pelos rabinos e era visto como uma extensão do dito de que “os moradores da cidade poderão infligir penalidades pela violação de seus regulamentos” (BB 8B, Rabbi Abraham Isaac Kook, citado em Katriel Tchorsch, Keter Efrayim (1967), 160-171; cf. Moshe Feinstein, Iggerot Moshe: Hoshen Mishpat, 108-9). O direito dos trabalhadores à greve era justificado (Shillem Warhaftig, bibl., 982, 984; Iggerot Moshe 110-111), embora houvesse uma opinião de que não se podia permitir interrupções no trabalho nas disputas daqueles trabalhadores que prestavam serviços de saúde, eletricidade e educação (Keter Efrayim, 171). Outro ponto de vista era de que todas as greves eram permitidas somente se os empregadores recusassem o pedido dos trabalhadores em arbitrar suas diferenças (Raphael Katznellenbogen, Ha-Ma’yan (Tishrei, 1965), 9-14). Ideologia Trabalhista na Europa. Nos tempos modernos, desde o período da Haskalah[25] no século 19, a alienação dos judeus do trabalho manual na galut[26], principalmente da produção agrícola, era encarada cada vez mais como a raiz do mal do “problema judaico”, ao passo que o “parasitismo judaico” tornou-se a palavra chave do anti-semitismo moderno. O famoso termo idish “luftmenshen”, isto é, pessoas que de vontade própria viviam de todos os tipos de ocupações supérfluas e triviais, como intermediários de ocupações ao invés de realizar trabalho útil, emergiu na atmosfera específica da região do Império Russo onde o assentamento judaico era permitido[27]. Esta região, no final do século 19 e início do século 20, era um tipo de enorme “reserva”, consistindo de uma rede de vilas e vilarejos nos quais massas de judeus eram compelidos a viver “de ar”. A reação na sociedade judaica a esta condição tomou muitas formas políticas e sociais, incluindo as ondas de imigração em massa da Rússia para o oeste e no desejo de “voltar a trabalhar a terra”, principalmente em Eretz Israel. Também houve tentativas de “produtivização” na própria Rússia, como por exemplo os povoados agrícolas no sul da Rússia, o fomento das profissões e artesanato entre os jovens judeus, etc. A maioria destas tendências estavam ligadas a ideologias elaboradas, as quais, de acordo com os princípios de seus fundadores, eram ou religiosas (como por exemplo, Hayyim Landau, o fundador do Ha-Poel ha-Mizrachi[28] e seus seguidores), ou socialistas, ou sionistas e sionistas-socialistas (Nahman Syrkin; Beer Borochov). Nos estágios iniciais do movimento de pioneiros[29] em Eretz Israel, a ideologia do trabalho foi elevada ao grau de filosofia básica do judeu renascido no solo de sua pátria (A.D. Gordon). Esta filosofia foi instrumental na reversão da estrutura social da população judaica “não produtiva” da Diáspora Européia na Terra de Israel. A ideologia de produtivização também foi o força motriz dos esforços de fundação de colônias judaicas na Argentina, Brasil e, nos anos 30, no Birobidzhan russo[30]. Bibliografia NA BÍBLIA: S. Kalischer, in: Festschrift Hermann Cohens (1912), 579ff.; J. Husslein, Bible and Labor (1924); H.L. Ginsberg, in VT Supplement, 3 (1955), 138 ff.; I. Mendelsohn, in: BASOR, 143 (1956), 17 ff.; L. Finkelstein, The Pharisees, 1 (1962), 219 ff.; S.Talmon, in: BASOR, 176 (1964), 29 ff. ESCRITOS RABÍNICOS POSTERIORES: Shillem Warhaftig, Dinei Avodah ba-Mishpat ha-Ivri (1969), 2 vols.; N.Shemen, Baziung su Arbet un Arbeter (1963), 2 vols. [1] N.do T.: Outros livros do período bíblico que não foram reconhecidos como livros santos e incluídos no conjunto da Bíblia (cânone). [2] N.doT.: pois Jó não era Israelita. [3] N.doT.: Leis agrícolas bíblicas que tratam da parte da colheita a ser deixada aos pobres. Leket é a respigadura, isto é, o ato de apanhar as espigas deixadas no campo depois da ceifa. A respigadura é vedada ao proprietário da terra, que deve deixá-la aos pobres. Shichechá são os feixes esquecidos no campo que também devem ser deixados aos pobres. Pe’á são os cantos do campo que não devem ser ceifados, mas deixado para que os pobres o façam. [4] N.doT.: À Bíblia [5] Nome dado às seções do Talmud e do Midrash contendo exposições homeliéticas [N.doT.: pregações com fundo moral] da Bíblia, histórias, lendas, folclore, anedotas ou máximas; em contraste com a halachá. [6] Nome dado às partes do Talmud que trata de questões legais; em contraste com a agadá. [7] Aurélio: Pessoa que faz exegese(s), que é um comentário ou dissertação para esclarecimento ou minuciosa interpretação de um texto ou de uma palavra. Aplica-se de modo especial em relação à Bíblia, à gramática, às leis. [8] Movimento revivalista religioso de misticismo popular dentre os judeus da Alemanha na Idade Média. [9] Membro do movimento religioso Hassídico fundado por Eliezer ben Eliezer Ba’al Shem Tov na primeira metade do século XVIII. [10] Nome que originalmente se referia aos opnentes do Hassidismo na Europa Oriental. [11] Movimento ético que se desenvolveu na segunda metade do século XIX dentre os grupos de judeus ortodoxos na Lituânia; fundado por R. Israel Lipkin (Salanter). [12] N. do T. e Aurélio: Discurso que busca justificar, defender ou louvar algo. [13] N. do T. e Aurélio: Diz-se de ou que pertence a uma das seitas judaicas, do II séc. a.C. ao primeiro séc. d.C., e que constituía um grupo fechado, coeso, de vida ascética. Os Manuscritos do Mar Morto são geralmente associados à esta seita. [14] Aurélio: Aquilo que é característico e predominante nas atitudes e sentimentos dos indivíduos de um povo, grupo ou comunidade, e que marca suas realizações ou manifestações culturais. [15] Aurélio: Relativo ao, ou que é adepto do neoplatonismo. Corrente doutrinária fundada por Amônio Sacas (séc. II), em Alexandria, e cujos representantes principais são Plotino, filósofo romano (204-270), em Roma; Jâmblico, filósofo grego (c. 250-330), na Síria; e Proclo, filósofo grego (410-485), em Atenas. Caracterizava-se pelas teses da absoluta transcendência do ser divino, da emanação e do retorno do mundo a Deus pela interiorização progressiva do homem. [16] N. do T.: Mundo Vindouro, que de acordo com diferents tradições dentro judaísmo virá após a morte e/ou após a vinda do Messias. [17] N. do T.: Lei bíblica que perdoa todas as dívidas entre hebreus após ter se passado sete anos. [18] N.do T.: Livros Apócrifos. [19] N.do.T.: Nobre na Antigüidade [20] Presença Divina. [21] Instituição de estudos rabínicos superiores; geralmente anexa a uma sinagoga ou servindo como tal. [22] Shemá Israel (“Ouve ó Israel…”, Deut. 6:4). É a profissão de fé do judaísmo, proclamando a unidade absoluta de D’us. [23] Principal prece recitada em todas os serviços; também conhecida como Shmoná Esre e Tefilá. [24] N. do T.: ao Tamud [25] “Iluminismo”: movimento para a difusão da cultura européia moderan dentre os judeus, cerca 1750-1880. Quem aderia ao movimento era chamado maskil. [26] “Exílio; a condição do povo judeu na diáspora. [27] N. do T.: Região ocidental do império que havia sido tomada ao do Reino da Polónia-Lituânia ou ao Império Turco Otomano no final do século XVIII e início do XIX. Atualmente ela compreenderia a Lituânia, o leste da Polônia, a Bielorússia, a Ucrânia e a Moldóva. Com algumas exceções, na Rússia propriamente dita, a presença judaica esteve proibida até as vésperas da Revolução Bolchevique. [28] N do T: Movimento Sionista Religioso que hoje em dia se representa pelo movimento juvenil Bnei Akiva e pelo partido israelense Mafdal (Partido Nacional-Religioso). [29] N. do T.: Em hebraico halutzim. [30] N. do T.: Região asiática da União Soviética onde houve uma tentativa frustrada de se criar uma república soviética judaica, laica e idichista.

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