JUSTIÇA JUDAICA

JUSTIÇA Por: Rabino Dr. Raphael Posner (Professor Honoris Causa e Rabino, Professor Assistente de Literatura Rabínica no Jewish Teological Seminary of America, Jerusalém) e pelo Conselho Editorial. Declarou-se amplamente que a justiça é o valor moral que caracteriza singularmente o Judaísmo tanto conceitual como historicamente. Historicamente, a busca judaica pela justiça começa com declarações bíblicas do tipo “ Justiça, justiça (em hebraico tzedek) perseguirás” (Deut. 16:20). Do ponto de vista conceitual, a justiça ocupa um lugar central na visão judaica do mundo e muitos outros conceitos judaicos básicos evoluem à volta da noção de justiça. O primeiro atributo de ação de D’us é a justiça (em hebraico mishpat: Gen. 18:25; Sl. 9:5). Seus mandamentos aos homens, e especialmente para Israel, têm essencialmente o objetivo de estabelecer a justiça no mundo (ver Sl. 199:137-44). Os homens cumprem esta finalidade agindo de acordo com as leis de D’us e de outras formas imitando a qualidade divina da justiça (Deut. 13:5; Sot. 14a; Maimônides, Guia dos Perplexos 1:54, 3:54). Este processo de estabelecimento de justiça no mundo deverá ser completado no reino messiânico de justiça universal (ver Isa. 11:5ff.; Deut.R. 5:7). Portanto, assim como a própria Torá, que é um paradigma, toda a História começa e termina com justiça (Ex. R. 30:19). Os dois principais termos bíblicos para justiça são tzedek e tzedaká. Eles se referem tanto à justiça divina como à humana, bem como às “obras da justiça” (Ex. 9:27; Prov. 10:25; Sl. 18:21-25). Esta justiça é essencialmente um sinônimo de divindade (Isa. 5:16). Ademais, na Bíblia, a “justiça” é tão consistentemente comparada com a “misericórdia” ou com a “graça” (chesed; Isa. 45:19, Sl. 103:17ff.), que nos tempos talmúdicos e posteriores, o termo tzedaká veio a significar quase que exclusivamente “caridade” ou “trabalhos de amor” (BB 10b)e a noção de “justiça” é apresentada pelos termos “verdade” (emet), “confiança” (emuná) e “integridade” (yosher). Finalmente, ao longo da literatura, outros valores, principalmente paz e redenção, são consistentemente associados com justiça, como sendo seus componentes ou produtos (Os.12:7; Sl. 15:1; Ta’an. 6:12). Portanto, todo o espectro de valores éticos está virtualmente compreendido dentro da noção de justiça. A justiça judaica é diferente da visão filosófica clássica (Grega - Ocidental) deste conceito. Nesta última, a justiça é geralmente considerada sob os títulos de “distributiva” e “retribuidora”. Estes conceitos, é claro, também são englobados na tzedaká, mas enquanto a justiça “distributiva” e “retribuidora” são essencialmente princípios de procedimento (isto é, como fazer as coisas), a justiça judaica é essencialmente substantiva (isto é, como deveria ser a vida humana). A justiça substantiva depende de um compromisso final de valores (isto é, messiânico). Isto também é deixado claro pelos pensadores modernos tais como Hermann Cohen, que encara a sociedade justa como a sociedade ideal de dignidade humana e liberdade universais (Ethik des reinem Willens (1904). capítulo 15; Religion der Vernunft aus des Quellen des Judentums (1929), capítulo 19) e Ch. Perelman, que em sua análise de justiça escreve “.... e no final, cada um sempre enfrentará uma certa visão irredutível do mundo expressando valores e aspirações não racionais [embora justificáveis]” (Perelman, Justice (1967), 54). Embora Perelman não reivindica estar discutindo um conceito particularmente judaico, ele tem consciência do conteúdo judaico de seu etos[14] (cf. W. Kaufmann em: Review of Metaphysics, 23 (1969), 211, 224ff., 236). A visão substantiva da justiça se preocupa com a melhoria completa da vida humana e, acima de tudo, da vida social. Assim, se espalha por todas as relações humanas e as instituições sociais – o estado ( a dicotomia comum entre a responsabilidade individual e coletiva, frequentemente ilustrada pelo contraste entre Ex. 20:5 e Ezek. 18, é transcendida no reconhecimento da interrelação dialética entre as duas em Deut. 24:16, juntamente com Lev. 19:16 (ver também Sanh. 73a) e no envolvimento contemporâneo do cidadão individual nas ações coletivas de sua nação), tribunais (por ex. 11 Chron. 19:6. Yad, Sanhedrin, 23:8-10), economia (Lev. 19:36) e assuntos particulares. Na realidade, a única prática positiva também imposta a todos os não judeus é o estabelecimento de tribunais de justiça (Sanh. 56a). A justiça não é contrastada com amor, mas sim correlacionada com ele. Na literatura rabínica, na filosofia judaica e na Kabalá, D’us é descrito como atuando a partir de dois “atributos de legitimidade e compaixão” (PR 5:11,40:2; Maimônides, Guia dos Perplexos 3:53). O problema crítico pertencente à justiça é aquele da teodicéia (doutrina da justiça divina): se D’us é justo e rege o mundo, como podem ser explicados os sucessos do mal? O problema da teodicéia, um tema recorrente na literatura, é levantado pelo Salmista e é o tema de Jó. E, é também o assunto da história de Elie Wiesel, escrita na esteira do Holocausto, na qual três rabinos intimam D’us para um julgamento e o consideram culpado. Na história do pensamento judaico, embora muitas soluções para o problema tenham sido sugeridas, entre elas a noção essencialmente neoplatônica[15] de que o mal é privação, isto é, que não é algo positivo em si, mas meramente a ausência do bem (Guia dos Perplexos 3:18-25); a visão de que o mal e o sofrimento constituem provações do justo, ou as “aflições do amor” na literatura rabínica, isto é, D’us testa os justos fazendo-os sofrer em seu mundo; e a doutrina da recompensa e punição no Olam há-Ba[16] (Sanh. 90b-92a: Albo, Sefer há-Ikkarim 1:15). Os rabinos encaram Moisés como o ideal da justiça rigorosa e inflexível, em contraste com Arão [ou Aarão], que é o protótipo do ideal de paz. Eles interpretam o incidente do Bezerro de Ouro como exemplo do problema que surge com o choque destes dois ideais (cf. Sanh. 6a-7b e paralelos). No mesmo contexto, eles sugerem que o compromisso em casos legais possa constituir uma negação da justiça (ibid.) Embora não seja uma solução, pode se tentar dar uma resposta ao problema da teodicéia em duas direções: (a) para protestar contra a injustiça na tradição de Jó, de Honi ha-Me’aggel e do líder hassídico Levi Isaac de Berdichev, que é possível apenas perante uma autoridade responsável, isto é, um D’us justo; (b) para encarar a justiça como um conceito normativo ao invés de descritivo, como o faz Cohen, que escreve que a “justiça mantém a tensão entre a realidade e o ideal eterno” (Religion der Vernunft, p.569). De acordo com este ponto de vista, a justiça pode ser procurada apenas no futuro – seja no futuro da humanidade como um todo (a Era Messiânica) ou do indivíduo – isto é, em D’us, cuja justiça de julgamento é confirmada na benção recitada na hora da morte, “abençoado seja o Juiz justo”. O homem é obrigado a imitar a D’us agindo de acordo com o princípio de justiça com compaixão (Miquéias 6:8; Mak. 24b; BM 30b, 83a) e – na consumação final da história – a justiça e a misericórdia se tornam idênticas. BIBLIOGRAFIA Fassel, Tugend- und Rechtslehre … des Talmuds… (1848, 1862); M. Bloch, Die Ethik in der Halacha (1886); S. Schaffer, Das Recht un seine Stellung zur Moral nach talmudischer Sitten- und Rechtslehere (1889); M. Lazarus, Die Ethik des Judentums, 2 vols. (1904-11); I.S. Zuri, Mishpat ha-Talmud, 1 (1921), 86 ff.; S. Federbusch, Ha-Musar ve-ha-Mishpat be-Yisrael (1947); S. Pines, Musar ha-Mikra ve-ha-Talmud (1948); J.Z. Lauterbach, Rabbinic Essays (1951), 259-96; ET, 1 (1951), 228-30, 334 f.; 7 (1956), 382-96; E. Rackman, in Judaism, 1 (1952), 158-63; Y. Kauffmann, The Religion of Israel (1960), 122-211, 291-340; M. Silberg, Kakh Darko shel Talmud (1961); M. Elon, in: De’ot 20 (1962), 62-67; Z.J. Melzer, in: Mazkeret … le-Zekher … ha-Rav Herzog (1962), 310-5; B. Cohen, in: Jewish and Roman Law, 1 (1966), 65-121; 2 (1966), 768-70; E. Urbach, Hazal – Pirkei Emunot ve-De’ot (1969), 254-347.

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