Kibbutz Nachshon e as Crises ideológicas – Jayme Fucs Bar
O Hashomer Hatzair movimento que foi parte importante de minha vida, se caracterizava por uma forma de atuação ideológica pragmática, que se fazia notar na pedagogia da tnuá, (Movimento) na forma pela qual o movimento concebia a sociedade ideal. Fazia-se aliá (Imigração para Israel) com a intenção de se realizar no kibutz, enquanto Israel ficava em segundo plano.
A tnuá, através do seu processo educativo, dava-nos a sensação de sermos capazes de mudar a realidade. Os valores eram muito claros, não apenas em termos do socialismo marxista, mas também em relação às posições políticas da direita de Menachem Beguim e das concepções do MAPAI, o partido majoritário de 1948 a 1977, que buscava manter-se sempre "em cima do muro". Aos seguidores do MAPAI chamávamos de "socialistas cor de rosa".
Um bom exemplo foi o que ocorreu alguns anos após a Guerra dos Seis Dias, cuja postura permitiu colonizar os territórios conquistados. Ao lado de Nachshon existia uma aldeia árabe, chamada Emaus, que o governo ordenou destruí-la após a vitória militar de junho de 1967 e na qual nós, do kibutz, decidimos não pisar pelos sentimentos de pesar e vergonha do que lá ocorreu depois da guerra.
No meu período de imigração para o kibutz ficaram claras as razões da quebra ideológica dos membros do garin, ( grupo de brasileiros) ) processo que se intensificou com a ida deles para o exército e a obrigação de proteger colonos nos territórios ocupados.
O auge da quebra ocorreu com a primeira Guerra do Líbano, em 1982, na qual os chaverim do garin (membros do grupo brasileiro) haviam sido convocados a lutar por algo em que não acreditavam, guerra que não condizia com os valores ideológicos nos quais foram educados. Muitos participaram dessa guerra, e quando voltaram, decidiram abandonar o país.
A crise pessoal se expressou também pelo que acontecia dentro do próprio kibutz. A estrutura sociodemográfica das primeiras gerações de chaverim de Nachshon era composta por sabras, ( Judeus nascidos em Israel e não imigrantes) que viam os chalutzim ( pioneiros) de outros países, a exemplo dos brasileiros ou anglo-saxões, como gente inadequada ao trabalho duro, imbuídos de valores "diaspóricos", que a maioria dos sabras repudiava. Essa questão interna, de valores e identidades opostas, criou muitíssimos conflitos e tensões.
No kibutz, nos deparamos com a prática de uma forte cultura stalinista que resultou no estabelecimento de uma casta burocrática, uma espécie de elite "ideológica" que usufruía de regalias que a maioria não possuía. Eram pessoas ligadas ao Kibutz Artzi e ao MAPAM. A prática era como um jogo de cartas marcadas. Por um lado, deixavam-nos discutir nas assembleias gerais do kibutz por horas a fio e, por outro lado, no final das discussões, utilizavam o termo "din hatnuá", o que significava que éramos obrigados a aceitar decisões instituídas pelo movimento kibutziano.
Do contrário, teríamos que nos submeter a pressões sociais que tornariam muito difícil a vida no kibutz.
Nos anos 1980, o kibutz se assemelhava ao modelo tradicional do movimento juvenil em que os veteranos eram como os madrichim, no sentido em que concentravam funções e posições de mando dentro num círculo fechado, com postura arrogante, como se fossem semideuses.
Essa estrutura se rompeu com a crise econômica que assolou o movimento kibutziano no final dos anos 80'. Com todos os pesares, tiveram que abrir espaço para uma nova geração e opunham-se a qualquer mudança da estrutura tradicional do kibutz. Durante anos, os veteranos criaram uma espécie de sindicato com o propósito de evitar qualquer mudança.
Eu fui secretário-geral do meu kibutz em 1992, com apenas dez anos de vida nele. A crise era tão aguda que não havia dinheiro nem para papel higiênico. A crise econômica parecia pôr fim ao kibutz que devia bilhões aos bancos. Uma geração de jovens, nascidos e criados nos kibutzim, tiveram que abandoná-los, e para os veteranos resultou difícil renunciar ao poder absoluto do qual usufruíram durante 42 anos.
Em Nachshon se criou um triunvirato com um mandato de três anos para salvar o kibutz da crise socioeconômica. Eu tinha 34 anos e pertencia a um garin brasileiro; o segundo dessa liderança tinha 30 anos e era alguém que nasceu no kibutz, enquanto a terceira, com 45 anos de idade, pertencia a um garin israelense.
O processo de mudança foi muito doloroso e terminou em 2006. O kibutz ficou dividido por um lado, aos "bolcheviques", pertinentes aos veteranos e, por outro, aos membros de uma nova geração que clamavam por mudanças. Confesso que até hoje há gente que me diz que eu acabei com o kibutz, aos quais respondo com um "graças a Deus", do contrário, esse lugar seria um asilo de velhos e com certeza deixaria de ser kibutz.
Hoje eles culpam a minha geração como aqueles que dissiparam seus sonhos do kibutz cooperativista. A geração de veteranos jamais entenderá que foram eles próprios os verdadeiros responsáveis pela crise e consequências que tivemos que suportar até poder solucionar os problemas para sobreviver como kibutz inovador.
Outra crise ideológica que vivenciamos ocorreu durante o racha no MAPAM, quando o partido político SHELI, de orientação mais à esquerda, ofereceu alternativas à participação do MAPAM na coalisão com os trabalhistas (MAPAI). A maioria dos membros do garin, eu inclusive, nos filiamos ao SHELI, o que gerou uma tensão interna em Nachshon, também porque essa atitude rompeu com o "din hatnuá" (coletivismo ideológico).
Pessoas costumam perguntar por que, ao final das contas, permaneci em Nachshon quando a maioria absoluta do garin voltou ao Brasil?
Confesso que não tenho uma explicação clara, mas penso que tive a coragem de enfrentar os paradigmas existentes no kibutz e também por haver conhecido a minha mulher, nascida em Nachshon, filha de pioneiros do Hashomer Hatzair da África do Sul.
Apesar de eles se estabelecerem no kibutz cinco anos depois da sua fundação, eles jamais foram vistos como veteranos. Eu me identificava muito com eles e com o tempo se tornaram minha nova família. Me senti seguro nas lutas e bandeiras que levantei, sentia que eu não estava sozinho e tampouco era um Dom Quixote.
Sinto que fiz parte da grande revolução que ocorreu em Nachshon, a ponto de dizer, hoje, que nos encontramos numa posição jamais alcançada quando éramos um kibutz "bolshevique" cooperativista. A qualidade de vida em Nachshon é muito boa, a economia do kibutz foi restaurada e, acima de tudo, vivo junto com meus dois filhos e seis netos, e me sinto realizado.
*Texto escrito no Livro " No desvanecer do Fascínio" Memorias de veteranos do Hashomer Hatzair - Organizado por Avraham Milgram (Editora Talu Cultural 2024)
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