Confesso que, apesar do nome, nunca desconfiei que Sayad Kashua fosse árabe. Faz tempo que leio os seus textos no Jornal Haaretz, mas nunca desconfiei que fosse árabe. Satírico, inteligente, dono de um hebraico que muitas vezes me obrigava a esforçar-me para entendê-lo, é escritor consagrado, premiado, formado em filosofia e artes, em Israel, sempre me pareceu um israelense grande contador de estórias. Falava de viagens, aldeia do pai, comidas, crianças, dos bons tempos de vida simples, isto quando Israel ainda não tinha naufragado na onda neoliberal ( o comentário é meu, não vão vocês pensar que se trata de um esquerdista radical) , todos os assuntos que fazem dele um cronista de primeira linha. Bem que ele se disfarçou de judeu durante anos, estudou em colégios judaicos, mora em Jerusalém num edifício sem vizinhos árabes, fez tudo direitinho até que pirou. Outro dia declarou que tinha pirado. Que sua mulher estava achando que ficou paranoico por que vivia com medo que matassem as suas filhas depois que começaram as manifestações contra árabes em Jerusalém. Não as deixava mais sair de suas casas. Proibiu a mais velha de frequentar festas e não permitiu que caçula saísse para a colônia de férias de verão. Em Israel agora é verão.
No ultimo dia três escreveu uma crônica de despedida. Desistiu. Parece que vai morar em Londres a convite de alguma faculdade. Faltava um mês, mas com medo dos foguetes resolveu fugir. Agora, além de não sair de casa, ele se esconde junto às filhas num quarto fora da linha de tiro do ultimo foguete que caiu perto do seu prédio. Pirado como está, e sem esperança nos políticos, vejam só, concebeu esta prece no final da ultima crônica. Resolvi traduzi-la. Quem sabe ajuda aos radicais de todos os lados e tendências a acreditar que o convívio entre diferenças e possível e vale a pena. Os judeus crentes que por ventura lerem este texto vale notar que, apesar de árabe, usa o termo Elohim para falar com deus. Ah, já ia esquecendo, é ateu como todo bom judeu. Antes que me ofendam, em grego ateu quer dizer sem deus: um homem responsável por seus atos. Um bom judeu como aprendi com Emanuel Lévinas.
“Olá deus Elohim, de repente me encontrei rezando pela primeira vez naquela noite. Por favor, deus. Eu imploro diante de você para que não haja mais mortos. Por favor, Elohim, faça com que tudo isto acabe imediatamente. Por favor, eu suplico. Faça com que judeus os pensem nas crianças de Gaza que recebem foguetes de verdade sobre as suas cabeças. Por favor, que em Israel entendam que em Gaza residem pessoas sem esperança, que suas vidas quase não podem ser chamadas por este nome. Por favor, que em Israel saibam que ali reside um povo oprimido que vê Israel como a razão dos seus sofrimentos. Elohim faça, por favor, com que os palestinos em Gaza parem de lançar foguetes, desistam de slogans vitoriosos, sem conteúdo, vazios. Eu sei que o caminho de agora não vai adiantar, que vem sendo tentado há anos nos territórios palestinos e o resultado tem sido inverso, sempre.
Faça deus Elohim com que ambos os lados entendam que o outro lado não entende somente palavras de guerra. Cale por favor, todos os provocadores de conflitos e guerras que abrem suas bocas para declarar que não perseguem guerras. Faça por favor, com que as vozes das pessoas que acreditam em justiça, igualdade e paz sejam ouvidas por aqui. Faça por favor, com que pessoas capazes de pedir desculpas, admitir erros e expressar fraquezas, sejam os lideres. Pessoas de ambos os lados dispostas a fazer de tudo, tentar qualquer coisa para proteger a vida dos seres humanos. Por favor, deus Elohim, faça com que as pessoas saibam que não existe nenhum povo melhor do que o outro, e que não existe nenhum modo de comparar dominadores e dominados. Faça deus Elohim que haja silêncio que haja paz entre judeus e árabes. Que as crianças de todos os lugares do mundo não tenham que ouvir o barulho de bombardeios. Que só conheçam alegrias, parques de diversão ao invés de quartos protegidos e brinquedos ao invés de instrumentos de guerra. Por favor, deus Elohim, não tenho a quem recorrer a não ser você, por favor, guarde as minhas crianças e as crianças de todo o mundo”

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