Postado por Jayme Fucs Bar em 10 de Dezembro de 2010 às 12:08pm
O Conceito de Conhecimento na perspectiva Kantiana1
Hermann Cohen
Tradução de Thiago Abrahão Soares
A questão referente ao sentido pelo qual a metafísica poderia imitar o “método de Newton” encontra já o seu mais elevado grau de resposta e esclarecimento: A história da razão científica suprime a desconfiança de que a filosofia deveria imitar uma ciência. No entanto, quando dissemos que Kant, de fato, partiu da ciência newtoniana, indicamos por aí a característica decisiva de sua filosofia, no fato de que Kant pensou a razão como razão cientifica, em virtude de sua história contínua. É deste modo que o conceito de conhecimento é determinado para ele. Em descartes, e também em Leibniz, percebemos de modo profundo a distinção entre certeza matemática e a certeza moral. Contudo, eles não conseguiram levar a termo esta distinção, nem mesmo sustentá-la. É necessário, no que concerne a Descartes, ressaltar a maneira como ele coloca, ao lado das ciências aritméticas e geométricas, as outras ciências da natureza; quanto “a saber” de quais ciências da natureza se trata? Ele não o diz. Contudo, ele faz coincidir, através de seu princípio, o conhecimento matemático com o conhecimento da existência própria (vida moral) – onde não há, infelizmente, nenhuma ciência. De modo análogo, Leibniz atenua a diferença entre a matemática e os fundamentos gerais próprios da lógica, e dá um fim à controvérsia sobre o significado que possui os princípios de identidade e de contradição para a certeza matemática; controvérsia verbosa que durou muito tempo e que, nos dias de hoje, não está ainda completamente resolvida.
Conduzindo de forma contrária a questão filosófica sobre a ciência matemática da natureza, Kant traz, em primeiro lugar, a seguinte precisão: esta questão não recaí somente sobre o conhecimento em geral – termo em que cada um pode bem entender o que quiser – mais sobre este conhecimento mesmo que é a ciência matemática da natureza. Esta precisão não somente permiti eliminar a possibilidade de estender a questão filosófica a outras esferas e domínios do conhecimento, mas é ela, inicialmente, que apresenta a possibilidade de transpor a precisão da questão para outros domínios. Através desta comparação de espécies de conhecimento e através desta evolução de suas esferas de certeza, o conhecimento filosófico obtém seu método e seu sistema.
Foi Platão quem primeiro, após o impulso socrático, deu à filosofia uma configuração sistemática ao distinguir e reunir a física, a lógica e a ética. A física tal como era na época de Platão poderia ser considerada como uma parte da filosofia. Em Newton, a física permanece consciente de seu fundamento especulativo; a matemática e a observação experimental são tão poderosamente desenvolvidas, que mesmo elas não alcançariam a divisão de um sistema que lhes sejam próprias, sem a ajuda da especulação. A lógica e a ética se encontram isoladas e corajosamente descartadas, já que não podemos entender a participação precisa e efetiva da lógica na construção da física. Foi Kant quem fez novamente da filosofia um sistema no sentido platônico de determinação dos valores do conhecimento, ao determinar a lógica em sua relação com a física, começando, contudo, por separar a ética destas duas disciplinas, afim de colocá-la em seguida, após ter resolvido a primeira questão, em sintonia com elas. Contudo, Kant não fez da filosofia um sistema, à maneira de Leibniz ou de Espinosa, traçando uma imagem de mundo por amor a esta imagem.
Foi assim que Kant retomou de um modo explícito uma distinção introduzida por Aristóteles; a distinção entre o conhecimento teórico e o conhecimento prático. Tudo isto, porém, combatendo e refutando o sentido aristotélico desta distinção. Com efeito, Kant reprova a opinião segunda a qual o que é verdadeiro em teoria poderia, contudo, ser inválido para a prática. Kant parte para além da concepção fundamental (aristotélica), e afirma que o matemático deve sacrificar toda sua ciência – “a excelência da razão humana” -, para alcançar alguma certeza nas questões éticas. Portanto, desde o início, Kant sustenta a idéia do “primado da razão prática”, em que ele eleva a urgência de nossas convicções morais acima daquelas convicções lógico-físicas. Kant não separa menos as primeiras convicções das segundas, porém é esta separação, a sua necessidade e seu direito que está unida à idéia fundamental do método, que só pode ser conquistada em filosofia, para Kant, tomando Newton como modelo.
Contudo, a questão relacionada ao “fato” da ciência não é tão simples. Ao menos não o era, na época, assim, tão simples. A física, no sentido que a distingue da lógica e da ética, não é simplesmente e exclusivamente a ciência matemática da natureza, mas ela compreende, ainda hoje, alguma coisa de diferente, ligada a um método preciso, sem, contudo, ser absolutamente determinada por ele. É característico que aqueles que se opõem ao racionalismo, trabalham e especulam sobre um outro domínio - fora das questões históricas e econômicas – que pertenceria a extensão do conceito de natureza. Locke é médico e realiza estudos em biologia; Berkeley trabalha sobre os problemas químicos, e Hume, de menos a título de economista, trabalha com questões colocadas pela criação orgânica. Kant seria apenas considerado como geógrafo. É, particularmente, por ocasião do problema das raças, levantado pela zoologia e antropologia, que ele toma uma posição em relação a estas disciplinas.
Vemos que era necessário dar um nome mais extenso e mais inteligível que aquele de ciência matemática da natureza a esta ciência à qual, conforme a física antiga, a lógica poderia ser relacionada. Tratar-se-ia de entender e de determinar em sua certeza, mais do que espécies de conhecimentos próprios da ciência matemática da natureza, outras espécies de conhecimento – a saber, as espécies de conhecimento próprias ao exame descritivo da natureza. Com efeito, mesmo que o procedimento e os meios de pesquisa deste tipo de conhecimento sejam distintos daqueles próprios ao conhecimento da ciência matemática da natureza, eles estão, entretanto, ligados e se reúnem todos no mesmo objeto da natureza. Galileu efetua seu experimento fundador sobre seres orgânicos agrupando-os; Newton, na ótica, reduz a construção de um corpo natural. Na verdade, isto é apenas um meio de unir a teoria da natureza à história natural – que alcança o objeto completo da natureza. Contanto que não estabeleçamos esta ligação pode parecer que estamos ainda em sua preparação, visto que a ciência matemática da natureza realiza com suas leis do movimento grandes abstrações que somente encontram uma aplicação na matéria e nas formas dos corpos naturais se referindo a estas. No entanto, se a questão filosófica deve ser relacionada tanto aos objetos quanto às forças da natureza, é necessário que o conceito de ciência da natureza receba uma extensão maior; seu conteúdo, porém, tornará se, para tanto, mais pobre?
Podemos compreender que Kant, após ter superado o problema da relação complexa com a ética, não podia, no entanto, desde o início, no que concerne à física tomar um simples conceito antigo para construir um conceito rigoroso. O que se oferece a ele não é um conceito rigoroso, mas um termo ordinário que os antigos tinham dado uma marca filosófica original, e que os modernos, sobretudo os contemporâneos, tinham promovido um slogan explicativo: a experiência, eis aqui uma palavra que promete muito e que qualifica tanto o quanto o objeto e que, nos dois sentidos, se aplica principalmente à história natural – tudo isto era conduzido por Newton e seus adeptos da mecânica. Kant considera o problema filosófico sob este termo, e toma frente de todos os aspectos teóricos da questão filosófica sobre a legitimação da experiência.
Isto fora, contudo, a causa de uma obscuridade na disposição2. Controvérsias falsas, que recaíram sobre diferentes pontos de vista da filosofia Kantiana, encontraram alimento neste prejuízo. Pareceria, então, que Kant utilizou a palavra experiência no sentido que lhe deram Locke e Hume, e não eminentemente no sentido que lhe conferiu Newton. Se quisermos evitar esta ambigüidade e eliminá-la, a fim de instruir o problema de um modo fecundo, não será necessário pensar quando utilizamos o termo experiência, na experiência ordinária, experimenta mater studiorum, nem mesmo na história natural – cuja distinção em relação à ciência da natureza, é necessária: mas a experiência deve ser tomada como uma expressão geral, que engloba todos os fatos e todos os métodos próprios do conhecimento científico, e cuja questão filosófica, excluindo a ética, deve se ocupar.
É através deste sentido “englobante”, por assim dizer enciclopédico, que Kant considera a palavra “experiência”, ele busca definir o conceito de experiência em um conceito do conhecimento da natureza. Conhecimento da natureza e conhecimento moral, eis aqui as duas espécies de conhecimento cuja distinção forma o início do trabalho de Kant (é neste começo que as disputas na filosofia moderna encontram sua fonte vitoriosa). No entanto, Kant qualifica o conhecimento da natureza conforme o espírito de seu tempo, isto é, qualifica-o de “experiência” na esperança de que pela determinação do conceito de experiência pudesse levar a termo seu tempo iniciando, assim, uma nova era.
Contudo, para finalizar tal determinação do conceito de “experiência” era antes necessário resolver a questão da “experiência” nas ciências particulares, determinando assim seu valor em relação a cada uma destas ciências e, ao mesmo tempo, estimulando sua espécie de certeza.
Se não fixarmos a experiência em cada uma das ciências determinadas, o uso deste termo permaneceria tão obscuro e forneceria tão pouca orientação quanto aquele conceito de razão, ao qual nós fazemos apelo como outro slogan. Descartes, quando usa o termo “razão” pensa ora na matemática, ora na consciência de si e por fim na idéia de Deus. Em Leibniz, também, a razão é ora a instância da matemática e da física teórica, assim como a fonte da lógica que permiti legitimar as duas ciências anteriores, mas há certos momentos, que o termo razão designa, ao contrário, uma oposição inconciliável entre razão e sensibilidade “confusa” – no instante, em que ela (a razão) é de preferência vinculada ao “reino das graças”.
Assim como fora o caso para este slogan que constitui a palavra “razão”, necessitaremos começar por fixar o slogan formado pela palavra “experiência” nas ciências, visto não ser possível e nem prudente evitar completamente estas duas qualificações correntes. Buscando fixar a experiência nas ciências, Kant não se contenta, simplesmente, em distinguir as ciências da natureza naquelas que são teóricas e naquelas que são descritivas. Mas, ele foi além com a explicação dos fundamentos metodológicos, fazendo da matemática por si mesma, um problema de pesquisa filosófica. Este isolamento da matemática possui um aspecto problemático, e tanto seu fundamento quanto a sua justificação requer um exame detalhado.
Por todos os lados, pode aparecer que Kant colocou sua questão em relação à matemática nela mesma e por ela mesma. Antes de tudo, esta ligação interna da matemática com os elementos filosóficos dos princípios mecânicos – elementos qualificados de especulativos – não era transparente, a tal ponto que poderíamos ter tomado de um modo suficientemente cômodo a relação natural, isto é, o ajustamento recíproco da matemática e da ciência teórica da natureza, com o intuito de oferecer, assim, uma formulação acabada do problema. Se Hume pôde, entretanto, crer que a física repousava principalmente sobre a experiência, isto significava para ele que ela repousava sobre a percepção habitual das sucessões e sobre a interpretação que lhe oferece o princípio da causalidade. Em Leibniz, a interpretação da matemática e de seus pressupostos filosóficos é tão pouco reconhecida que este filósofo coloca este princípio lógico, que é o princípio de razão, como princípio que permiti ultrapassar a física, ao passo que para ele é este princípio de identidade que responde a matemática. Assim, matemática e ciência teórica da natureza são ainda consideradas, mesmo em Leibniz, separadas uma da outra.
É necessário, ainda, acrescentar o que foi que ocorreu que somente a matemática foi, particularmente, no século XVIII, o objeto das oposições mais pesadas e rigorosas. Berkeley examina os conceitos fundamentais da matemática e aponta contradições, particularmente, no conceito fundamental e criador próprio da matemática nova – o conceito de infinitamente pequeno – e concluí que a certeza matemática, tão vangloriada, não se distingui absolutamente das suposições das crenças. Se a maior parte dos autores não tirara esta conclusão é porque lhes faltaram coragem e clareza que era, na verdade, o que faltava mesmo a muitos filósofos de ofício e que não fazia nenhuma falta no absurdo crítico de Berkeley.
Mas, no fundo, todos estavam ainda na obscuridade naquilo que se refere à característica verdadeira da certeza matemática. A evidência era tão pouca reconhecida – no entanto, menos reconhecida por Leibniz do que por Descartes. E quanto ao modo como pensava o campo dos wolfinianos? Ele se manifestou na disputa entre Kant e Mendelssohn, relativamente na questão colocada pelo concurso da academia de Berlim em 1763. Mendelssohn recebeu o prêmio, graças a um trabalho que sustenta a concepção segunda a qual a evidência matemática se distinguiria da evidência filosófica apenas de um ponto de vista lógico, isto é pela compreensibilidade. No momento em que o conhecimento matemático é distinguido dos demais conhecimentos, já se podia observar o traço da concepção sistemática no trabalho de Kant.
Além disto, é necessário observar que Hume moderou nos Ensaios seu cepticismo avesso à matemática, e sem nenhuma reserva o fez também no Tratado. Que isto possa, talvez, ter tido numerosos efeitos nos escritos e nas declarações que puderam, em seguida, influenciar Kant; eis aí o que nós podemos dificilmente perceber. De tal forma, Kant pôde ser levado a examinar separadamente o fundamento da certeza matemática, mesmo que ele tenha pensado ulteriormente, de um modo errôneo, que Hume foi protegido, graças a seu entendimento sadio, de tal conseqüência.
No fim das contas, era importante se opor ao prejuízo segundo o qual seria mesmo possível que a prova filosófica da evidência matemática não pudesse tomar ou dar alguma coisa. É este prejuízo que igualmente sustentou o ceticismo. Tratar-se-ia de descobrir no domínio do mundo do conhecimento matemático a fonte da qual é deduzida a espécie de certeza que lhe é própria – a questão é a de saber se esta espécie de certeza é a mais alta possível e a mais ardentemente desejada? ou se ela, então, deveria ser deixada de lado. Seria necessário conhecer como a matemática é constituída – mas, não necessitaríamos de medi-la por meio de um ideal indeterminado de conhecimento e de certeza. Para estabelecer esta característica da matemática seria, portanto, necessário considerá-la independentemente da ciência da natureza.
O fundamento decisivo se encontra na coisa mesma e na resposta que se lhe dá. A matemática poderia não estar vinculada com a ciência teórica da natureza, a título de questão filosófica, porque a ciência teórica da natureza contém em si uma relação complicada entre a razão e a experiência. É necessário, contudo, que primeiramente a razão e a experiência sejam fixadas como conhecimento científico, que sejam elas objetos do conhecimento científico. Para tal propósito seria necessário começar por uma análise mais aprofundada dos meios do conhecimento, porque a relação do pensamento com a sensação não tinha sido colocada de uma maneira justa. É por isso que a relação entre razão e experiência permaneceu indeterminada. A bem dizer, o verdadeiro objeto desta querela acerca da sensibilidade é e era, desde sempre, a matemática – mesmo que tenhamos pretendido reconhecer nela o concurso da atividade do entendimento. Entretanto, a matemática e particularmente a geometria foram reenviadas à intuição e à imaginação. Também devemos esperar pouco que no exame separado desta espécie de conhecimento matemático, este elemento litigioso que é a sensação, possa ser determinado, já que há na interpenetração da matemática com a teoria da natureza uma relação complexa com a razão, onde não podemos dificilmente isolar a sensibilidade.
Assim, é explicável e compreensível que Kant, no que se refere à matemática, permanece no mesmo ponto de partida que predominava nos escritos de habilitação de 1770 – mesmo que a diferença com a Crítica pese de um modo suficientemente forte no que se refere à ciência da natureza. Uma vez que Kant distinguiu o modus sensibilis do modo intelligibilis, pode se, para instruir o problema crítico de um ponto de vista teórico, esperar que haja apenas um único domínio cientifico, aquele da ciência matemática da natureza com seus anexos – à titulo de domínio da experiência. No entanto, este único domínio científico pode se dividir em diferentes campos e, por conseguinte, exigir preferência a um ou outro modo de conhecimento. Le mundus deve teoricamente permanecer o mesmo, mas podendo ser considerado ora do ponto de vista da sensibilidade, ora sob aquele do pensamento. Assim, Kant retomou o exame particular do mundus sensibilis na Crítica, onde este mundus sensibilis não poderia ser separado do mundus intelligibilis, mas deveria ser identificado com ele, visto que há, precisamente, apenas uma natureza, uma ciência e uma experiência: A ciência matemática da natureza de Newton. Esta ciência é, contudo, construída sobre a matemática, sobre a experiência e sobre a especulação, de tal sorte que ela reuni em si mesma a sensação e a razão. Eis aí porque Kant começou por examinar a matemática de um ponto de vista autônomo, com o intuito de estabelecer, caso se encontre nesta ciência uma relação entre razão e sensação, qual é o fundamento de eficácia do valor do conhecimento que lhe é próprio.
Se nós temos sob nossos olhos o esboço da disposição do domínio do conhecimento, devemos antes que comece o exame deste domínio, dar a conhecer o procedimento metodológico de Kant, visto que ele qualificou nos anos 60 o problema do método unitário, análogo aquele que Newton descobriu para a ciência da natureza, de problema principal da filosofia. Foi, com efeito, o método quem dirigiu, em todas as questões, os exames de Kant, foi ele quem distinguiu verdadeiramente – apesar de todas as afinidades das tendências e toda comunidade de problemas e de conceitos – a filosofia de Kant daquela de seus predecessores. A originalidade e a missão de Kant se encontram principalmente neste método. Este método é o método transcendental.
Esta ligação da matemática e da metafísica na constituição da ciência da natureza; e mesmo a extensão desta última na experiência sob o pressuposto que esta experiência contenha a descrição da natureza, todas estas disposições (perspectivas) na formulação do conceito de conhecimento da natureza são expostas pelo texto publicado e retirado dos manuscritos póstumos, que queremos citar, aqui, a título de “passagem”, e que Kant conscientemente escolheu. Nós estamos certos quanto ao propósito – conforme a natureza geral deste escrito – das declarações que determinaram de uma maneira diferente este termo. Nós queremos, aqui, se para tanto pudéssemos nos dirigir a este manuscrito sem expor de um modo preciso sua história, citar algumas declarações que encontramos, sob o título “O que é a ciência da natureza em geral”? Nós encontramos, (após o autor ter mencionado – o que se explica pelos desenvolvimentos ulteriores – e caracterizado, brevemente, a expressão “philosophia naturalis”), as seguintes proposições:
A metafísica e a matemática são fontes auxiliares da ciência da natureza (subsidia), na medida em que elas são os princípios a priori que preparam esta ciência; mas, esta daqui (a ciência da natureza) deve, entretanto, ser uma ciência filosófica (philosophiae naturalis), afim de poder inspirar respeito através desta preparação que lhe trazem a matemática e a disciplina que caminha em seus passos (a metafísica), sob o nome de Philosophiae Naturalis principia mathematica2.
Neste texto a metafísica é aparentemente qualificada de “disciplina que caminha nos passos” da matemática, mas é necessário entender esta qualificação de maneira irônica.
Não teria uma contradição interna na expressão “princípios matemáticos da ciência da natureza”, contradição que não é apagada pelo fato de que os princípios filosóficos e aqueles matemáticos são princípios a priori 3 ?
Estas páginas de Kant repetem em inúmeras vezes esta crítica ao título da maior obra de Newton e exprimem os diferentes degraus da reprovação:
Assim como ele não pode ter princípios filosóficos da matemática, não pode também ter princípios matemáticos da filosofia (por conta da qual colocamos, contudo, a física). Contudo, Newton intitulou, assim, sua obra imortal. Entretanto, o título deveria ser o seguinte: Scientiae naturalis principia mathematica - e não philosophiae, etc: uma contradição que resulta da pretensão 4 .
Ora encontramos, aqui, um rival que não é nada menos que Newton em sua obra imortal: Philosophiae Naturalis principia mathematica. Há, contudo, no título desta obra, uma contradição nos termos. Estes princípios podem, contudo, ser ordenados, não somente uns pelos outros, mas uns ao lado dos outros. O que significa que apenas podemos fazer um uso filosófico da matemática indiretamente, ou seja, a título de instrumento, sem ultrapassar seu campo5.
Mesmo que ele não pudesse, com efeito, ter nesta parte que é a ciência da natureza, os princípios matemáticos da filosofia, ele pôde, no entanto, fazer um uso filosófico da matemática tomando-a como simples instrumento da física, a título de filosofia, de tal sorte que a matemática seria um princípio indireto das ciências da natureza de um ponto de vista, que certamente não é objetivo, mas subjetivo, podendo, contudo, pretender uma certeza que não é empírica, mas apoditíca, análoga à certeza da matemática. Nós podemos tratar do movimento de uma maneira completamente matemática; pois são os conceitos de espaço e tempo que podem ser apresentados a priori na intuição pura e constituídos pelo entendimento. Contudo, no que se refere às forças motrizes, a título de causa eficiente destes movimentos, da mesma forma que a física necessita destas forças e de suas leis, estas forças necessitam de um princípio filosófico6.
Isto não fora concluído por Newton, mas fora levado a termo por ele a título de filósofo que trouxera a tona novas forças7.
Ora, Newton se erguera procedendo como um filósofo8.
A ciência da natureza, que deve se originar nos princípios a priori, sem os quais ela não seria uma ciência, tem, portanto, dois apoios ou bem dispõe de duas asas: a filosofia e a matemática. Contudo, elas não são pensadas como agregadas umas às outras, como duas ciências diferentes, mas são pensadas como complemento uma da outra, como estando ligadas umas as outras por meio de um sistema (do qual se retiram todas as duas) 9.
O princípio científico da ciência da natureza se apresenta como teoria das forças motrizes da matéria, para tanto é manifestamente a priori, é racional, portanto, ou bem matemático ou bem filosófico. Surge a presente questão de saber se um destes sistemas pode ser pensado como sendo dependente de outro sistema que seria seu princípio? E se nós podemos os dividir em dois domínios, cujo primeiro levaria o título de Scientiae Naturalis principia mathematica, ao qual corresponderia, portanto, a parte oposta, intitulada Scientiae naturalis principia philosophica: O primeiro domínio seria um contra-senso (non-sens) – mesmo tendo sido nomeado por Newton em sua obra imortal 10.
Assim, nós ganhamos a partir destas observações de Kant, que não foram subitamente esboçadas, uma visão clara sobre o sentimento que ele tinha de sua autonomia em relação a Newton, que fora, a título de gênio científico, e não de filósofo, o rival de Leibniz. Esta autonomia se encontra em seu método, de acordo com ele, Kant pôde esperar a disposição do domínio do conhecimento em seu conjunto.
Para adicionar comentários, você deve ser membro de JUDAISMO SECULAR HUMANISTA.
Respostas