Cada geração tem uma abordagem diferente dos feriados. Seus costumes e significados mudam com o tempo. É difícil distinguir os mecanismos que fazem com que a memória de uma festa seja preservada, enquanto outras datas do calendário são levadas ao esquecimento.
Quem hoje se lembra do "Dia de Nicanor", ou poderia nos contar o que aconteceu ao braço-direito daquele general selêucida após ter sido esquartejado por Judá, o Macabeu, na batalha de Bet Horon e orgulhosamente exposto para todos verem próximo a Jerusalém? Similarmente, poucas pessoas têm noção do significado do 17º dia do mês hebraico de Heshvan, designado como o primeiro dia da temporada de jejum durante um ano de estiagem.
Por outro lado, Tu Bishvat teve um renascimento: o que uma vez foi uma data mais marginal do calendário hebraico foi transformada num verdadeiro feriado na era do Israel moderno. Hanuka foi transformada de uma celebração religiosa de uma redenção miraculosa para uma ocasião de homenagem ao sionismo, heroísmo e orgulho nacionalista.
E Pessach? Além de ser claramente o mais eterno dos feriados judaicos, parece que seu significado sofrerá uma grande mudança. O Pessach (”Passagem”) é o nosso original Dia da Independência - o feriado que marca a transformação existencial dos hebreus de uma nação de escravos para um povo soberano. De um conjunto de tribos em uma nação.
O seder (jantar ritual) e a Hagadá (livro que resume a história do Êxodo do Egito) são as duas principais razões pelas quais o Pessach tem sido preservado. Desde tempos imemoriais, a festa e a leitura cerimonial da Hagadá foram os veículos para uma desafiadora asserção de nossa identidade nacional, esperança e fé na redenção. Nossos antepassados opuseram-se ao Faraó; nossos sábios, durante o período do Segundo Templo, tiveram que enfrentar os romanos; os cristãos-novos na Espanha, observaram clandestinamente o Pessach, desafiando seus inquisidores: todos encontraram abrigo na energia redentora da narrativa da Hagadá.
Foi assim ao longo da maior parte da História judaica: O passado serviu para moldar e explicar o presente. E sempre que fomos privados de soberania e imersos em temores pela nossa existência.
Foi assim que o Pessach se tornou a resposta definitiva à questão de como celebrar um feriado de redenção, preservando aspirações nacionais, quando na verdade, vivemos através de eras de subjugação, destruição, perda de independência e exílio.
Assim, somos deixados a nos perguntar sobre o significado de tal celebração sob o olhar de uma geração que se declarou redimida e com seus grilhões removidos. E esta é uma geração que não tem receio de abrir a porta e ir para onde desejar.
'Despeja tua fúria'
O Pessach como nós o conhecemos está em perigo de se dissipar e desaparecer como ocorreu com o Dia de Nicanor, a não ser que consigamos atribuir ao feriado significados completamente novos.
A questão existencial fundamental colocada pelas gerações passadas era: "Como sobrevivermos e perdurarmos frente aos nossos inimigos?". A resposta era simples: "Ve'hi she'amda" - o Senhor "irá nos salvar de suas mãos" e irá "despejará sua fúria sobre os gentios".
Pessach era o feriado que servia como prova de resiliência, da possibilidade de sobreviver/ resistir ao? contra o mundo todo. E quanto à nossa geração? Parece que estamos à beira de uma era na qual a questão básica será: "Poderá o povo judeu sobrever sem um inimigo externo?" Podemos estar a um momento histórico de nos encontrarmos num lugar único em nossa História, onde uma enorme maioria do povo judeu esteja além do alcance de uma ameaça existencial?.
O advento da paz poderia possivelmente conduzir nosso exitoso retorno à História do mundo como atores/ participantes ativos, como desejava o sionismo. Será que temos as ferramentas para continuar nossa existência como nação e cultura dotadas de completa soberania, abençoados pela paz, abraçados de aceitação global e como modelo de bem-estar social e igualdade? Podemos continuar a existir sem um adversário perene, sem sermos vítimas de perseguições e pogroms? Sem um “faraó”?
Uma possível resposta é não. Nesse caso, o povo judeu não continuará a existir. Irá assimilar-se às outras nações, adequando nossa realidade multicultural e contemporânea.
Outra opção é o isolamento e a construção de muros ainda mais altos para separar o povo judeu do resto do mundo, enquanto se criam conflitos perpétuos que irão repetidamente provar que "todo o mundo está contra nós". Nesse caso, o Pessach dos dias modernos irá se parecer muito com o Pessach passado. Será um feriado que perpetua o interminável choque entre Israel e o mundo.
Existe outro caminho? É possível atribuir a este feriado um novo significado, que emocione o ser humano moderno e emancipado?
Para fazê-lo, é preciso adotar uma nova interpretação do Êxodo do Egito. Em vez de ser visto como um simples conflito nacionalista, a luta mítica e ficcional entre "Deus" e "os deuses do Egito"; ou, a fuga de uma nação de escravos de uma nação de seus senhores, o Pessach pode ser visto como a representação de um choque fundamental entre visões de mundo: a vitória de direitos humanos sobre a obsessão pela conquista e as armadilhas da riqueza; uma vitória sobre o medo e o terror que são parte de todas as relações baseadas na força.
O exaltado chamado "Deixe meu povo ir!" não teria sido possível sem a concepção de liberdade exposta por cinco mulheres corajosas: Iocheved, mãe de Moisés, que desafiou as ordens do Faraó para que se jogassem todos os meninos judeus no Nilo; as duas parteiras que a ajudaram; Miriam, irmã de Moisés; e a filha do Faraó, que também se uniu à rebelião. Elas estiveram entre os primeiros a entender o cerne das questões. E isto as levou a encabeçar a primeira revolução que foi nacionalista, feminista e humanista.
Essas mulheres disseram a si mesmas: se o Faraó - aquele tirano egípcio - realmente possui um poder absoluto, isto significa que nós não existimos. Nossa liberdade só emergirá e estimulará toda a raça humana a florescer, se sua tirania absoluta for despedaçada. A liberdade do "Eu" só emergirá se pudermos colocar limites ao absolutismo do "Outro".
Isto será verdade para as relações entre um indivíduo e um regime, assim como entre cada ser humano e seus pares. Deverá permitir que a liberdade "abra espaço" para o diálogo e a aceitação do "Outro", que se opõe a mim.
A liberdade equivale ao respeito a outros serem humanos pelo "outro". Sem ela, não teríamos conquistado a redenção do Egito. Sem ela, o mundo não será consertado e limpo de sua mentalidade escravizadora, da discriminação e ódio que ainda se aninha em cada aspecto das nossas vidas.
As mulheres do Pessach são as pioneiras que inculcaram novos símbolos do feriado. A revolução pela igualdade ainda não foi completada para muitos, muitos demais - mesmo por pessoas que vivem nas mais avançadas sociedades atuais. A mulher ainda é a "outra". Ela é como nós, mas ainda é diferente, inferior, desigual. Assim, a igualdade das mulheres é o primeiro e supremo "teste do Pessach" para qualquer sociedade.
Não é preciso esperar por um feriado no qual Deus desça do paraíso e nos salve. Este não será apenas mais um feriado em que toda a ordem mundial mude, e recebamos os benefícios de experiências positivas, enquanto nossos adversários apenas absorvem calamidades e sofrimentos. O novo Pessach será mais casto, humilde e concessivo. A comemoração de uma lei universal que garanta direitos humanos para todos. Será uma celebração da responsabilidade humana - aqui embaixo - e não da mão redentora de Deus lá de cima.
O jugo existencial "egípcio" está dentro de cada um de nós, como nação e como indivíduos. E a libertação desse jugo será derivada do espírito de Maimônides, que na Idade Média ansiava não apenas pela nossa salvação pessoal, mas por uma nova realidade, onde nenhuma nação conquistaria outra nação, povos não controlariam outros povos, seres humanos não oprimiriam o "outro", homens não discriminariam mulheres e a maioria não maltrataria os diferentes de seu meio.
O novo Pessach não apenas nos ensinará sobre as limitações da força dos poderosos, abrindo caminho para os fracos. A lição que ele encerra é ainda mais profunda.
Apenas a libertação pelo "outro" da minha escravização sobre ele irá trazer a minha libertação da sua escravidão. Um senhor é um escravo, assim como o preso e o guarda da prisão, são ambos cativos do mesmo sistema.
Aqueles que lêem textos antigos do jeito em que foram escritos e os enxergam além das camadas de filtros sobre eles empilhada, principalmente por gerações de homens, verão o Êxodo do Egito como constituindo outro tipo de redenção - mais sintonizado com o dia de hoje: a redenção de igualdade entre sexos, raças, crenças e etnias.
O Pessach representará, para homens da mesma forma como para mulheres, uma celebração do amplo espectro da igualdade. Quatro filhos, quatro filhas, quatro estrangeiros e quatro "outros".
Quatro respostas. Todos são diferentes e todos são iguais. Todos são filhos deste mesmo lugar.
AVRAHAM (AVRUM) BURG, um dos fundadores do PAZ AGORA, foi presidente do parlamento israelense Knesset, do qual foi deputado por várias legislaturas.
Artigo publicado no Haaretz em 30|03|10 e traduzido por MOISÉS STORCH para o PAZ AGORA|BR.
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