PESSACH TRECHO DE O MISTÉRIO DO AMOR Rabino Marc Gafni |
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Imaginação... Emancipação A maior crise de nossas vidas não é de natureza econômica, intelectual, e nem religiosa. É uma crise da imaginação. Empacamos em nossos caminhos pois não conseguimos re-imaginar nossas vidas de uma outra maneira. Agarramo-nos desesperadamente ao status quo, receosos de que, se abrirmos mão dele, seremos arrastados pela torrencial corrente subterrânea do nosso vazio. Os mestres místicos consideram que a libertação do Egito deve-se ao poder da imaginação. O grande Êxodo começou com o sonho de um homem chamado Nun, um escravo hebreu. Uma certa manhã, ele acordou atônito com o que tinha sonhado, algo praticamente inimaginável: ele vislumbrou uma época em que os hebreus eram livres! Mais do que livres, eles eram corajosos guerreiros, responsáveis pela dignidade de seu próprio destino. Um número cada vez maior de pessoas soube deste sonho. Considera-se que a esperança despertada por esta visão deflagrou a dinâmica da revolução que afinal levou à liberdade. Embora muito tempo tivesse de passar para que este sonho se tornasse realidade no pragmático mundo da política, ele representou o verdadeiro começo do Êxodo. A escravidão termina quando conseguimos nos re-imaginar como pessoas livres. Reparem que Nun é o pai do sucessor de Moisés, Josué, que levou o povo à Terra Prometida. Toda liberdade tem início com uma deliberada decisão de levantar e declarar: "Eu tenho um sonho!" E, mesmo que nós não alcancemos a Terra Prometida, podemos colocar em movimento correntes de redenção que irão curar nosso mundo. Se não conseguirmos, nossos filhos chegarão lá. A geração de Nun morreu antes de chegar a Canaã. Mas todos os seus netos cresceram na Terra Prometida. Nikos Kazantzakis, um profeta da imaginação, declara: "Você tem seu pincel e suas cores, portanto pinte o paraíso e entre nele." Esta é uma descrição quase perfeita do espírito que dá vida ao mítico ritual bíblico que a cada ano celebra o Êxodo do Egito. A cada ano, no aniversário do Êxodo Hebreu, as pessoas se encontram para um ritual bíblico e mítico singularmente importante: Pessach. Ao contrário de datas nacionais de independência, sua ênfase não reside na comemoração mas sim na imaginação. Este é o princípio norteador desta data: "Cada pessoa tem a obrigação de imaginar a si própria como saindo do Egito." Os cabalistas explicam este epigrama talmúdico, o mantra que orienta o ritual, como um convite a uma re-imaginação pessoal absolutamente sem precedentes. Você está no Egito, no seu próprio Egito. Egito, mitzrayim, significa literalmente "os espaços estreitos", as apertadas vias de passagem do fluxo de nossas vidas. O Egito - que, em termos cabalísticos, é a nossa garganta - simboliza todas as palavras que permanecem aprisionadas em nossa garganta; as palavras não-proferidas. As histórias de nossas vidas que permanecem não-vividas, não-cantadas, não-imaginadas. Nós somos escravos. Para o cabalista, a escravidão é, sobretudo, uma crise da imaginação. Portanto, a cura da escravidão é um ritual da imaginação. Durante toda uma noite, tornamo-nos dramaturgos, coreógrafos e inspirados atores. Nós re-imaginamos nossas vidas como um primeiro passo em nosso caminho para a liberdade. Como George Bernard Shaw nos relembra: "A imaginação é o início da criação. Você imagina o que quer; deseja o que imagina, e termina por criar o que você deseja." Bachelard estava certo quando afirmou que a imaginação, "mais do que qualquer outra faculdade é o que caracteriza a psique humana". Vejamos também o que diz Norman O. Brown, um profeta de eros do século XX: "O homem cria seu corpo e a si mesmo na liberdade simbólica de sua imaginação. O Corpo Humano Eterno é a Imaginação." O mestre místico Reb Nachman de Bratzlav afirma: "O homem foi chamado Adam pelo seguinte motivo: Ele é formado por adama, o pó do que é físico; no entanto, ele pode se erguer acima do mundo material ao fazer uso de sua imaginação e, assim, atingir o nível da profecia." A palavra em hebraico para "eu vou imaginar" é adameh. Segundo Reb Nachman, o impulso humano essencial, que dá luz ao nosso espírito, é a evolução de adama para adameh. Adama é chão, terra, Gaia. Mas pode também ser lido como adameh, "Eu vou imaginar". O homem surge da Natureza para viver o que o filósofo Joseph Soloveitchik chamou de "uma existência impulsionada pela fantasia". A imaginação não é um detalhe de nossas vidas, e nem um mero recurso metodológico. Ela é a própria essência do que somos. Geralmente nos vemos como animais pensantes, homo sapiens. O "penso, logo existo" de Descartes está impresso de forma indelével em nosso código genético e cultural. No entanto, o mito bíblico apresenta uma outra compreensão do que seja "humano". A mais próxima palavra em hebraico para "humano" ou o latim "homo", é "adam". A palavra "Adam" provém do radical hebraico que significa imaginação (d'mayon). A surpreendente implicação disso é que o ser humano não é basicamente homo sapiens, mas sim o que chamarei de "homo imaginus". Na aurora da existência humana, a criatura é descrita como tendo sido criada à imagem de D'us. "À imagem de D'us" não significa uma representação idólatra da divindade. D'us não tem uma forma fixa. D'us é, isto sim, a possibilidade da possibilidade. Conseqüentemente, a criação do homem à imagem e semelhança de D'us deve ser entendida de duas maneiras. Primeiro, a humanidade não é apenas "feita à imagem de D'us" mas, sobretudo, "na imaginação de D'us, fruto da fantasia divina". Segundo, como seres humanos, nós também participamos da imaginação divina - homo imaginus. Quão distante é esta compreensão da depressiva desesperança do pensamento existencial moderno! Nosso anseio pelo bem é desprezado por Sartre como um "paixão inútil". A imaginação humana, diz Camus, nos condena à miséria, pois é, segundo ele, absurda. De acordo com essa visão, ansiamos por bondade, beleza e ternura em um mundo para sempre desfigurado pela feiúra, pela maldade e pela injustiça. Mas para o místico bíblico, a erótica imaginação de um mundo de justiça e paz marca a imanência de D'us em nossas vidas. Nosso descontentamento criativo, que nos leva a imaginar uma outra realidade , é a imagem/imaginação de D'us batendo em nossos corações. O cosmos está grávido de sinais que orientam nossas imaginações. Somos conclamados a curar o mundo à imagem de nossas mais belas imaginações. O eros da imaginação é o elixir de D'us fluindo através do universo. Que possamos neste Pessach quebrar as correntes do status quo e do sedentarismo mental. Que possamos imaginar, a nós e a todas as pessoas, como totalmente livres. E que assim seja! |
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