Postado por Jayme Fucs Bar em 25 de Outubro de 2009 às 7:52am
PAULO FREIRE O GRITO MANSO
Tradução do espanhol: Leonardo Calderoni
PRÁTICA DA PEDAGOGIA CRÍTICA
(Primeira parte do seminário-oficina)
Antes de tudo, quero agradecer esta demonstração de afeto, de gente que vem de longe, viajando
horas, mesmo sabendo que o tempo que temos a disposição é escasso.
Esta tarde vamos tratar do tema da prática educativa, de como viemos compreendendo ou
tentando compreender esta prática, nosso compromisso com a vida e o mundo.
Antes de tudo, não é possível exercer a tarefa educativa sem nos perguntarmos, como
educadores e educadoras, qual é nossa concepção do homem e da mulher. Toda prática
educativa implica esta indagação: o que penso de mim mesmo e dos outros. Faz tempo, em
Pedagogia do Oprimido analisei o que ali denominava a busca do ser mais. Nesse livro defini o
homem e a mulher como seres históricos que se fazem e se refazem socialmente. É a
experiência social a que em ultima instancia nos faz, que nos constitui como estamos sendo.
Gostaria de insistir neste ponto: os homens e as mulheres, como seres históricos, somos seres
incompletos, inacabados ou inconclusos. A inconclusão do ser não é, contudo, exclusiva da
espécie humana já que abarca também a cada espécie vital. O mundo da vida é um mundo
permanentemente interminado, em movimento. Todavia, em determinado momento de nossa
experiência histórica, nós, mulheres e homens conseguimos fazer de nossa existência algo mais
do que meramente viver. Em certo sentido, os homens e as mulheres inventamos o que
chamamos a existência humana: nos pusemos de pé, liberamos as mãos e a liberação das mãos é
em grande parte responsável pelo que somos. A invenção de nós mesmos como homens e
mulheres foi possível graças a que liberamos as mãos para usá-las em outras coisas. Não temos
data desse evento, que se perde no fundo da história. Fizemos essa coisa maravilhosa que foi a
invenção da sociedade e a produção da linguagem. E foi aí, nesse preciso momento, no meio
desse e outros .saltos. que demos, que mulheres e homens alcançamos esse momento
formidável que foi compreender que somos interminados. As arvores ou os outros animais
também são interminados, mas não se sabem interminados. Os seres humanos ganhamos nisto:
sabemos que somos inacabados. E é precisamente aí, nesta radicalidade da experiência humana,
que reside a possibilidade da educação. A consciência do inacabamento criou o que chamamos a
.educabilidade do ser.. A educação é, então, uma especificidade humana.
Este inacabamento consciente de si, é o que nos vai permitir perceber o não-eu. O mundo é o
primeiro não-eu. Tu, por exemplo, és um não-eu de mim. E a presença do mundo natural como
não-eu, vai atuar como um estimulo para desenvolver o eu. Nesse sentido, é a consciência do
mundo que cria a minha consciência. Conheço o diferente de mim e nesse ato me reconheço.
Obviamente, as relações que começaram a estabelecer-se entre o nós e a realidade objetiva
abriram uma série de interrogantes, e esses interrogantes levaram a uma busca, a uma tentativa
de compreender o mundo e compreender nossa posição nele. É nesse sentido que eu uso a
expressão .leitura do mundo. como precedente à leitura das palavras. Muitos séculos antes de
saber ler e escrever, os homens e as mulheres estavam inteligendo o mundo, captando-o,
compreendendo-o, .lendo-o.. Essa capacidade de captar a objetividade do mundo, provem de
uma característica da experiência vital que nós chamamos curiosidade. Se não fosse pela
curiosidade, por exemplo, (não) estaríamos aqui hoje. A curiosidade é, junto com a consciência
do inacabamento, o motor essencial do conhecimento. Se não fosse pela curiosidade, não
conheceríamos. A curiosidade nos empurra, nos motiva, nos leva a desvendar a realidade
através da ação. Curiosidade e ação se relacionam e produzem diferentes momentos ou níveis de
curiosidade. O que procuro dizer, é que em determinado momento, empurrados por sua própria
curiosidade, o homem e a mulher em processo, em desenvolvimento, se reconheceram
inacabados e a primeira conseqüência disso é que o ser que se sabe inacabado entra em um
permanente processo de busca. Eu sou inacabado, a arvore também é, mas eu sou mais
inacabado que a arvore porque o sei. Como conseqüência quase inevitável de saber que sou
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inacabado, me inserto em um movimento constante de busca, não de busca pontual de isto ou
aquilo, senão de busca absoluta, que pode me levar à busca de minha própria origem, que pode
me levar a uma busca do transcendental, à busca religiosa que é tão legitima como a busca não
religiosa. Se há algo que contraria a natureza do ser humano é a não busca e por tanto a
imobilidade. Quando digo imobilidade, me refiro à imobilidade que há na mobilidade. Alguém
pode ser profundamente móvel e dinâmico mesmo estando fisicamente imóvel e vice-versa.
Dessa maneira, quando falo disto, não falo da mobilidade ou imobilidade física, falo da busca
intelectual, da minha curiosidade em torno de algo, do fato de que possa buscar mesmo quando
não encontre. Por exemplo, eu posso passar a vida em buscas que aparentemente não são grande
coisa e, contudo, o fato de buscar é fundamental para minha natureza de ser buscador. Agora,
não há busca sem esperança, e não há porque a condição do buscar humano é fazê-lo com
esperança. Por esta razão, sustenho que a mulher e o homem são esperançados, não por
obstinados, senão como seres buscadores. Esta é a condição do buscar humano: fazê-lo com
esperança. A busca e a esperança formam parte da natureza humana. Buscar sem esperança,
seria uma enorme contradição. Por esta razão, a presença de vocês no mundo, a minha, é uma
presença dos que andam e não dos que simplesmente estão. E não é possível andar sem
esperança de chegar. Por isso, não é possível conceber um lutador desesperançado. O que sim
podemos conceber são momentos de desesperança. Durante o processo de busca, há momentos
em que alguém se detém e se diz a si mesmo: não há o que fazer. Isto é compreensível,
compreendo que se caia nessa posição. O que não concordo é que permaneça nessa posição.
Seria como uma traição a nossa própria natureza esperançada e buscadora.
Essas reflexões que estamos fazendo têm como objetivo falar sobre os marcos essenciais da
nossa prática educativa. Como posso educar sem estar envolvido na compreensão critica da
minha própria busca e sem respeitar a busca dos alunos? Isto tem a ver com a cotidianidade da
nossa prática educativa como homens e mulheres. Sempre digo homens e mulheres porque
aprendi há muitos anos, trabalhando com mulheres, que dizer somente homens é imoral. O que
é a ideologia! De criança, na escola, aprendi outra coisa: aprendi que quando se diz homem se
inclui também à mulher. Aprendi que em gramática o masculino prevalece. Ou seja, se todas as
pessoas aqui reunidas fossem mulheres, mas aparecesse somente um homem, eu deveria dizer
.todos. vocês e não .todas. vocês. Isto, que parece uma questão de gramática obviamente não
é. É ideologia e eu levei um tempo para compreender. Já havia escrito Pedagogia do Oprimido.
Leiam vocês às edições em espanhol dessa obra e verão que esta escrita em linguagem machista.
As mulheres norte-americanas me fizeram compreender que eu havia sido deformado na
ideologia machista.
Voltando ao tema: é impossível, a não ser de cair no desespero, deixar de buscar e, portanto
deixar de ter esperança. Dizia-lhes também que outro marco fundamental da prática educativa é
a inconclusão, dado que é nessa inconclusão que o ser humano se torna educável. Todo
educando, todo educador se descobre como ser curioso, como buscador, indagador inconcluso,
capaz, contudo, de captar e transmitir o sentido da realidade. É no próprio processo de
inteligibilidade da realidade que a comunicação do que foi inteligendo se torna possível.
Exemplo: no momento mesmo que compreendo, que raciono como funciona um microfone, vou
poder comunicá-lo, explicá-lo. A compreensão implica a possibilidade de transmissão. Em uma
linguagem mais acadêmica diria: a inteligibilidade fecha em si mesma a comunicabilidade do
objeto inteligido.
Uma das tarefas mais belas e gratificantes que temos por diante como professores e professoras
é ajudar os educandos a constituir a inteligibilidade das coisas, ajudá-los a aprender a
compreender e a comunicar essa compreensão aos outros. Isto nos permite intentar uma teoria
da inteligibilidade dos objetos. Isto não quer dizer que a tarefa seja fácil. O professor ou a
professora não têm o direito de fazer um discurso incompreensível em nome da teoria
acadêmica e dizer depois: que se virem. Mas tampouco têm que fazer conceições baratas. Sua
tarefa não é fazer simplismo porque o simplismo é irrespeitoso para os educandos. O professor
simplista considera que os educandos nunca estarão à altura de compreendê-lo e então reduz a
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verdade a uma meia verdade, ou seja, a uma falsa verdade. A obrigação de professores e
professoras não é cair no simplismo porque o simplismo oculta a verdade, senão a de ser
simples. O que nós temos de fazer é conseguir uma simplicidade que não minimize a seriedade
do objeto estudado senão que a ressalte. A simplicidade faz inteligível o mundo e a
inteligibilidade do mundo traz consigo a possibilidade de comunicar essa mesma
inteligibilidade. É graças a esta possibilidade que somos seres sociais, culturais, históricos e
comunicativos. Por esta razão, o quebre da relação dialógica não é só o quebre de um principio
democrático, senão que é também o quebre da própria natureza humana. As professoras e os
professores democráticos intervimos no mundo através do cultivo da curiosidade e da
inteligência esperançada, que se desdobra na compreensão comunicante do mundo. E fazemos
isto de diferentes maneiras. Intervimos no mundo através de nossa prática concreta, intervimos
no mundo através da responsabilidade, através de uma intervenção estética, cada vez que somos
capazes de expressar a beleza do mundo. Quando os primeiros humanos desenharam nas
cavernas figuras de animais, já intervinham esteticamente sobre o mundo, e como seguramente
já tomavam decisões morais, também intervinham de maneira ética. Justamente na medida em
que nos tornamos capazes que intervir, capazes de mudar o mundo, de transformá-lo, de fazê-lo
mais belo ou mais feio, nos tornamos seres éticos. Até hoje jamais se soube que, por exemplo,
um grupo de leões africanos atirasse bombas sobre cidades de leões asiáticos. Não soubemos até
hoje da existência de algum leão que matasse com premeditação. Somos nós, os humanos, os
que fazemos estas coisas. Somos nós os que matamos e que assassinamos homens como
Mauricio López a quem eu conheci e cuja ausência tanto sinto e por quem tenho respeito,
admiração e saudade. Não foram elefantes os que o fizeram desaparecer Mauricio e tantos
outros, foram homens deste país que agiram provavelmente com a cumplicidade de alguma
presença gringa. Só os seres que alcançaram a possibilidade de ser éticos se tornam capazes de
trair a ética. A tarefa fundamental de educadores e educadoras é viver eticamente, praticar
a ética diariamente com as crianças e os jovens, isto é muito mais importante que o tema de
biologia, se somos professores de biologia. O importante é o testemunho que damos com nossa
conduta. Inevitavelmente cada aula, cada conduta é testemunho de uma maneira, ética ou não,
de afrontar a vida. Como trabalho na classe? Como trabalho com meus alunos a eterna questão
da inconclusão, da curiosidade? Como trabalho o problema da esperança encurralada pela
desesperança? O que eu faço? Baixo os braços? Parto para uma espécie de luta cega, sem saída?
Temos de educar através do exemplo sem pensar que por ele vamos salvar o mundo.Que mal
me faria a mim mesmo e a vocês si pensasse, por exemplo, que vim ao mundo com a missão de
salvá-los. Seria um desastre. Sou um homem igual a todos vocês e como vocês tenho uma tarefa
a cumprir e com isso já é o bastante. O mundo se salva se todos, em termos políticos,
brigarmos para salvá-lo. Há algo que está no ar, na Argentina, no Brasil, no mundo inteiro que
nos ameaça. Esse algo é a ideologia imobilizadora, fatalista, segundo a qual não temos mais
nada o que fazer, segundo a qual a realidade é imodificável. Estou cansado de ouvir frases como
esta: .É terrível, no Brasil há trinta milhões de mulheres, homens e crianças morrendo de fome,
mas o que podemos fazer, a realidade é esta.. Estou cansado de escutar que o desemprego que
se estende pelo mundo é uma fatalidade deste final de século. Nem a fome, nem o desemprego
são fatalidades, nem no Brasil, nem na Argentina, nem em nenhuma parte. Eu pergunto aos
fatalistas, em um livro que estou escrevendo agora: Por que será que a reforma agrária não é
também uma fatalidade no Brasil? Teriam ouvido falar do chamado especulativo do dólar,
bilhões de dólares viajando diariamente pelos computadores do mundo de lugar a lugar
procurando onde rende mais. Isso tampouco é uma fatalidade. É preciso, dizem os lideres
neoliberais, disciplinar estes movimentos especulativos para evitar as crises. Parece que isto sim
se pode fazer. Por que será que quando se vêm afetados os interesses das classes dominantes
não há fatalismo, mas sempre que aparece como por passe de mágica cada vez que afeta às
classes populares? Um dos grandes desafios que temos de afrontar hoje é a confrontação com
esta ideologia imobilista. Não há imobilismos na história. Sempre há algo que podemos fazer e
refazer. Fala-se muito da globalização. Vocês teriam visto que a globalização aparece como
uma espécie de entidade abstrata que se criou a si mesma do nada e frente à qual nada podemos.
É a globalização, ponto. A questão é bem diferente. A globalização só representa um
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determinado momento de um processo de desenvolvimento da economia capitalista que chegou
a este ponto mediante uma determinada orientação política que não necessariamente é a única.
Com o que disse até aqui, tratei de responder à questão de como vejo a prática docente frente à
realidade histórica atual. Disse-lhes que não há prática docente sem curiosidade, sem
incompletude, sem ser capazes de intervir na realidade, sem ser capazes de ser fazedores da
historia e, por sua vez, sendo feitos pela historia. Disse-lhes que uma das tarefas fundamentais,
tanto aqui como no Brasil e no mundo inteiro, é elaborar uma pedagogia critica. E lhes digo
não como alguém que .já foi., lhes digo como alguém que esta sendo. Igual que toda a gente,
eu também estou sendo, apesar da idade. Em função e em resposta a nossa própria condição
humana, como seres conscientes, curiosos e críticos, a prática do educador, da educadora,
consiste em lutar por uma pedagogia critica que nos dê instrumentos para nos assumirmos como
sujeitos da historia. Prática que devera basear-se na solidariedade. Talvez nunca como nesse
momento necessitamos tanto da significação e da prática da solidariedade. Para terminar,
reitero: sigo com a mesma esperança, com a mesma vontade de luta de que quando comecei.
Resisto à palavra .velho., não me sinto velho, em todo caso me sinto utilizado, cheio de
esperanças e vontade de lutar.
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ELEMENTOS DA SITUAÇÃO EDUCATIVA
(Segundo dia do Seminário-oficina)(Antes de iniciar, Roberto Iglesias anunciou que Paulo Freire não se encontrava muito bem, que falaria
uma hora e logo se retiraria. Na prática, Freire o desmentiria: acabaria falando quase três horas)
Agradeço a compreensão de vocês. Não é somente o trabalho, é a emoção, e a emoção desgasta.
Não é só o encontro com vocês, é a memória. Não é somente pelo que eu fiz ontem, é o que eu
fiz antes de ontem, o que eu fiz no mês passado, é a soma dos meus dias a que vem cansada.
Não é simplesmente questão de apertar um botão e por a memória para funcionar...
Estou contente de perceber que vocês me compreendem. Se pudesse, ficaria o dia inteiro.
Agora, respondendo a uma sugestão de Roberto Iglesias, vou tentar dizer algumas coisas, que
provavelmente vocês já saibam ou adivinhem, sobre o tema da educação e da formação docente.
Gostaria de iniciar com um exercício intelectual, o de pensar na situação que chamamos
situação educativa. A situação educativa não é qualquer situação. Uma situação de almoço, por
exemplo, pode ter em si alguns momentos educativos, mas não é necessariamente uma situação
educativa. Poderíamos pensar em uma situação educativa na casa, na relação entre o pai, a mãe
e os filhos, mas prefiro pensar na relação educativa típica, entre as professoras e os alunos. Não
importa que escola seja, primaria, secundaria, universitária ou circulo de cultura. O que eu quero
fazer é analisar e descobrir com vocês quais são os elementos constitutivos da situação
educativa.
Imaginemos que estamos na classe, que está a professora ou o professor e os alunos. Qual é a
tarefa da professora? Em palavras simples diríamos que a tarefa da professora é ensinar, e a
tarefa dos alunos, aprender.
Vemos então que o primeiro elemento constitutivo da situação educadora é a presença de um
sujeito, o educador ou a educadora, que tem uma determinada tarefa especifica que é a tarefa
de educar.
A situação educativa implica também a presença dos educandos, dos alunos, segundo
elemento da situação educativa.
O que mais descobrimos na prática desta experiência? Em primeiro lugar descobrimos que a
presença do educador e dos educandos não se dá no ar. Educador e educandos se encontram em
um determinado espaço. Esse espaço é o espaço pedagógico, espaço que os docentes muitas
vezes não tomam na devida consideração. Se nós nos detivéssemos a analisar a importância do
espaço pedagógico, passaríamos a manha discutindo, por exemplo, sobre as implicâncias da
falta de respeito dos poderes públicos com respeito a estes espaços. Mesmo com diferenças
entre lugar e lugar, esta é quase uma tradição histórica na América Latina. Quando em 1989 fui
convidado a assumir como responsável pela educação publica da cidade de São Paulo, havia
675 escolas, cerca de um milhão de alunos e 35.000 professores. 60% das 675 escolas estavam
em franco processo de deterioro material. Muitas, na época da informática, não tinham sequer
gizes. Em muitas escolas os banheiros eram absolutamente inutilizáveis, era uma aventura
ingressar a um banheiro. Faltava a merenda escolar, os materiais. Dessa maneira, as condições
materiais do espaço podem ser ou não ser em si mesmas pedagógicas. Como pode a professora,
por mais diligente que seja, por mais disciplinada e cuidadosa que seja, pedir aos alunos que não
sujem a sala, que não quebrem as cadeiras, que não escrevam nas carteiras, quando o próprio
governo, que deveria dar o exemplo, não respeita minimamente esses espaços? Quanto mais a
Direção da escola, a Secretaria de educação, os diferentes centros de poder demonstrem às
crianças e às famílias seu zelo pelo cuidado da escola, por reparar o teto e as paredes, por
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entregar gizes e plantas, tanto mais esta demonstração de respeito educará às crianças.
Disseram-me, não sei se é verdade, que na Administração de trens de São Paulo há um setor
encarregado de tirar diariamente os vagões danificados ou com assentos quebrados. Este setor
tira o carro, o conserta e o devolve imediatamente de maneira que os carros andem sempre
limpos e inteiros. A correção do carro inibe ao destruidor de assentos. Sem dúvidas, há uma
relação entre as condições materiais e nossas condições mentais, espirituais, éticas, etc.
O terceiro elemento constitutivo da situação educativa é, então, o espaço pedagógico. E como
não há espaço sem tempo, então o tempo pedagógico é outro elemento constitutivo da situação
educativa. Lamentavelmente, educadores e educadoras, poucas vezes nos perguntamos: o que
faço com meu tempo pedagógico, como posso aproveitá-lo mais eficientemente. Quase nunca
nos perguntamos: a serviço de quem, de que coisas esta o tempo educativo. E se trata de uma
pergunta fundamental. Obviamente o tempo educativo está a serviço da produção de saber. E
como não há produção de saber que não esteja diretamente ligada ou associada a ideais, a
pergunta que devemos nos fazer é: a serviço de quem, de que ideais produzimos, conjuntamente
com os alunos, o saber dentro do tempo-espaço da escola. E quando alguém se detém sobre este
ponto descobre que o tempo-espaço pedagógico se usa sobre todo contra os interesses das
crianças populares, embora não somente contra eles.
Peguemos como exemplo que as crianças chegam à escola às 8:00. Às 8:15 toca o sinal, as
crianças entram em fila militar, alguns professores ou professoras ainda não chegaram,
lamentavelmente existe isto. Às 8:20 as crianças estão chegando à sala. A professora faz a
chamada, aí vão outros dez minutos. São 8:30 e a professora . nessa caricatura que estou
fazendo . se está cansada não fará nada importante, pois já está pensando que às 10h servem o
lanche. Nesta hora toca o sinal e as crianças saem correndo, gritando e as professoras ficam em
uma sala, não vão ao recreio, deixam de participar desse momento pedagógico riquíssimo que é
o momento em que as crianças estão pondo para fora seus medos, suas raivas, suas angustias,
suas alegrias, suas tristezas e seus desejos. As crianças estão pondo sua alma para fora no
recreio e as professoras na sala, alheias a esta experiência humana essencial! Depois do
recreio se toma o leite e aí vão no mínimo trinta minutos, sem contar outros tempos mortos.
Quando chega o fim do dia, as crianças tiveram, no espaço pedagógico das quatro horas, duas
horas e meia ou três de aula. Perderam uma hora. Esta hora perdida é uma hora de
aprendizagem que não houve. E o pior é que nem sequer discutimos esta perda do tempo para a
produção do saber, porque se o fizéssemos, ao menos haveríamos aprendido algo.
Lamentavelmente, a jornada escolar entra na rotina cotidiana, não se pensa nela, simplesmente
se vive ela. Esta é uma reflexão pendente que raramente se dá nas universidades. O digo com
tristeza. Como professores, como professoras, temos a obrigação de conhecer, de debater, de
analisar estas coisas.
Vimos até aqui que não há situação educativa sem a figura do professor e do aluno que se
encontram em certo espaço ao largo de certo tempo docente. Porém, há algo mais que é
essencial à situação educativa, e esse algo mais são os conteúdos curriculares, os elementos
programáticos da escola, que como professor tenho a obrigação de ensinar e os alunos têm a
obrigação de aprender. Conteúdos que em linguagem mais acadêmica, na teoria do
conhecimento, se chamam objetos cognoscíveis, objetos que os jovens que se formam para ser
professores devem conhecer. Creio que inclusive na prática da educação popular o povo tem
direito a dominar a linguagem acadêmica. E digo isto porque há educadores populares que em
nome da revolução encontram que o correto é romper com a academia. O correto é mudar a
academia e não dar as costas à academia. Nosso problema não é estar contra a academia,
senão refazê-la, colocá-la a serviço dos interesses da maioria do povo. Há que prestigiar a
academia, isto é, colocá-la a serviço do povo. Desde que homens e mulheres inventaram a
vida em comum, os objetos cognoscíveis foram percebidos e estudados através do exercício da
curiosidade. O povo tem direito a saber, necessita saber que os conteúdos escolares se chamam
objetos cognoscíveis, ou seja: objetos que podem ser conhecidos.
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E aqui surge outro tema importante. Os objetos cognoscíveis são percebidos mediante o
exercício da curiosidade. Daí o cuidado que nós como professores devemos ter em relação a
preservar a curiosidade das crianças. Quantas vezes vocês observaram em casas de amigos, ao
pai e à mãe conversando com a visita, de repente a criança de três, quatro anos, vem correndo
com uma pergunta e o pai: calado! Não vê que estou falando com outra pessoa? Como você
vem com essa besteira? Puxa! Meu deus! Não gosto de atirar pedras a ninguém nem criar
sentimentos de culpa, mas esta conduta é absurda. É um comportamento castrador que cerceia
uma das coisas mais importantes que temos que é a curiosidade. Sem curiosidade não teríamos
nem a possibilidade de ser pai ou mãe. Todo tempo educativo é tempo de pergunta e de
resposta, tempo de disciplinar, de regulamentar a própria pergunta, a própria resposta. Uma
tarde, há muitos anos, em Recife, o reitor da Universidade veio a nossa casa para conversar
sobre um problema da Universidade. Estávamos no terraço quando de repente um dos meus
filhos, que devia ter uns quatro ou cinco anos, veio perguntar algo. Parei a conversa, escutei à
criança, lhe respondi e depois lhe disse: olha, teu papai está conversando com um amigo que
também tem perguntas para fazer e que também responde perguntas. Por isso, se você tem outra
pergunta para fazer, te sugiro que a memorize e pergunte depois, assim teu papai pode seguir
conversando com o seu amigo. É preciso defender o direito que tem a criança de perguntar, de
satisfazer sua curiosidade, mas ao mesmo tempo dizer-lhe que há momentos para perguntar e
momentos para abster-se, o que em ética definimos .assumir os limites da liberdade.. Sem
limites não há liberdade, como tampouco há autoridade. A formidável questão que nos surge
aos educadores é como estabelecer os limites, em que consistem realmente, e quais entre todos
eles são os que temos que implementar.
Voltemos agora à questão dos objetos do conhecimento. Quanto mais pensamos o que é ensinar,
o que é aprender, mais descobrimos que não há uma coisa sem a outra, que os dois momentos
são simultâneos, que se complementam, de tal maneira que quem ensina, aprende ao ensinar e
quem aprende, ensina ao aprender. Não casualmente em francês o mesmo verbo significa
ensinar e aprender, o verbo apprendre. A questão é como lidar com esta aparente contradição.
Neste momento, falando com vocês, eu estou reconhecendo estas coisas, estou re-sabendo estas
coisas. Dessa maneira que no processo em que vocês aprendem, vocês me ensinam. Como?
Através do olhar, de suas atitudes. O professor atento, o professor desperto, não aprende
somente nos livros, aprende na aula, aprende lendo nas pessoas como se fossem um texto.
Enquanto lhes falo, eu como docente, tenho que desenvolver em mim a capacidade critica e
afetiva de ler nos olhos, no movimento do corpo, na inclinação da cabeça. Devo ser capaz de
perceber se há entre vocês alguém que não entendeu o que eu disse, e nesse caso tenho a
obrigação de repetir o conceito em forma clara para repor à pessoa no processo do meu
discurso. Em certo sentido, vocês estão sendo agora para mim um texto, um livro que eu preciso
ler ao mesmo tempo em que falo. No Brasil, os bons políticos sabiam fazer isto, sabiam tocar a
sensibilidade de quem os escutava. Agora com a televisão isto está acabando. De maneira que a
prática docente vai além do ato de entrar à classe e dar, por exemplo, a aula de substantivos. A
prática educativa é muito mais que isso.
Voltando ao nosso tema, não há então situação pedagógica sem um sujeito que ensina, sem um
sujeito que aprenda, sem um espaço-tempo em que estas relações se dão e não há situações
pedagógicas sem objetos que possam ser conhecidos. Mas não termina aqui a questão. Há outra
instancia constitutiva da situação educativa, algo que vai além da situação educativa e que,
contudo, forma parte dela. Não há situação educativa que não aponte a objetivos que estão além
da classe, que não tenha a ver com concepções, maneiras de ver o mundo, anseios, utopias. Do
ponto de vista técnico, esta instancia, em filosofia da educação recebe o nome de
direcionalidade da educação. Muita gente confunde direcionalidade com dirigismo, com
autoritarismo. Contudo, a direcionalidade pode viabilizar tanto a posição autoritária como a
democrática, da mesma maneira que a falta de direcionalidade pode viabilizar o espontaneísmo.
É justamente a direcionalidade que explica essa qualidade essencial da prática educativa que eu
chamo a politicidade da educação. A politicidade da prática educativa não é uma invenção dos
subversivos como pensam os reacionários. Pelo contrario, é a natureza mesma da prática
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educativa que conduz o educador a ser político. Como educador eu não sou político porque
queira, senão porque minha própria condição de educador me impõe. Isto não significa ser
partidário deste ou daquele partido, mesmo quando eu considero que todo educador deve
assumir uma posição partidária.
A politicidade é então inerente à prática educativa. Isto significa que como professor devo ter
claras minhas opiniões políticas, meus sonhos. Porque no final, o que é que me move, me anima
como professor, se ganho tão pouco, se estou tão desprestigiado nessa sociedade de mercado?
Que sonho tenho para sonhar, para discutir com meus alunos? A politicidade revela outras duas
características da situação educativa. Revela que na prática educativa, estética e ética vão de
mãos dadas. A prática educativa é bela como é bela formação da cultura, a formação de um
individuo livre. E ao mesmo tempo essa estética é ética, pois trata da moral. Dificilmente uma
coisa bela seja imoral. Isto nos põe frente à necessidade de rejeitar o puritanismo que mais que
ético é hipocrisia e falsificação da ética, da liberdade e da pureza.
Recapitulando então: não há prática educativa sem sujeitos, sem sujeito educador e sem sujeito
educando; não há prática educativa fora desse espaço-tempo que é o espaço-tempo pedagógico,
não há prática educativa fora da experiência de conhecer que tecnicamente chamamos
experiência gnosiológica, que é a experiência do processo de produção do conhecimento em si;
não há prática educativa que não seja política; não há prática educativa que não esteja envolvida
em sonhos; não há prática educativa que não envolva valores, projetos, utopias. Não há então
prática educativa sem ética.
A educação não pode deixar de levar em conta todos estes elementos. Trata-se de uma tarefa
seria e complexa e como tal devera ser afrontada tanto pelos responsáveis das políticas
educativas como pelos próprios docentes. Temos a responsabilidade, não de tentar moldar os
alunos, senão de desafiá-los no sentido de que eles participem como sujeitos de sua própria
formação. Nestes dias estou terminando um livro novo com idéias velhas, onde trato este tema
da formação docente e onde ressalto dois ou três saberes ou máximas que creio que deveriam
formar parte da bagagem de todo professor ou professora. Uma destas máximas, que me
acompanha faz tempo, é a que defende: mudar é difícil, mas é possível. Que testemunho
poderia dar aos jovens se minha posição frente ao mundo fosse a de quem está convencido de
que nada pode ser feito, que nada pode ser mudado? Eu diria que nesse caso é melhor que
abandone o magistério, que tente sobreviver de alguma outra maneira. Ninguém pode dar aulas
sem ter a convicção do que faz. Não pode dizer: eu sou simplesmente um técnico, distante do
mundo, distante da história. Não somente devo dar testemunho da minha vontade de mudança,
senão que ademais devo demonstrar que em mim, mais que uma crença, é uma convicção. Se
não sou capaz de dar testemunho de minhas convicções perco minha base ética e sou um
péssimo educador porque não sei transmitir o valor da transformação.
Outra convicção que considero fundamental, é a que sustem: é preciso aprender a escutar. Há
quem acredite que falando se aprende a falar, quando na realidade é escutando que se aprende a
falar. Não pode falar bem quem não sabe escutar. E escutar implica sempre não discriminar.
Como posso compreender os alunos da favela se estou convencido de quem são sujos, que
cheiram mal? Se sou incapaz de compreender que estão sujos porque não têm água para tomar
banho? Ninguém opta pela miséria. No Rio de Janeiro, um homem que organiza uma das
Escolas de samba do carnaval, disse uma vez uma grande verdade: .Só os intelectuais pequenoburgueses
gostam da miséria. O povo gosta das coisas bonitas.. Obviamente o povo gosta do
bem-estar, aquilo que não pode ter. O que nós devemos querer, não é que o povo siga na
miséria, senão que supere a miséria. Há que brigar para que o povo viva bem, que tenha camisas
como esta, que nos anos setenta seria considerada sinal de burguesia. Há que democratizar as
coisas boas e não suprimi-las. Eu não rejeito as coisas burguesas, senão a concepção burguesa
da vida. Há que superar alguns equívocos do passado, como pensar que a solidariedade com os
oprimidos é uma questão de geografia, que é necessário sair da área elegante da cidade e ir viver
na miséria para então sim ser absolutamente solidário com os oprimidos. Isto nem sempre
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funciona. Aprender a escutar implica não minimizar ao outro, não ridicularizá-lo. Como pode
um professor ter boa comunicação com um aluno ao qual previamente desvalorizou ou
ironizou? Como pode um professor machista escutar uma mulher, ou um professor racista a um
negro? Digo no livro, se você é machista, assuma-se como machista, mas não se apresente como
democrata, você não tem nada a ver com a democracia. Se, por outro lado, você insiste com os
sonhos democráticos, então vai ter que pensar em ir superando seu machismo, seu classismo,
seu racismo. Nos Estados Unidos acabam de queimar igrejas de negros como se os negros em
primeiro lugar não tivessem alma e em segundo lugar, no caso que admitíssemos que têm alma,
como se a alma negra estivesse suja e sujasse a oração. Dá pena quando a branquitude se arroga
o direito de ser pedagoga da democracia do mundo. Incrível cinismo!
Outra das convicções próprias do docente democrático consiste em saber que ensinar não é
transferir conteúdos de sua cabeça à cabeça dos alunos. Ensinar é possibilitar que os alunos,
desenvolvendo sua curiosidade e tornando-a cada vez mais critica, produzam o conhecimento
em colaboração com os professores. Ao docente não cabe transmitir o conhecimento, só lhe
cabe propor ao aluno elaborar os meios necessários para construir sua própria compreensão do
processo de conhecer e do objeto estudado.
A complexidade da prática educativa é tal, que nos apresentam a necessidade de considerar
todos os elementos que possam conduzir a um bom processo educativo, nos impõe a
necessidade de inventar situações criadoras de saberes, sem as quais a prática educativa
autentica não seria possível. E digo isto porque as virtudes e as condições propicias à boa
prática educativa não caem prontas do céu. Não há um Deus que envia virtudes de presente, não
há uma burocracia divina encarregada de distribuir virtudes. Saberes e virtudes devem ser
criadas, inventadas por nós. Ninguém nasce generoso, critico, honrado ou responsável. Nós
nascemos com estas possibilidades, mas temos que criá-las, desenvolvê-las e cultivá-las em
nossa prática cotidiana. Somos o que estamos sendo. A condição para que eu seja é que esteja
sendo. Cada um é um processo e um projeto e não um destino. É preciso que na minha própria
experiência social, na minha própria prática eu descubra os caminhos para fazer melhor o que
quero fazer. Na minha prática docente aprendi a necessidade da coerência, que não podia ter um
discurso distante da minha prática, que tinha de buscar uma identificação quase absoluta entre o
que dizia e o que fazia. E esta é uma virtude que se chama coerência. Descobri também que a
efetividade da minha prática estava ligada à necessidade de aceitar o protagonismo dos
demais, à necessidade de não pensar que sou o único no mundo que pode fazer certas coisas e à
necessidade de não ter ressentimento com as pessoas que podem fazer as coisas que eu gostaria
de fazer e não faço porque não sou capaz. Descobri que não podia odiar quem estava feliz no
mundo simplesmente porque estava feliz, mas aprendi também que devia continuar indignado
ante a difícil situação que cria a infelicidade dos demais. Este respeito ao direito dos outros,
este reconhecer os outros podem fazer as coisas que nós não fazemos, se chama humildade. E a
humildade não implica o gosto de ser humilhado, pelo contrario, a pessoa humilde refuta a
humilhação.
Concluindo, professores e professoras, educadores e educadoras, alunos e alunas, nos
preocupemos pela criação e recriação em nós e em nossos lugares de trabalho daquelas
qualidades fundamentais que são as que nos vão permitir realizar nossos sonhos.
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