Projeto de Pesquisa - Marranismo no Nordeste Brasileiro: Desafios - Marcos Silva APRESENTAÇÃO No dia 31 de Março de 1492 os Reis da Espanha, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, assinaram um decreto cujas conseqüências, de uma certa forma, ainda hoje atingem um grupo de pessoas ao redor do mundo. O decreto expulsava todos os judeus do reino espanhol, exceto aqueles que se convertessem à religião católica. Pressionados por esta circunstância, cerca de cem mil judeus migraram para Portugal. Em dezembro de 1496, constrangido pela monarquia espanhola D. Manuel I, o Venturoso, impôs as mesmas condições ao povo judeu: a conversão ao catolicismo ou a expulsão das terras lusitanas. O resultado foi o desenvolvimento de uma categoria social chamada de cristãos-novos, marranos ou anussim[1], termos utilizados para designar aqueles que, premidos pelas duras condições, se viram forçados a renunciar, de fato ou apenas na aparência, à sua identidade judaica ancestral. Destes, muitos vieram para a América portuguesa fugindo da perseguição religiosa e participaram intensamente do processo de colonização do Brasil. Aqui, procuraram preservar de forma clandestina suas práticas culturais no que ficou sendo chamado de criptojudaísmo. Durante um bom tempo aspectos importantes da cultura judaica continuaram sendo praticados na intimidade dos lares, secretamente, principalmente “nas vilas e engenhos mais afastados das cidades. (...) É possível supor que nessas brechas do cotidiano as práticas, os costumes e os hábitos alimentares judaicos tenham criado raízes que permaneceram encobertas pelo tempo.” Kaufman (2005, p. 19). Porém, mesmo em terras da América portuguesa a inquisição estendeu seus tentáculos, destacando-se três momentos principais em que ocorreram visitações do Santo Ofício[2], além de termos sofrido com a instalação de um tribunal do Santo Ofício em Olinda, Pernambuco, entre os anos de 1594 e 1595. A historiografia tradicionalmente não menciona a existência de um tribunal do Santo Ofício no Brasil. O funcionamento de um Tribunal do Santo Ofício em Olinda foi descoberta do historiador José Antônio Gonsalves de Mello que, em obra Clássica, Gente da Nação, p. X afirma: “Das decisões desse tribunal não havia recurso, pois ele julgava ‘em final’, o que demonstra sua autonomia em relação à Inquisição de Lisboa, a cuja jurisdição territorial pertencia o Brasil”. Mello (1996, p. X). Talvez a permanência efêmera tenha determinado a irrelevância histórica desta experiência de Olinda. Aqueles que eram denunciados como “judaizantes” tinham seus bens confiscados e estiveram sujeitos a vários graus de sanções. Os historiadores contabilizam mais de mil condenados pela prática do judaísmo, sendo que 29 (vinte e nove) foram condenados à fogueira. Além disto, na América portuguesa os descendentes de judeus sofriam a constante discriminação em face do conceito de “sangue infecto” que, presente na legislação portuguesa, perpassava o funcionamento da sociedade colonial e se traduzia principalmente na proibição destes desempenharem funções públicas. O momento áureo de expressão da cultura judaica no nordeste colonial foi o período da dominação holandesa sobre a região. No início do século XVII, Amsterdã sediava uma importante comunidade judaica que ganhou força sobretudo porque abrigou um significativo contingente de sefarditas[3] que para lá se dirigiram em função da expulsão da Península Ibérica. Na época a cidade era tão importante para os judeus que Yosef Kaplan, ao escrever a história do ex-criptojudeu Isaac Oróbio de Castro, a denominou de “a Jerusalém holandesa”. Em meados do século XVII, a comunidade judaica de Amsterdã reunia cerca de 2000 membros. O fato é que, com o domínio holandês do Nordeste a partir de 1630, foi de Amsterdã que partiu a direção espiritual da comunidade que se formou em Recife, na pessoa do primeiro rabino das Américas, Isaac Aboab da Fonseca e também uma significativa leva de 200 judeus imigrantes, chefiados por Manoel Mendes de Castro. Kaufman (2005). A vinda deste grupo de judeus praticantes para o Recife certamente afetou a existência dos cristãos-novos da cidade e espalhou uma influência na região no sentido de inspirar e promover o retorno de muitos já “assimilados” à prática de sua religião, além de despertar a oposição dos católicos. Tânia Neumann Kaufman, que escreveu sobre a presença judaica em Pernambuco neste período, calculou que por volta de 1645 existiam cerca de 1450 judeus no Brasil holandês. Com a expulsão dos holandeses do Nordeste, em 1654, e o fim da tolerância implantada pelos holandeses calvinistas, os judeus que não saíram do país voltaram a amargar as condições regidas pela idéia de impureza de sangue. Em função disto, segundo Kaufman (2005: 27), “os que ficaram, substituíram seus nomes judaicos por nomes portugueses, na tentativa de burlar a Inquisição” e também muitos optaram “por permanecer no sertão, onde dificilmente seriam alcançados pelos agentes da Inquisição”. Luís da Câmara Cascudo em seu Mouros, Franceses e Judeus: Três presenças no Brasil, identifica o destino da maioria destes cristãos novos: “No correr dos séculos XVIII e XIX, o judeu dissolveu-se no sangue nacional, pelo casamento cristão, pelo abrandamento temperamental, pela ausência de motivos exasperadores de sua fé e modos.” Cascudo (1967, p. 150). Uma explicação importante para o entendimento de todo o processo histórico vivenciado pelos descendentes de judeus no Brasil é apresentada por Gorenstein (2005, p.153): As dificuldades de comunicação, a proibição da manutenção de escolas, do ensino da Bíblia e do hebraico, e principalmente o perigo mortal de ser descoberto pela Inquisição, limitaram as práticas judaicas às poucas leis mantidas na memória. Não era um judaísmo nem profundo, nem ortodoxo; era uma transmissão oral de conhecimentos daqueles que conheciam melhor as tradições judaicas. O fato de serem educados como cristãos fez com que o judaísmo se mesclasse com o cristianismo, formando o que Cecil Roth denominou ‘religião marrana’. Pode-se dizer que o principal resultado de séculos de perseguição e discriminação foi o recalque por parte de significativa parcela da população brasileira[4] de suas origens étnico-culturais em benefício da cultura católico-portuguesa prevalecente no país. Apesar disto, Novinsky (2005), afirma: “Marranos deixaram no Brasil uma literatura, uma arte, uma política, uma economia que não foram ainda devidamente estudadas”. Segundo Lustosa (2005, pp. 145, 146) marranismo seria o “conjunto de estratégias de conservação da memória e da identidade (...), comportamento típico de grupos que vivem de forma clandestina, manifestando sua religiosidade no segredo de suas casas, com todo o cuidado necessário para escapar da perseguição.” Valadares (1991, p.11) assim explica o conceito: O marranismo foi o surgimento de um judaísmo não rabínico, de caráter transitório nas primeiras gerações, e utopicamente uma seita dialética, que tinha em sua superação a sobrevivência das tradições judaicas. Para sobreviver à Inquisição abdicou-se dos ritos, do cerimonial, dos signos, da linguagem, da literatura, dos mestres; abdicou-se de parte da civilização hebraica, restando-lhe apenas características etno-sociais, características mentais, moldadas pela mestiçagem e pela resistência deste povo em assimilar-se, terminando por criar dentro do ‘melting pot’ brasileiro um tipo sincrético de ibero-brasileiro. A dispersão de marranos pelo território nordestino pode ser datada como se intensificando a partir de 1654. Novinsky (2006, p. 156) ao descrever este fenômeno identifica as regiões que acolheram os primitivos criptojudeus nordestinos: “Parte dos judeus e cristãos-novos que viviam em Pernambuco, quando foi ordenada a expulsão dos judeus holandeses, não optou pelo exílio, e vamos encontrar seus descendentes, ainda praticando o judaísmo, nos sertões da Paraíba, do Piauí, do Ceará e do Rio Grande do Norte”. Na realidade, a complexidade do fenômeno marrano na história brasileira pode ser aquilatada pelas palavras de Anita Novinsky: Não houve um marranismo, mas muitos marranismos, que diferiam de uma região para outra, em uma mesma família, entre pais e filhos. Mas o que deve ser salientado nos estudos referentes à imigração dos cristãos novos para o Novo Mundo é a especificidade, que o fenômeno marrano adquiriu no Brasil, tanto como grupo religioso quanto como social. Isso não elimina o fato de alguns traços e costumes da cultura original terem se mantido, por mais forte que haja sido o sincretismo e a originalidade da resposta brasileira. Novinsky (1992, p. XIX). O estudo clássico sobre a temática no Brasil é a obra Cristãos Novos na Bahia: A Inquisição, de Anita Novinsky. Lina Gorenstein em artigo intitulado: Brasil Marrano: As pesquisas atuais, faz um levantamento dos trabalhos que já foram desenvolvidos e que estão sendo implementados sobre o assunto no Brasil. Em seu texto, destaca os estudos sobre os marranos em Pernambuco e Bahia no século XVI e início do XVII e também sobre as pesquisas a respeito do criptojudaísmo na Paraíba. Além destes locais, também destacam-se pesquisas sobre os cristãos novos em Minas Gerais e Rio de Janeiro. Apesar do trabalho de Luiz Mott, A Inquisição em Sergipe, publicado em 1989, haver feito um levantamento em documentação no Arquivo Nacional da Torre do Tombo de Lisboa, não foi possível, através desta obra, identificar o criptojudaísmo em Sergipe. O autor chega a declarar, a respeito de denúncia ao Tribunal do Santo Ofício de 1678: “Curioso notar a ausência de acusações à prática do judaísmo, crime que na época, nas vizinhas Bahia, Pernambuco e Paraíba, causavam grandes padecimentos e consternações aos cristãos-novos e cripto-judeus.” Mott (1989, p. 23). Apesar de identificar o final do século XVII como o período de maior intensidade da atuação do Tribunal do Santo Ofício em terras de Sergipe del Rey, Luiz Mott advoga a tese de que o caso sergipano é diferente das outras regiões da América portuguesa, tendo em vista, naquelas regiões, a predominânncia da perseguição aos judaizantes, cristãos novos endinheirados. Em Sergipe del Rey a inquisição teria perseguindo “gente insignificante, com recursos materiais desprezíveis”. Mott (1989, p. 33). No levantamento de Luiz Mott o crime mais encontrado pelo Santo Ofício em Sergipe teria sido o de sodomia. No entanto, o fato de moradores de Sergipe del Rey não haverem sido encontrados como vítimas preferenciais do Santo Ofício por serem judaizantes, não indica que o criptojudaísmo foi uma prática ausente nesta capitania. Anita Novinsky identifica, mesmo em sua obra sobre o fenômeno na Bahia, a presença de cristãos novos em Sergipe. Dentre estes, ela menciona Simão de Leão, que foi contratador de dízimos em vários locais da América portuguesa no início do século XVII. Maria Thetis Nunes (2006, p. 191) amplifica o quadro da presença de cristãos novos em Sergipe “desde o lançamento dos fundamentos de sua colonização” e identifica alguns destes: Baltazar Leão, Luís Álvares, Antônio Muniz de Lisboa e Diogo Lopes Ulhoa, todos estes vivendo em território sergipano no início do século XVII e, de acordo com Felisbelo Freire, havendo alguns recebido sesmaria em Sergipe. Nunes (2006, p. 192) prossegue o seu levantamento e registra uma vítima sergipana no auto-de-fé de 30 de Julho de 1709 em Lisboa e um cristão novo denunciado em 1732 ao Tribunal do Santo Ofício. Trata-se de Antônio da Fonseca, agricultor e morador nas margens do São Francisco. Depois, a autora arremata: “Dispersos nas regiões interioranas, escondendo a identidade para fugir às denúncias do Santo Ofício, os judeus terminaram perdendo a característica cultural, absorvendo os valores dominantes na região onde se estabeleceram.” Um indício que poderá ajudar-nos a identificar a sobrevivência do elemento judaico na população sergipana é fornecido pelo antropólogo Felte Bezerra em seu Etnias Sergipanas: Contribuição ao seu estudo. A nosso ver, algum resíduo de sangue ‘flamengo’ que se encontre em Sergipe estará, antes de tudo, na margem franciscana ou, mui salpicadamente, em outros pontos do interior do Estado. O reduto de alourados de Cedro (chamam hoje Darcilena), que é particularmente notável, contém uns tipos braquicéfalos, de olhos azuis ou esverdeados, que praticam quase que verdadeira endogamia e gozam a fama de uma origem cigana. Ali talvez haja, mesmo, resíduo judaico, de mistura com esses alourados, quer portugueses, quer flamengos. Entre eles há homens de compleição forte e avermelhados, embora de estatura média ou mesmo baixa, em muitos casos. As mulheres são prolíferas. Há um grande número de crianças em Cedro. O povo é longevo; lá é fácil atingir os 80 anos e até mesmo os 100. Bezerra (1984,p. 85). Mais adiante o antropólogo explicita melhor sua descoberta: Há uma forma lendária pela qual costumam explicar a origem dos cedreiros. Fora um grupo de CIGANOS (?) que se refugiara a princípio em uma das ilhas do São Francisco, naquelas proximidades, de onde se teriam dirigido para o município do Cedro. Alguns, que indicam a ilha fluvial como sendo a Ilha do Ouro, próximo à cidade de Porto da Folha, querem assim estender a mesma origem para os habitantes alourados desta última cidade. Não parece, contudo, que o episódio, se porventura verídico, deva ser generalizado. A designação de CIGANO, entre nós, tem mais um sentido cultural do que étnico, traduz vida nômade e sustentada por trocas e barganhas. Terá, por ventura, nos tempos coloniais, tido outra significação? A propósito, no Livro das Denunciações de D. MARCOS TEIXEIRA está citada uma Joana Ribeiro, a CIGANA, moradora em Sergipe del Rei, que é apontada como israelita. Bezerra (1984, p. 86). Esta população de Cedro, segundo teoria levantada por Felte Bezerra, teria chegado à região como fugitivos da Companhia das Ìndias Ocidentais, vindos de Pernambuco. Além disso, é possível identificar “por vaga suspeita de nomes” as famílias Aguiar, Nunes, Ferreira, Azevedo, Figueiredo como de origem ancestral judaica-holandesa em Sergipe (1984, p. 90). Também, Valadares (2007, p. 240) menciona a persistência de práticas judaizantes no interior sergipano: No distante e minúsculo povoado sergipano de Samambaia, em Tobias Barreto, até a década de sessenta do século passado, havia dois cemitérios, um na área urbana para os católicos e outro no ermo, chamado do Sítio, para os acatólicos, onde foram sepultados descendentes de cristãos-novos que recusavam os ritos católicos e presbiterianos. O fato é que os “cristãos novos armaram-se de estratégias clandestinas que passaram de geração em geração. A sociedade ibérica ficou dividida em dois mundos, um visível e outro secreto”. Novinsky (1992, p. 153). Neste sentido, resta à pesquisa histórica o compromisso de descobrir a identidade do marranismo sergipano. A isto acode a explicação de Wachtel (2002, p. 275): “A religiosidade marrana, complexa e diversa, dava lugar a muitas variantes, a muitas combinações sincréticas, que se exprimiam em manifestações sempre singulares, consoante os contextos e os indivíduos.” ____________________ NOTAS [1] Cristão-novo foi a expressão pela qual foram designados os judeus convertidos ao catolicismo, contrapondo-se ao cristão-velho sem antecedentes judaicos. Cristão-novo era, com freqüência, substituída por converso e, na Espanha, por “marrano”, expressão de origem polêmica uma vez que para alguns significa “porco”, porque as religiões, judaica e muçulmana, proibiam a ingestão da carne desse animal, e para outros o termo seria de origem hebraica com influência ibérica e significa “homem batizado à força”. Anussim, termo de origem hebraica, quer significar exatamente a categoria daqueles que foram “forçados” a abdicar de sua identidade ancestral. [2] Foram três as principais visitações de representantes do Tribunal do Santo Ofício à América portuguesa: A 1ª visitação ocorreu no período entre 1591 e 1595 e percorreu o Nordeste, da Bahia até a Paraíba; A 2ª visitação atingiu a Bahia, no período entre 1618 a 1621 e a última grande visitação deteu-se no Grão-Pará e Maranhão entre 1763 e 1769. [3] Diz respeito à cultura dos judeus provenientes da Espanha, região conhecida como Sefarad, na língua hebraica. Após séculos de vivência na Penínsual Ibérica esta comunidade desenvolveu uma cultura própria, caracterizada pela língua, o ladino, e aspectos distintos no ritual de sua fé. O ladino é um prolongamento do espanhol do século XV, enriquecido com grupo latino. Cultura diferente desta comunidade desenvolveram os Ashkenazitas, judeus radicados no leste e centro da Europa e que, igualmente aos oriundos da Ibéria, desenvolveram uma cultura caracterizada por uma língua, o ídiche, mistura de hebraico e alemão, e ritos peculiares de sua região. [4] Os estudiosos calculam que pelo menos 15 milhões de brasileiros teriam algum parentesco com cristãos-novos.

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