REVISITANDO EDGAR MORIN - Um texto de Arsénio Fermino de Pina

Revisitando Edgar Morin -

Um texto de Arsénio Fermino de Pina


O Estado nacional tornou-se demasiado pequeno em relação aos problemas mundiais globais. A médio prazo, as soluções apenas podem chegar de instituições mundiais, saídas ou não da ONU, para regular problemas vitais como ecologia, o nuclear, ou ainda a economia

Edgar Morin, esse jovem de 89 anos, é dos intelectuais que, há largos anos, me vêm acompanhando e nunca me canso de reler. Entre mãos O Meu Caminho - uma entrevista com a jornalista Djénane Kareh Tager -, e um artigo recente publicado, em Maio último, no Le Monde. Como o homem é de esquerda, judeu, foi activista na resistência francesa à ocupação nazi, na altura militante do Partido Comunista Francês, mexe comigo, razão por que irei pedir-lhe de empréstimo alguns conceitos e posições que vos apresentarei à minha maneira. Creio que este exercício merece ser tentado por abordar aspectos da actualidade política e económica e precisar alguns conceitos e factos antigos. Amigo e com posições semelhantes às de Cornelius Castoriadis, talvez um dos últimos humanistas enciclopedistas, de quem vos falei recentemente, que só não colaborou na revista que ele criou, Arguments, por já trabalhar noutra com Claude Lefort, Socialisme et Barbárie. Castoriadis teve de fugir da Grécia, sua pátria, para Paris, depois do fim da Segunda Guerra Mundial, com outros intelectuais, em virtude de ter sido condenado à morte pelo Partido Comunista Grego como trotskista. Aos 24 anos de idade já denunciava a política de Estaline (1944), enquanto Sartre sempre o defendeu sem se ter apercebido do logro, insurgindo-se contra a impostura daqueles que consideravam socialistas os poderes totalitários de Estaline e de Mao. Referindo-se a Castoriadis, Morin afirma que essa sua revista denunciava corajosamente vários problemas, embora não apresentasse propostas de solução ou alternativas, ao contrário de Arguments. Mais tarde, veio a colaborar com Castoriadis num grupo de reflexão chamado CRESP (Centro de Pesquisas e de Estudos Sociais e Políticos), inicialmente denominado Saint-Just.

Nos seus 89 anos, o homem mantém-se coriáceo e ágil tanto física como intelectualmente. No fim da entrevista a Djénane, face à sua robustez física e aventuras amorosas pretéritas, esta perguntou-lhe, provocatoriamente, se ainda experimentava desejo físico. Resposta imediata: “só respondo na presença do meu advogado”…

Edgar Morin é judeu e espinosista, declarando-se pós-marrano. O seu espinosismo baseia-se no facto de Espinosa ter eliminado Deus exterior ao mundo para colocar a criatividade na Natureza.

Foi resistente ainda jovem contra o nazismo e militante do Partido Comunista, mas rompeu com o partido em 1949, aquando do processo do comunista húngaro Rajk, e bem cedo se revoltou contra o Estalinismo e o culto da personalidade. Mesmo fora do Partido, considerava-se ainda comunista, embora recusasse aceitar verdades impostas de cima; custou-lhe cortar o cordão umbilical, consumado com a brutalidade soviética durante a insurreição de Budapeste, em 1956.

MARXISMO E ASPIRAÇÕES DE ESQUERDA

Relativamente ao Marxismo, diz que Marx foi o pensador formidável que inspirou simultaneamente a social-democracia e o comunismo, até que a social-democracia se tornou reformista. Acrescenta, ainda, que Marx não sentia que as nações são realidades vividas. Na sua opinião, falta a Marx a política enquanto tal. Falta a subjectividade humana, a interioridade humana; Marx apenas viu o homem produtor (o económico). Não podemos contar com Marx para refundar a política. Mas não devemos esquecê-lo. Foi um pensador titânico que abriu novas portas.

Quanto ao comunismo soviético acusa-o de ter negado aos operários o que estes dispunham na democracia capitalista: os direitos sindicais.

Há tempos, num dos meus artigos, afirmava-me de esquerda. Vejam o que pensa Morin a esse respeito, que não está muito longe do que exprimi: “sou de esquerda à minha maneira, isto é, fiel às grandes aspirações da fraternidade e da liberdade, mas não me reconheço em nenhum dos partidos políticos que pretendem encarnar a esquerda, e repito que não acredito em A esquerda, isto é, neste artigo definido que unifica em excesso socialistas e comunistas. Existiram unidades tácticas mas, na história, houve sobretudo luta até à morte entre estas duas correntes”, que ainda continua, como bem sabemos. […] “Quanto aos intelectuais de esquerda, muitos, até eu, durante um certo tempo, acreditaram na URSS, outros na China maoista. Muitos, desiludidos, mudaram de campo, mas nunca explicaram porque se negaram, nem tentaram a menor autocrítica”.

A esquerda de Morin inclui as três grandes aspirações revolucionárias do século XIX, que fizeram nascer três correntes separadas mas que ele assume conjuntamente. Antes de mais, a aspiração libertária ou anarquista que se preocupa com a liberdade dos indivíduos e se opõe à opressão do Estado. Em seguida, a aspiração socialista que liga o destino dos indivíduos à melhoria da sociedade. Por fim, a aspiração comunista que é a aspiração à comunidade, isto é, à fraternidade humana. Ser fiel a estas aspirações significa ao mesmo tempo lutar contra as barbáries e não apenas contra a exploração, mas também contra a humilhação do homem e da mulher pelo homem.

Como internacionalista apoiou os movimentos de libertação anticolonial, embora tenha sido criticado por Sartre por não ter apoiado a FLN argelina. Afinal, a questão era outra porque, como afirma na entrevista, havia outro movimento não fantoche, patriótico, que não foi valorizado e cujo dirigente conhecia de perto, que ele queria reconhecido como a FLN, dirigente que veio a ser vilmente liquidado. No contexto da luta anticolonial, lembra um paradoxo interessante: a Europa dominadora foi também o centro das ideias humanistas que favoreceram a emancipação dos colonizados. Eu acrescentaria: a luta de libertação nas colónias portuguesas, particularmente pela influência da ideologia e praxis de um líder africano excepcional, Amílcar Cabral, levou, pelo seu lado, à conscientização de jovens oficiais do exército português lançados na guerra colonial que provocaram o derrube, na Europa, de uma ditadura de perto de meio século de existência, pela chamada Revolução dos Cravos.

Sendo judeu, as suas posições progressistas criaram animosidades da parte do governo israelita que o considerou traidor. No seu livro O Mundo Moderno e a Questão Judaica, de 2006, é favorável à salvaguarda de Israel como nação, mas que seja reconhecida a existência de uma outra nação, a palestiniana. Não é hostil à ideia sionista de Herzl, que é o direito dos judeus perseguidos nas nações a ter a sua própria nação, mas não participa na justificação permanente de tudo quanto faz Israel. O que é trágico nessa ideia sionista é que o sionismo acreditou que um povo sem terra iria para uma terra sem povo, desabitada. Ora, a terra não estava sem povo, havia uma população árabe, muçulmana e cristã, na Palestina. A tragédia desenvolveu-se a partir desse equívoco, que políticos reaccionários e ambiciosos sustentaram e ainda prevalece.

A GLOBALIZAÇÃO E A CRISE ACTUAL

Não vou repetir o que já escrevi em vários artigos sobre a globalização começada por volta de 1990. É incontestável que ela nos conduziu e continua a conduzir a perigos crescentes: turbulências (crises) de uma economia capitalista selvagem, degradação do meio ambiente, da biosfera, convulsões belicosas crescentes coincidindo com a multiplicação de armas de destruição em massa. O neoliberalismo económico foi anunciado como a verdadeira solução, mas ele trouxe não apenas a prosperidade para os ricos e a emergência de novas classes médias oportunistas, mas igualmente imensas zonas de miséria, a degradação das solidariedades, a amplificação da corrupção.

Ao colapso do comunismo soviético seguiu-se o retorno de fundamentalismos religiosos, nacionalismos adormecidos entraram em efervescência, aspirações etno-religiosas para aceder ao Estado-nação desencadearam guerras de secessão. Para agravar ainda mais tudo isso, desapareceu, como nos diz Morin, o povo de esquerda, povo formado a partir de 1789, explicado por professores nas escolas tanto de socialistas como de comunistas, que ensinavam a fraternidade internacionalista e a aspiração a um mundo melhor, com um combate contra a exploração dos trabalhadores e o empenho na justiça social. Infelizmente, a esclerose dos partidos de esquerda e a decadência dos sindicatos, mais empenhados na defesa de políticas partidárias do que na defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores, deixaram de alimentar a ideologia emancipadora. A esquerda existente é essencialmente teórica e prolixa sem propostas alternativas, facultando espaço para uma direita bulímica, apoiada no grande capital, que rejeita os sem-papeis e imigrantes, reprime os jovens dos subúrbios, odeia o muçulmano e o africano.

Certamente que a crise é ambivalente: assim como pode favorecer forças regressivas ou letais, pode também favorecer a imaginação criativa com soluções que permitem superá-la ao modificar o sistema. “Onde cresce o perigo cresce também o que salva”. Os desvios de hoje poderão tornar-se as forças vivas de amanhã. O capitalismo e o socialismo foram desviantes na origem, e aconteceu o mesmo com a ciência moderna no século XVII. Se o desvio não é eliminado, se ele se desenvolve, com as suas redes, os seus adeptos, então tornar-se-á uma força real e poderá finalmente triunfar. Moisés, Jesus e Maomé foram desviantes no seu tempo, mas as suas mensagens triunfaram. Segundo dizia o filósofo Epicuro, milhares de anos antes da nossa era, “se não se procura o inesperado, não o encontramos”.

COMO SAIR DESSE IMPASSE E DA CRISE AVASSALADORA QUE FUSTIGA MAIS QUEM TRABALHA E PRODUZ?

Morin sugere resistência à barbárie e regeneração do pensamento político através da elaboração de uma via formada da confluência de múltiplas vias reformadoras. Traça, em grandes linhas, as vias de uma reforma da democracia:

- A democracia parlamentar, embora necessária, é insuficiente. Conceber e propor uma democracia participativa (acrescento eu: realmente participativa e não participativa somente das elites partidárias ou do governo, como a que conhecemos entre nós, em Cabo Verde, nos 15 anos do início da independência) particularmente a nível local, autárquico. É necessário despertar o cidadão, o que é inseparável de uma regeneração do pensamento político, da confiança na política e em políticos íntegros, em homens confiáveis, como bem disse o Professor Adriano Moreira, bem como a mobilização dos cidadãos para a compreensão e solução dos grandes problemas, obviamente, depois de serem desenganados e de se lhes ter explicado, com verdade, a gravidade da situação;

- Promover um modo de recrutamento para as carreiras administrativas tendo em conta, além da competência, os valores morais do candidato, as suas aptidões no relacionamento com os outros, dedicação ao bem público e empenho na justiça social;

- Regeneração do pensamento político fazendo finca-pé nos aspectos libertário, socialista e comunista como definidos atrás.

Certamente que é necessário, antes de tudo, resistir à barbárie que desponta. Resistência a tudo que degrada o homem, pelo homem, resistência ao desprezo, às humilhações, às sujeições. Aspiração não ao melhor dos mundos, mas a um mundo melhor, aspiração que não deixou de nascer e renascer ao longo da história da humanidade e que renascerá ainda. A esperança nunca deve morrer. O teólogo brasileiro da Teologia da Libertação, reduzido ao silêncio pela Santa Sé, Leonardo Boff, afirmou que “o ideal a ser buscado deveria ser uma economia do suficiente para toda a comunidade da vida”, e não a actual de consumo que nos levou ao abismo entre a ostentação obscena da riqueza e a iniquidade da pobreza, como bem a caracterizou o padre e professor universitário português Anselmo Borges.

Há quem considere as propostas de Edgar Morin vagas e utópicas, mormente os que o conhecem mal, de que ele se defende precisando: a ascensão de uma Era metanacional (que vai integrar as nações e suprimir o seu poder absoluto) iria permitir o fim das guerras: o impossível de hoje, na boa utopia, será possível amanhã. O Estado nacional tornou-se demasiado pequeno em relação aos problemas mundiais globais. A médio prazo, as soluções apenas podem chegar de instituições mundiais, saídas ou não da ONU, para regular problemas vitais como ecologia, o nuclear, ou ainda a economia. Vê-se isso agora à escala europeia. Suceda o que suceder, o enfraquecimento da soberania absoluta do Estado-nação segue o seu curso inexorável, e é desejável que conduza a formas associativas e não a submissões às grandes potências, provavelmente a uma espécie de confederação mundial que será ela própria uma confederação de confederações à escala dos continentes. O que se pode fazer agora é indicar a necessidade de mudar de rumo, o que parece estar na mente de todo o mundo. Morin não propõe a liquidação do Estado-nação, que permaneceria, mas no seio de um conjunto, conservando a sua soberania em tudo o que depende dos seus níveis de competência, e novas possibilidades de acção e decisão seriam criadas a um nível colectivo, à semelhança da União Europeia, obrigatoriamente com instâncias de regulação para rigoroso controlo da economia e finanças, porque foram os argentários e especuladores deixados à rédea solta pelo Estado que provocaram o descalabro actual. Fico ainda pasmado, como bem escreveu o colega Carlos C. Almeida, com “as falências de bancos suportadas pelo Estado, com milhões a flutuar em off-shores (bem guardadinhos para os fraudulentos), e os depositantes a lastimar da perda das suas poupanças; de negociatas e mais negociatas envolvendo detentores de cargos públicos (tanto cá como entre nós, em Cabo Verde); de situações que não configuram propriamente corrupção mas que são gritantes, como a de gestores públicos a receber milhões como bónus por terem cumprido aquilo a que se tinham comprometido a fazer (em vez de serem despedidos se não o cumprissem); os apelidados ´gestores´ nomeados pelo poder político (cá e entre nós) para conselhos de administração, pagos principescamente, apenas para lá estar”, e ´j´en passe´. Cadê a ética, para não dizer moral, caros leitores?

Parede, Junho de 2010

Arsénio Fermino de Pina (Pediatra e sócio honorário da Adeco)

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