Postado por Paulo Blank em 1 de Janeiro de 2010 às 1:03pm
Sem Madeleines pelo amor de Deus.
Nada mais genial do que a invenção de um tempo que pode mudar de sentido. Mal saímos da festa de Hanuká e já estamos, uma vez mais, comemorando a possibilidade de um novo começo. Esta capacidade de festejar o novo como se ele fosse uma refundação do tempo é, sem dúvida, uma conquista tão importante da mente humana quanto a invenção do perdão que desfaz as correntes do passado. Em ambas as situações estamos tratando da capacidade de sair de um tempo vivido como se fosse os trilhos de um trem correndo e sem possibilidade de mudar de curso.
Preso às memórias o ser humano chafurda num tempo empoçado, verdadeira areia movediça onde mergulha cada vez mais fundo. Quando pensa que está inovando, vive esta ilusão sem perceber o seu aprisionamento na repetição. O seu olhar, uma ótica de ver o mundo se transforma numa ética de viver no mundo. A ética é uma ótica, nos ensina Emanuel Levinas. E viver das lembranças despertadas por suculentas madeleines proustianas não é a melhor forma de buscar a possibilidade do novo. Nem sempre andamos pensando desta maneira. Até bem pouco tempo atrás, os ciclos aparentemente fixos da natureza ordenavam da mesma maneira a cabeça dos seres humanos. Eram tempos circulares onde a referência mental era a repetição sem fim de ciclos prisioneiros dos fatos passados que voltavam e se repetiam sempre da mesma forma. Por isto nunca gostei da expressão bíblica “Lembra-te do que te fizeram os amalekitas!” Um princípio bíblico que soa como um preceito em total contradição com o que é próprio de um outro modo judaico de pensar.
Quando morava em Ashkelon no início dos anos 60, pela primeira vez entrei em contato com aquele mandato considerado divino por muitos judeus da melhor ortodoxia. Na escola homenageávamos as vitimas da segunda guerra mundial. Das tochas embebidas em querosene, subia uma fumaça preta. Perfilados, cantávamos o Hatikva. Na faixa pendurada sobre as nossas cabeças lá estava ela, a solene advertência de não esquecer os nossos Amalekitas. Com o passar dos anos fui percebendo que qualquer inimigo podia ser rebatizado de Amalekita. Para o professor Avigdor, meu educador responsável pela turma, os árabes também eram amalekitas em nova versão e com isto, novamente, lá estava eu comprometido a não esquecer. Aquele que lembra, segundo me disse um rabino, é mais sábio do que aquele que estuda. Ele afirmou na ocasião que se tratava de um principio talmúdico. Pode ser, mas, de qualquer forma, será que a santificação de um texto transforma em sagrado tudo que nos ensina?
Nos nada remotos anos da invasão do Líbano de 1982, escrevi um pretensioso poeminha, um quase hai kai, onde me dirigia ao Senhor Béguin que nem deu bola ao meu recado: nunca esqueça do amalek para que ele sempre lembre de você. É uma questão básica. Em algum lugar o fio do passado tem que ser alterado para que a celebração do novo possa se instaurar. Do outro modo, este que vem sendo posto em prática na política israelense, o que resta é a repetição infinita do eterno ciclo de ódios e traumas. Traumas são os congelamentos da mente que paralisam o tempo e os sentimentos numa repetição sem fim. Mas, enquanto a repetição do trauma aparece na vida e nos sonhos como uma tentativa de buscar a saída descongelando o tempo, na política o que vemos é o inverso. Busca-se congelar o presente na esperança de que ele nunca se mova e desta maneira, assentados cada vez mais nas posições de força, eternizar os amalekitas para que sempre possamos nos lembrar de quem somos sem deixar que eles esqueçam de quem devem continuar sendo. Não foi diferente disto o que a Igreja Católica fez com os judeus ao longo de milhares de anos de preparação da mentalidade européia até culminar no nazismo. Para que a verdade cristã se afirmasse era preciso que os judeus nunca deixassem de existir em sofrimento. Esta doutrina criada por Santo Agostinho foi amplamente acatada e difundida pela Igreja ao longo dos séculos. Seguindo este caminho a igreja escolheu eternizar-se no tempo de sua fundação mítica quando os judeus não aceitaram cristo e o crucificaram e, por isto, precisam viver em castigo repetitivo e culpa infinita. Tempo que até hoje ela não conseguiu superar em suas paróquias distantes do discurso oficial. Estarei enganado?
No último Hanuká quando eu dizia algumas palavras antes de cada um acender a sua própria vela, uma menina muito querida que freqüenta a nossa casa se virou para mim e me interrompeu quando falei em judeus me dizendo: é mentira, você não é judeu, judeu não gosta de Deus! Um pequeno curto circuito mental se formou naquele momento na sua cabecinha de menina negra e pobre em uma sociedade onde existe o mesmo racismo do qual ela se torna, agora, duplamente vítima. A reação dela frente ao que lhe ensinam na Igreja que freqüenta no antigo Shoping da Siqueira Campos em Copacabana, no ano de 2009 que acabou ontem, foi me proteger da imagem que estão construindo na sua cabeça de criança. Imagem que se fundamenta em transformar um passado mítico num agora sufocante. Bem, se ficaram curiosos com o que estão lendo, devem também querer saber que os outros presentes me olharam com a cara mais sem graça deste mundo.
Frente ao inesperado de um tempo congelado que invadiu a nossa sala com uma lufada de ar frio, eu poderia me limitar às velas que já ardiam e ignorar o fato. A outra maneira seria assumi-lo como um acontecimento nada incomum na minha vida. Foi o que fiz. Usando a brincadeira, a única linguagem que a criança entende, passei a noite da jogatina do peãozinho que ela adora jogar (diz que a letra He é a que mais gosta no sevivon), relembrando sempre que era jogo de judeu. O implícito tornado explicito e banalizada a palavra ameaçadora, a noite alegre tornou-se acentuadamente judaica pela quantidade de vezes que o termo freqüentou a nossa conversa. A pequena vitima do tempo, ficou de saco cheio... Inclusive, como ela já conhecia a Rainha de Sabá, a quem não gosta de ser comparada, ser negro não é muito fácil para ela, também não foi esquecido o Rei Salomão, um rei Judeu apaixonado pela rainha africana que, em principio, nada tinha a ver com a noite. A nossa pequena história termina alguns dias depois, quando ela voltou a nos visitar com um coleguinha que também freqüenta a nossa casa. Lá pelas tantas ele veio me dizer que a nossa amiguinha lhe contou que queria namorar um menino, meu afilhado, que ela sempre encontra em nossa casa. Sem qualquer inibição ela confirmou a sua pretensão acrescentando, como se fosse uma característica a mais daquele garoto: “ele é judeu”.
É bem possível que naquela noite uma espécie de núcleo de uma outra experiência de tempo e memória tenha sido criado na vida da nossa pequena amiga. Uma ruptura que surge com a aura do radicalmente novo na sua experiência anterior. Um tempo sem passado, capaz de abrir a mente para novas possibilidades de viver a vida fora dos congelamentos que o mundo adulto lhe preparou. Alguns podem dizer que este pensamento não passa de uma maneira poética de ver o mundo. Se assim for, estaremos na companhia dos antigos e verdadeiros cabalistas que foram poetas precursores quando subverteram a palavra Bereshit. Primeira palavra da Torah e normalmente traduzida como “no inicio”, eles a decompuseram lendo BE Reshit, ou seja, “com o início”. Com o início Deus criou, que maneira genial de desconstruir o óbvio tornando-o radicalmente novo. Em sua leitura eles transformaram o início\Reshit em um instrumento de criar tempos deixando de ser a palavra que na sua forma original marcava um começo, um simples começo e nada mais.
Celebrar uma vez mais este poético e cabalista Be Reshit, é permitir-se viver a sensação de um tempo novo que sempre pode começar, nos libertando, uma vez mais, da eterna busca pela Madeleine perdida.
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