Tio Kafka, que morava com a gente na vila da Rua de Sant’Anna, parecia ter presenciado mais fatos do que caberiam nos seus 102 anos. Conheceu Walter Benjamin com quem fugiu pelos Pirineus, mas conseguiu se safar dos nazistas enquanto seu amigo, desesperado, se matou. Datilógrafo, copiava as cartas que Benjamin enviava para Gershom Sholem. Moreno, falando espanhol perfeito, tio Kafka se abrigou na casa de um morador até conseguir embarcar para a Inglaterra.
Reencontrei Tio Kafka pouco antes de a vila virar alicerce do jornal O Globo que derrubou todo o quarteirão. Ele continuava ocupando a mesma casinha. A diferença é que, sem eletricidade ele vivia à luz de lampião de querosene. Quanto à água, ele transportava para lá em garrafas de um litro de mineral.
Depois foi morar num lar de idosos onde morreu, mas, conversador, não resistiu. Outro dia reapareceu mais uma vez na consciência mediúnica de um médico judeu que exerce a função de pai de santo num centro espirita em Botafogo. Só mesmo o tio Kafka seria capaz de um caminho tão tortuoso para entrar em contato comigo.
O medico-judeu-pai-de-santo demorou a descobrir que estava psicografando um espirito que falava em iidish. Como não entendia quase nada pediu ajuda ao seu Isaac, que acabou se convencendo de que era verdade: não se tratava de um truque. Tio Kafka estava enviando uma mensagem do além-mundo. O tradutor anotou os detalhes e me telefonou.
- Seu tio Kafka mandou perguntar se você ainda lembra da ultima coisa que ele disse?
- Lembro, claro que lembro, respondi sorrindo
-Ele mandou te perguntar se não parece com essa estória do lava-jato?
Meu tio tinha dito que o ritual judaico de lavar os mortos para que voltassem limpinhos ao seio terra não adiantaria nada com ele.
- Paulinho, da vida nada se lava.
Foi o que ele me falou satisfeito com a própria sagacidade
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