Uma Arquitetura do Tempo Ou Sobre Ritos e o Judaísmo Humanista. Paulo Blank. Diferente das construções de pedras, vidros coloridos e torres buscando alcançar o céu, as catedrais do tempo são construídas de corpo e alma. A sua matéria são os sentimentos, a mente, o gesto suave flutuando no ar diante de duas velas, a percepção de si mesmo num determinado segundo, o cotidiano da vida humana que se abre como uma cortina e nos faz ver o extraordinário no meio de um dia comum, a experiência de um aqui e agora tão intenso que o passado é subitamente atravessado por um pressente inesperado que funda num repente uma nova realidade tão momentânea quanto um anjo súbito ou um raio de luz. Quando garoto, a passagem para este lugar se dava quando a avó desfazia malões e deles retirava talheres e porcelanas salvos da Europa preparando a chegada do Paissech. Os talheres e as louças anunciavam que outro tempo se instalava lentamente em cada canto da casa. Outra luz preenchia o lugar. Nas latas de óleo do pequeno quintal, lírios brancos floresciam. Até hoje os reconheço quando passo por algum destes jardins que enfeitam as calçadas. Fui aprendendo que uma realidade diferente estava sendo construída no meio dos afazeres do dia a dia. Construir catedrais de tempo é talvez a marca maior do gênero humano. Resistir a eles também. Virar a ampulheta ou dar corda no relógio, cuidar da passagem das horas, faziam do homem um artesão do tempo. Enquanto isso o Shoppingtempo de hoje em dia desconhece domingos e feriados criando uma continuidade virtual de uma vida sem intervalos. Dentro deles, protegidos da luz solar, os caminhantes passeiam por corredores iluminados onde o ciclo do dia é determinado por lâmpadas que, se assim for decidido, nunca se apagarão. Na Disneylândia, mundo onde domina a irrealidade de um cotidiano construído de alta tecnologia, festeja-se a cada dia um novo reveillon como se finalmente tivéssemos alcançado o poder de congelar a passagem dos dias. Um mundo eternamente alegre onde a lua e o sol não fazem mais diferença. Eis o sonho maior de uma humanidade sempre correndo atrás da Torre de Babel. Um dia perguntei à minha filha Thaís, naquela ocasião ela tinha uns dez anos, se acreditava em Deus. Sábia, a menina, ao invés de afirmar ou negar, ela me respondeu que acreditava nas crenças. Crer nas crenças é o mesmo que dizer que os ritos transportam uma verdade fora do mundo das racionalidades. Crer nas crenças é dispor-se a compartilhar afetos, ser parte de um mundo que não olhamos de fora com telescópios ou máquinas de medir. Arquitetos do tempo é através de ritos que resistimos ao apelo massificador da sociedade tecnológica. Toalhas de mesa, velas, candelabros, cânticos e meditações, transformam-se nos portais para as catedrais invisíveis onde percebemos as nuances, os afetos e as sensações que geralmente não nos damos conta no tempo do cotidiano. É da mente humana buscar a mesmice, ela nos oferece segurança e proteção. Os budistas chamam de apego a esta tendência de agarrar-se às coisas e aos sentimentos. No entanto, os ritos que constroem as catedrais de tempo não são mesmices repetitivas e sim portas para o pertencimento a uma totalidade viva e intensa. Percebê-la, é fazer parte do tempo e de sua infinita dança de formas e sentidos. O ritual é um destes portais de tempo que juntam o passado e o presente numa experiência emocional momentânea que não depende da religião oficial que lhes deu origem. Poder celebrar as festas do ciclo de vida judaica.algo como realizar um casamento recitando as sheva brachot e vendo a noiva deslizar alegremente ao redor do noivo, é muito mais afirmativo e emocional do que buscar artificialmente a inovação através de um rito que nos desconecta de um rio de tempo ao qual buscamos pertencer por desejo e direito. Fazer do ritual a porta aberta para a experiência de um tempo judaico é afirmar o nosso pertencimento e negar qualquer direito de exclusão. Por outro lado, criar novos rituais para construir através deles uma identidade desnecessária pode bem ser construir a exclusão de si mesmo como maneira de afirmar-se e, ao mesmo tempo, concordar com todos aqueles que definem quem pode ou não praticar a experiência temporal judaica. É dizer sem declarar que no fundo não nos sentimos no direito de vivenciar um determinado rito que o poder oficial julga ser seu privilégio. Posturas deste tipo podem muito bem ser um ato político dentro de uma luta política em Israel, mas desnecessárias e distantes de nossa própria realidade. Afirmar-se ateu, construir sinagogas e designar rabinos laicos mais do que uma possível necessidade de uma comunidade, quando se trata do estado de Israel, pode tomar a forma de uma confrontação importante com um poder religioso que cresce e se alia á extrema direita afrontando a liberdade e a democracia. Viver a experiência de um estar judaico dentro de uma cerimônia de Shabat usando uma kipá e entoando cânticos não faz de mim um crente, mas, sem dúvida, me transporta a uma experiência de tempo que me toca a alma e me conecta a uma corrente de significados que a razão não pode explicar e que nada tem a ver com fé ou religiosidade. Como costuma dizer um amigo mais sábio do que eu, o judaísmo é a única religião que admite ateus. Shabat Shalom.

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