Descendentes das 20 mil vítimas que Hafez Assad fez há 30 anos em Hama perderam o medo; sua voz está em todo o país
A imagem do Exército sírio bombardeando a cidade de Homs para conter a rebelião contra o regime do presidente Bashar Assad é a reedição de um filme muito ruim estrelado pelo pai de Bashar, Hafez, há 30 anos. Eu sei, porque vi o original.
Foi em abril de 1982. Eu acabara de chegar a Beirute como repórter do New York Times. Imediatamente fui informado de histórias apavorantes de um levante ocorrido em fevereiro na cidade síria de Hama, organizado pela Irmandade Muçulmana síria. Afirmava-se (na época não havia internet nem celulares) que o presidente Hafez Assad havia esmagado a rebelião bombardeando bairros inteiros de Hama, dinamitando edifícios, alguns com pessoas dentro. Naquele mês de maio, obtive um visto para a Síria, assim que Hama foi reaberta. O regime “encorajava” os sírios a percorrer as ruas da cidade destruída e a refletir sobre o significado do que viam. Então peguei um táxi e lá fui eu.
Foi uma visão aterradora. Um número enorme de prédios havia sido destruído e o lugar onde antes se erguiam foi aplainado com precisão profissional, transformado em estacionamentos do tamanho de campos de futebol. Remexendo a terra com a ponta dos sapatos, era possível encontrar pedaços de roupas, um livro despedaçado, um calçado.
A Anistia Internacional calculou que naquele local foram assassinadas 20 mil pessoas. Nunca havia visto uma brutalidade daquela magnitude. Em um livro que escrevi mais tarde, a chamei de Hama Rules (As regras de Hama).
As regras de Hama não são regras. Uma pessoa que faz todo o possível para se manter no poder não se limita a derrotar seus inimigos. Ela os bombardeia em suas casas e depois passa por cima dos destroços com rolos compressores para que seus filhos e os filhos dos seus filhos jamais esqueçam e jamais sonhem em desafiar seu poder outra vez.
Trinta anos mais tarde, os filhos daquelas crianças sírias esqueceram-se disso. Elas perderam o medo. Mas desta vez não é apenas a Irmandade Muçulmana que se rebela em uma cidade. Agora são os jovens de toda a Síria.
Navtej Dhillon e Tarik Yousef, os organizadores de Generation in Waiting: The Unfulfilled Promise of Young People in the Middle East (Uma geração à espera: A promessa não cumprida aos jovens do Oriente Médio, em tradução literal), observam que vivem atualmente no Oriente Médio mais de 100 milhões de indivíduos de 15 a 29 anos, em comparação com menos de 67 milhões em 1990. A maior parte das promessas feitas por seus governos a respeito de empregos, de oportunidades de casamento, de apartamentos e da possibilidade de opinar sobre o próprio futuro jamais se materializou. Foi isso que desencadeou esses levantes com uma violência vulcânica.
Mas a Síria não é a Noruega. A busca da democracia não é o único drama que se desenrola nesse país. A Síria é também um país formado por inúmeras tribos e marcado por divisões sectárias. Sua minoria alauita pró-xiita – liderada pela família Assad e equivalente a 12% da população – domina o governo, o Exército e as forças de segurança. Os sírios muçulmanos sunitas constituem 75%, os cristãos são 10% e drusos, curdos e outros completam a população. O levante da Síria começou como uma manifestação não sectária, não violenta do desejo dos jovens sírios de serem tratados como cidadãos. Quando Assad respondeu com as regras de Hama, provocou uma reação violenta. Temores sectários surgiram, então, em toda parte. Agora é difícil dizer onde terminam as aspirações democráticas da rebelião e onde começam as aspirações sectárias – o desejo puro e simples de expulsar a minoria alauita.
Consequentemente, a maioria dos alauitas busca Assad, assim como alguns sunitas que se beneficiaram com o regime, particularmente em Alepo e Damasco, a capital. Esses alauitas e sunitas favoráveis ao regime olham o caos e os tumultos nos campos de futebol do Egito e se perguntam: “Assad ou o caos? Melhor Assad”. O que fazer então? Teoricamente, gostaríamos de uma transição pacífica do governo de um só homem, Assad, para uma política de consenso mais pluralista. Não queremos uma guerra civil na Síria, com a possibilidade de desestabilizar toda a região. Não esqueçamos de que, se o Egito implode, a Líbia implode, a Tunísia implode… A Síria explode.
Não sei o que será suficiente para convencer Assad a ceder o poder a um governo de união nacional, mas sei o que é necessário. Ele terá de perder os dois pontos de apoio mais importantes do regime. Um deles é o respaldo de China, Irã e Rússia. Nesse caso, a ONU, a União Europeia e os países árabes e muçulmanos terão de estigmatizar Moscou, Pequim e Teerã por apoiar o massacre de civis desarmados. China, Irã e Rússia não se importam pelo fato de os EUA os condenarem, mas talvez se importassem se o restante do mundo os condenasse.
Mas o outro ponto de apoio só poderá ser abolido pelos sírios. A oposição síria, ainda muito dividida, precisa encontrar uma maneira de se unir e de convencer os alauitas, assim como os comerciantes cristãos e sunitas da Síria, de que seus interesses estarão seguros na nova Síria, para que eles possam desistir de apoiar Assad. Sem isso, não se conseguirá nada.
Quanto mais a oposição síria demonstrar a si mesma, a todos os sírios e ao mundo que pretende criar uma Síria pluralista – na qual todos os cidadãos sejam tratados de maneira igual – mais Assad se enfraquecerá e mais provável será que a Síria pós-Assad tenha uma chance de encontrar a estabilidade e o senso moral.
Quanto mais a oposição síria continuar dividida, mais forte Assad se tornará, quanto mais alguns sírios se unirem a ele com medo do caos, mais ele tratará de se agarrar às regras de Hama. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

http://blogs.estadao.com.br/radar-global/visao-global-a-frente-da-siria-tal-pai-tal-filho/

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