FIRMINO - Mas é claro, meu prezado, é seu esse meu chatô!
ZEZÃO - Dê licença, gente boa, que o destino, meu nobre e justo Firmino, fez de mim gato e sapato, você nem queira saber!
FIRMINO - Na alegria e na tristeza, cê sabe, sou todo ouvidos, portanto, homem, me diga, o que lhe faz tanto sofrer?
ZEZÃO - Antes mesmo que lhe conte, amigo velho de guerra, me deixe descansar o corpo, apascentar essa alma e na santa calma do abrigo tomar um trago consigo.
FIRMINO - Assim seja feito, meu nobre, mas não demore a dizer, que o que lhe mata por dentro é fora que vai lhe salvar. Agora espere um momento, que aquela porta entreaberta é um perigo na certa, tem sempre quem queira espiar.
FIRMINO VAI ATÉ O FUNDO DA SALA E FECHA A PORTA DO QUARTO. VOLTA COM UMA GARRAFA DE CACHAÇA E DOIS COPOS.
ZEZÃO - Ela chegou sorridente, Firmino...
FIRMINO - Ela quem, homem de Deus?
ZEZÃO - Glorinha, Firmino, Glorinha, a mina dos olhos meus! Chegou como quem fosse pousar o corpo mais que perfeito na planície do meu peito, até beijo ela me deu! Mas de repente, colega, uma lufada de vento, ou sei lá que nome tenha, invadiu o ambiente, e ela, a mulher de uma vida, aquela por quem fiz de um tudo, se transformou em serpente, se chegou por trás de mim, me enlaçou pelo cangote e gritou no meu ouvido: "seu merda, seu papa tudo, pensa que eu não lhe vi de olho naquela zinha?!". E nem me refiz do susto, me deu uma bofetada, me disse poucas e boas, jogou no vaso a aliança e saiu dizendo "obrigada!".
FIRMINO - Obrigada, Zezão? Foi isso que ela lhe disse?
ZEZÃO - Pois é, amigo Firmino, quem é que pode entender a mufa esquentada das mulha? Já eu tô fora, meu chapa, de quebra cabeça cansei. Vai ver que me agradeceu por não ser dado a macheza, não ter posto o pau na mesa, não ter feito ver a ela quem no pedaço era o rei.
FIRMINO - Vai ver, prezado, vai ver...
OS DOIS FICAM EM SILÊNCIO. FIRMINO, APREENSIVO, OLHA PARA A PORTA FECHADA DO QUARTO, DE ONDE SE OUVE BAIXINHO, UM SAMBA DE CIRO MONTEIRO. O SAMBA VAI NUM CRESCENDO, ATÉ QUE A PORTA SE ABRE E SURGE, BELA E TRIUNFANTE, GLORINHA. ZEZÃO LEVA UM SUSTO. FIRMINO ESTÁ COMPLETAMENTE SEM GRAÇA.
ZEZÃO - Glorinha, meu Deus do céu, o que é que cê faz aqui?!
GLORINHA - E não é o que eu pergunto, seu cretino, vagabundo? E largue de olhar pra mim, que não sou alma de outro mundo! Agradeci, sim, pelo pouco que me deste, pelo amor desengonçado e o papelão que fizeste, seu traste, biltre, boiola! E ainda mais que me apresentaste a um homem de verdade, que esse, sim, tá sempre na minha cola, me dá vestido, dá jóia, dá perfume, dá vitrola, era o marido perfeito se eu quisesse ter pra mim!
FIRMINO - Se quisesse, Glorinha??!!
GLORINHA - É, Firmino, é assim. Não quero mais nada de ti, que a lição já foi bem dada. E não há nenhum mistério em lhe dizer obrigada. Foste gentil, boa praça, educado e paciente, mas o que se vai fazer se a paixão é essa peste que fere os ossos da gente, que faz da razão despautério e do homem sério um demente?
E agora vamos pra casa, coisa ruim que amo tanto, anjo torto, cafajeste, enxugue o pranto da cara, erga a cabeça e confesse: sou ou não sou a Glorinha, aquela que dá e não desce?!
FIRMINO, DESOLADO, BAIXA A CABEÇA E PERMANECE EM SILÊNCIO. ZEZÃO, ATURDIDO, SAI DE MÃOS DADAS COM GLORINHA. A VITROLA, NO QUARTO, ESBRAVEJA:
Se acaso você chegasse
No meu chatô e encontrasse
Aquela mulher que você gostou
Será que tinha coragem
De trocar nossa amizade
Por ela que já lhe abandonou
Eu falo porque essa dona
Já mora no meu barraco
À beira de um regato
E de um bosque em flor (...)
FIM
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