A arte dos amuletos judaicos - REVISTA MORASHA

No início deste ano, o Museu de Arte e História do Judaísmo, em Paris, inaugurou a belíssima exposição “Magia, Anjos e demônios na Tradição Judaica”. De imediato, chamou nossa atenção, pois o termo “magia” destoa quando aplicado ao mundo judaico. Fundamentado na Torá, no Talmud e em rico pensamento filosófico, o judaísmo é o arquétipo da religião racional, no entanto, é também entrelaçado de um profundo misticismo.

Desde os primórdios da história, os homens fizeram amuletos para aqueles que acreditavam em seu poder de proteção. Eles podem ser vistos tanto no Oriente quanto no Ocidente, entre povos da Antiguidade e nações modernas, chegando até nossos dias. Entre os judeus, os amuletos têm uma história que se estende ao longo de milhares de anos, sendo mencionados no Talmud.

Essencialmente funcionais, os amuletos não eram confeccionados com a intenção de serem admirados por sua beleza ou expostos em museus, como objetos de arte. No entanto, como qualquer outro artefato, sua forma e aparência, suas inscrições, seus materiais ou qualquer outro elemento da cultura que lhes são associados podem lançar luz sobre a sociedade à qual pertencem.

Como o judaísmo encara os amuletos? Eles fazem parte do lado místico do judaísmo, do que chamamos de Cabalá Prática. É bem verdade que o judaísmo, fundamentado na Torá e no Talmud, é, à primeira vista, o arquétipo de uma religião baseada na razão, metodicamente questionada, sendo que o estudo é um elemento fundamental, mas há um lado místico. O judaísmo acredita na capacidade do ser humano de agir sobre o mundo e modificá-lo através de suas ações ou palavras.

A Cabalá que, na língua hebraica, significa “recebimento” ou “o que foi recebido”, é parte integral da Torá Oral e, assim como a Torá Escrita, tem origem e natureza Divinas. Também chamada de Chochmat ha-Emet - a Sabedoria da Verdade é uma doutrina de unidade através da qual o homem pode aprender que a realidade é um todo no qual o visível e o invisível, o material e o espiritual se misturam e se unem. A Cabalá pode ser dividida em dois: a Cabalá Iyunit, Cabalá Contemplativa – e a Cabalá Maasit, Cabalá Prática.

A Cabalá Contemplativa, categoria à qual pertence a maioria dos textos cabalísticos hoje em circulação, tenta explicar o processo através do qual, mediante a Vontade do Único e Infinito D’us, o Universo foi criado e é constantemente direcionado.

A Cabalá Prática, por outro lado, envolve técnicas direcionadas especificamente a alterar os estados ou eventos naturais. Um alerta importante, a Cabalá Maasit só pode a ser empregada por Tzadikim e com o único propósito de ser utilizada em benefício do homem. A Cabalá Prática se fundamenta no misticismo desenvolvido no “Sefer Yetzirá” (Livro da Criação). Segundo essa obra, D’us criou o mundo através das letras do alfabeto e particularmente daquelas de Seu Nome Sagrado, que Ele combinou das formas as mais variadas. E, uma das técnicas utilizada na Cabalá Pratica é a inscrição nos amuletos dos Nomes Divinos.

Na literatura talmúdica o amuleto é chamado de kemi’á, termo oriundo de uma raiz que significa “vincular, amarrar”. O uso de amuletos foi intenso no período rabínico e, consequentemente, há inúmeros detalhes acerca deles nas fontes literárias. A Mishná considera os kemi’ot a partir de seu ponto de vista jurídico. Durante esse período, a ação e o pensamento judaicos eram dominados pelo Talmud e, como essa autoridade não proibia o uso de amuletos escritos, seu uso cresceu e floresceu particularmente no Oriente.

Alguns de nossos Sábios, como Rav Hai Gaon, diretor da Yeshivá de Pumbedita (circa 1000), negou os poderes dos amuletos, como, por exemplo, que um pergaminho inscrito com o Nome místico de D’us poria os ladrões a correr; que acalmaria o mar, etc. Ele admitia, contudo, que os amuletos podiam ser eficazes como meio de cura e proteção. Tudo dependia de quem escrevia e do momento da aplicação (Ashkenazi, “Ta’am Zekenim,” 56b). Outros grandes Sábios, como Rabi Moshe ben Nachman, Nachmânides, e Rabi Solomon ben Abraham não condenavam seu uso, ao passo que Maimônides se pronunciou contra os mesmos, negando que tivessem qualquer virtude ou força.

A arte

Como vimos acima, desde seus primórdios os amuletos foram empregados para proteger o homem ou suas posses das más influências, ou para neutralizar a má sorte, doenças e danos de vários tipos que já estivessem agindo contra a pessoa. Os antropólogos acreditam que originalmente todos os ornamentos utilizados pelas pessoas, tais como colares, braceletes, anéis, foram algum tipo de amuleto.

Nem todos os amuletos eram confeccionados por algum Tzadik ou algum grande rabino com uma finalidade específica. Na grande maioria dos casos, os amuletos judaicos consistiam de um artigo com o Nome de D’us inscrito em seu interior, ou com uma passagem das Escrituras, ou algo semelhante.

Eles podiam ser feitos artesanalmente ou em série. No primeiro caso eram feitos sob encomenda para um indivíduo em particular ou para uma finalidade específica, enquanto aqueles feitos em série eram mais impessoais, sem caráter específico. A forma mais frequente era uma placa de metal com uma inscrição.

Desde os tempos mais remotos, o pergaminho foi o material mais utilizado para confecção de amuletos em uma variedade de tamanhos e formas. Ao longo dos últimos séculos, nas comunidades judaicas da Europa surgiram amuletos impressos em papel, que foram reproduzidos em um número maior de cópias, a um custo mais baixo, sendo assim acessíveis a um público maior.
Nem sempre era o amuleto, de papel ou pergaminho, que tinha ornamentos; muitas vezes estes eram feitos em seu invólucro. De metal, couro ou tecidos preciosos, eram confeccionados por hábeis artesãos, preocupados em torná-los mais atraentes. Os invólucros eram muitas vezes decorados com desenhos que determinavam o significado do amuleto.

Embora durante o século 20 os amuletos impressos se tenham tornado populares em todo o mundo judaico, nas comunidades do mundo muçulmano ainda tinham seu lugar preferencial os amuletos em prata ricamente trabalhada, ou embutidos em joias. Acessórios de adorno, esses tipos de amuletos tinham sempre o intuito de proteger aqueles que os utilizavam, começando com os mais vulneráveis, como mulheres e crianças. Vários tipos de joias – diademas, pulseiras, colares, correntes de tornozelo, cintos e até fivelas dos cintos – eram ornamentados com motivos protetores ou feitos em materiais que supostamente teriam propriedades de proteção aos que os portavam. A turquesa, uma gema de cor azul, é uma das pedras mais comuns.

Esses amuletos eram geralmente confeccionados por ourives judeus, que haviam sido autorizados pelas autoridades muçulmanas a trabalhar com ouro e prata e a vender seus produtos aos muçulmanos. Dotados de formas e motivos idênticos, refletem uma crença comum nos poderes apotropaicos (i.e., que têm poder de afastar influências maléficas ou desgraças) de algum objeto. Um exemplo é a chamsá1 judaica e muçulmana, que reflete a crença nos poderes da mão estendida.

Enquanto os amuletos de metal eram menos comuns na Europa, entre os séculos 17 e 19, os judeus italianos mais abastados tinham uma predileção por estojos de amuletos em prata maciça. Denominados “Sha’dai” (El Sha’dai é um dos Nomes de D’us) e destinados a proteger as crianças pequenas, eles eram pendurados ou suspensos acima do berço de maneira que fossem visíveis.

Sob a forma de pequenas caixas, alguns dos espécimes eram feitos de uma liga de prata, outros eram folheados de ouro, cinzelados e trabalhados com a técnica do repuxado, tendo de um lado motivos gravados inspirados nas artes decorativas italianas da época e, de outro, aplicações de ouro representando símbolos judaicos – especialmente os objetos rituais do Templo. Os amuletos eram transmitidos de geração em geração, dentro da mesma família, como uma herança preciosa.

Porém, a estética de um amuleto judaico depende antes de tudo de um de seus componentes essenciais: a elegância da caligrafia da sua inscrição em hebraico. Os antigos recipientes de terracota eram escritos, por exemplo, em seu lado côncavo, em caracteres apertados, formando círculos irregulares, em espiral, enquanto que os amuletos de prata do Irã eram gravados com uma grande escrita quadrada, com letras vazadas e bem proporcionais. Os que confeccionavam os amuletos tinham também acesso a recursos como a micrografia, técnica característica da arte judaica, em que os motivos são minúsculas letras hebraicas. Outro tipo de escrita reservada aos amuletos era a escrita “angelical” ou alfabeto cabalístico, cuja origem remonta aos caracteres do final da Antiguidade.

Em toda a Diáspora judaica podem ser encontrados amuletos feitos em diferentes materiais e técnicas, onde estão inscritos um dos Nomes Divinos e fórmulas de proteção. Entre os desenhos mais frequentes nos amuletos judaicos há a Árvore das Sefirot e o Maguen David. Na árvore sefirótica eram escritos os nomes das sefirot, assim como os Nomes de D’us. A Estrela de David, de seis pontas, e a de cinco pontas, o Escudo de Salomão, apareceram na Idade Média.

Motivos populares aparecem ao lado de símbolos especificamente judaicos, uns e outros cuidadosamente escolhidos pelo seu significado no contexto místico judaico. Entre os motivos populares, há o ciclo do Zodíaco, utilizado em amuletos para colocar a vida de seus proprietários sob favoráveis auspícios e sob uma constelação favorável; e da palmeira ou ramo de palmeira, sinal da vitória e da eternidade, que está associada ao justo que herdará o Paraíso (Salmo 92:13). Na África do Norte, a figura do peixe deveria trazer fertilidade e facilitar o parto, símbolo atestado nas mais antigas tradições judaicas, por exemplo, em Gênesis: 28 e 48:16 e no Talmud Babilônico,Trat. Berachot, 20a.

Entre os símbolos mais especificamente judaicos citamos: os itens necessários para o culto no Templo e várias representações de locais sagrados – em particular, Jerusalém e o Monte do Templo, mas também santuários e túmulos como o Túmulo da matriarca Rachel, Kever Rachel.

Como na arte judaica antiga, todos os objetos rituais relacionados ao Templo, entre eles, o candelabro de sete braços, a Menorá, ocuparam um lugar central entre os amuletos, sendo algumas vezes o principal elemento decorativo. Justamente, o desenho mais conhecido hoje, é a Menorá “cabalística” ou Shiviti, feito usando os oito versículos do Salmo 67, renomado por proteger das forças negativas. O primeiro verso representa as chamas, enquanto os outros sete criam os braços.

Inúmeras comunidades judaicas reprovavam ou proibiam a arte figurativa. Em países muçulmanos os judeus abstinham-se, em geral, de representar o corpo humano. Entretanto, certas partes do corpo cujo poder de proteção era considerado particularmente eficaz eram uma exceção, como a mão humana estilizada – a Chamsá, e o olho(para proteger contra o “mau olhado”, ayn raá).

O símbolo da mão aparece bem antes do surgimento do Islã. É interessante ressaltar que as autoridades rabínicas nos países muçulmanos justificavam a utilização da Chamsá, que significa “cinco”, em árabe, associando-a à quinta letra do alfabeto hebraico (heh), que é utilizado para se referir ao Nome de D’us com uma única letra (Monogramaton), ou ainda ao posicionamento dos dedos na bênção dos Cohanim, Birkat ha-Cohanim. As Chamsot judaicas utilizadas como talismãs assumem diversas formas, no Marrocos, Tunísia, Irã, Iraque, em Bukhara e em alguns outros lugares. Algumas têm no centro a letra hebraica heh; outras, os dedos afastados como as mãos dos Cohanim durante o Birkat ha-Cohanim.

Personagens e cenas narrativas são típicos dos amuletos de vários países europeus, incluindo Itália, Alemanha e Países Baixos, onde os judeus estavam sob a influência de tradições artísticas locais. Eles incorporam episódios bíblicos colocando em cena heróis mencionados nominalmente no texto do amuleto.

Em metal, pergaminho ou papel, os amuletos italianos, por exemplo, privilegiam as cenas do Gênesis, porque elas serviam como um modelo de retidão em todas as circunstâncias da vida, assim como os patriarcas e matriarcas. Outras figuras bíblicas, entre as quais Yossef e o Profeta Eliahu, apareciam devido à sua associação com a fertilidade e os milagres, e também porque se acreditava que eram capazes de afastar o mau-olhado (Yossef) ou a figura demoníaca feminina de Lilit (o Profeta Eliahu).

Menos frequentes, as cenas figurativas não bíblicas descrevem os ritos judaicos – por exemplo, o acendimento das velas de Shabat sobre um amuleto alemão do século 18, impresso para uma menina; ou a cerimônia da circuncisão, a Brit Milá, para um menino. Na Europa Oriental, onde a representação da figura humana era proibida, os amuletos tinham algumas vezes microgravado o retrato de um Tzadik (um Justo), cuja imagem pendurada na parede tinha o poder de proteger.

Enfim, como seria de esperar quando se trata de misticismo, nos amuletos judaicos há também seres sobrenaturais benévolos ou demoníacos. Figuras antropomórficas de demônios e criaturas híbridas grosseiramente desenhadas podem ser encontradas em objetos judaicos desde o final de Antiguidade. No início do período moderno, encontramos ainda vestígios dessas figuras nos manuscritos de Cabalá Prática, em manuais para fazer amuletos, assim como em alguns amuletos.

A Exposição

A exposição “Magia, Anjos e Demônios na Tradição Judaica” realizada de 4 de março a 28 de junho deste ano, em Paris, foi possível graças ao trabalho recente de Gideon Bohak, autor de uma importante obra, História da Magia Judaica na Antiguidade, publicada pela Universidade de Cambridge, e conselheiro científico da exposição realizada em Jerusalém pelo Museu das Terras da Bíblia, em 2010, “Anjos e Demônios. Mágica Judaica através das Eras”.

O Museu de Arte e História do Judaísmo é subvencionado pelo Ministério da Cultura e Comunicação e pela Prefeitura de Paris.

Bibliografia
Catálogo da exposição “Magie, Anges et démons dans la tradition juive”

Rabi Miller, Moshe “Contemplative and Practical Kabbalah”. http://www.chabad.org/kabbalah_
Rabi Kaplan, Aryeh, Meditation and Kabbalah, 1989

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