Pode ser que eu esteja escrevendo tolices, mas ouvindo outro dia uma peça musical de Alexandre Levy, a suíte Brésilienne, fiquei matutando sobre a hipótese dele ter bebido influências na casa de Tia Ciata, onde o samba nasceu.
Vamos por partes: Alexandre Levy é considerado pela historiografia da música, ao lado de Alberto Nepomuceno, um dos compositores precursores, no final do século dezenove, da formação do caráter nacional da música erudita no Brasil. Na enciclopédia do Itaú Cultural, reproduz-se uma citação de Mário de Andrade. Segundo ele, a trajetória de Levy é compreendida em direção da descoberta de sua nacionalidade brasileira. Inicialmente é um jovem e promissor compositor judeu de origem francesa. Paulistano. Diz Mário de Andrade que suas características “evidentemente Românticas influenciado por Robert Schumann – que homenageou com sua Schumanniana – e Richard Wagner, sua passagem pela Europa no final da década de 1880 significa seu amadurecimento artístico.
A experiência europeia teria também influenciado o jovem compositor nos projetos de modernização da cultura musical paulistana e brasileira, apoiando a formação de um circuito musical na cidade de São Paulo composto por instrumentistas, público e crítica. Para alguns intérpretes, a partir deste momento ele deixa as influências Românticas em segundo plano e assume um caráter mais modernizador e de acordo com a geração intelectual do final do século dezenove”. Deste modo, Levy inspira-se em temas populares em suas composições e é identificado com o processo formativo da música nacionalista. No entanto, não são temas exclusivamente folclóricos e indigenistas, como era voga à época: ele busca elementos no mundo urbano e na cultura afro-brasileira.
Eu estava ouvindo pela Culturafm a quarta parte da Suíte Brésilienne intitulada Samba. Esse trecho é o único estreado separadamente no Rio de Janeiro, com regência de Leopoldo Miguez, com Levy ainda vivo e tudo indica que bem acolhido pelo público. De acordo com o musicólogo G. Behague, Levy usou como referência nesta peça dois temas folclóricos do samba rural muito conhecidos na cidade de São Paulo, e que Mário de Andrade estudou profundamente, o que me remete à vila de Parnaíba e ao Coruruquara, bairro distante da cidade, onde ainda se toca esse samba rural, Balaio, meu bem, balaio e Se eu te amei (harmonizado anteriormente pelo mestre-de-capela da Sé Central, José Almeida Cabral). E tudo indica também que Levy teria sido influenciado pela descrição de um “samba de umbigada” presente no romance naturalista A carne de Júlio Ribeiro, expondo assim o contraste com a geração romântico-indigenista. Não poderia ter sido na casa de Tia Ciata, no Rio de Janeiro?
Alexandre Levy usou em parte de sua obra, elementos musicais populares díspares: aqueles existentes no universo urbano como a Polca, o Tango Brasileiro e o Maxixe; os do Samba rural paulista; e as manifestações transformadas desta cultura rural no centro urbano. Fica a sugestão para pesquisadores mais preparados do que eu, seria muito interessante estabelecer (ou não) essa conexão do jovem Levy com a negra baiana.
Onde o samba nasceu
Eu costumo contar que nasci na Rua Visconde de Itaúna, 93, ao lado do 13º Distrito Policial, do puteiro na vila de número 97, da quitanda e vizinho da casa de Tia Ciata. Tia Ciata, ou Hilária Batista de Almeida. A figura dela aparece em todos os relatos que dão conta do surgimento do samba e dos ranchos, e cuja lembrança é até hoje cultivada , cultuada com carinho pelos mais antigos negros e mulatos do Rio de Janeiro. Tia Ciata nasceu em Salvador, em 1854, “e porque era dia de Santo Hilário”, recebeu o nome em homenagem ao santo. Com 22 anos chegou ao Rio, e foi morar na Rua General Câmara.
Ela e as Tias Veridiana e Presiliana fundaram os primeiros blocos e ranchos carnavalescos do Rio, na verdade, uma forma de mascarar os cultos do candomblé, na época proibidos pelas autoridades. Assim, Tia Ciata teve papel central na formação da “Pequena África” carioca, atraindo negros de todo o País na busca de orientação,de proteção, de ajuda financeira. Eduardo da Silva, em “The life and times of a Brazilian free mano of colour”, fala do “reino de Obá”, conhecido justamente de “Pequena África” e que, segundo o Censo de 1849, informava que de cada três habitantes da Corte carioca, um era africano. Existiam 74 mil africanos livres e escravos na capital do Império.
Voluntários da Pátria
No interior da Bahia, um negro livre, Cândido da Fonseca Galvão, dizendo-se inspirado “pelo sacrossanto amor do patriotismo”, reuniu 30 voluntários e se apresentou para “defender a honra da pátria tão vilmente difamada”. Feito alferes honorário do exército, cuja farda usava com orgulho, Galvão viveu o pós-guerra no Rio de Janeiro, dizendo-se Príncipe Obá, 2º d’África, como nos contam, entre outros, o escritor Eduardo Silva e a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz.
Já o historiador José Murilo de Carvalho, assinala: “A simpatia popular se dirigia não só à princesa Isabel … No meio da multidão, salientava-se a imponente figura do príncipe Obá, um negro que se dizia rei africano. Príncipe Obá adornara de penas sua farda de alferes honorário. A cena…revelava profundo simbolismo: um rei negro, um rei de ruas e becos da cidade, vai paramentado, combinando a farda do mundo oficial com as penas de suas origens africanas e acolitado pela multidão dos miseráveis saudar o imperador de olhos azuis”. Reza a tradição que o presidente Wenceslau Brás sofria muito de erupções na pele, eczemas que o torturavam intensamente. Nenhum médico conseguira dar jeito na doença. De uma forma ou de outra, pediu socorro a Tia Ciata que, com ajuda de seu Orixá, curou o presidente. Como recompensa, Wenceslau nomeou o companheiro dela, João Batista, para importante cargo na polícia carioca.
Se non e vero, e bene trovato.
Outra das iniciativas dela a quem todos nós ficamos devendo: Ciata foi a iniciadora da tradição carioca do tabuleiro da baiana, das quituteiras, atividade baseada em forte fundamento religioso. Após o cumprimento das tarefas religiosas, depois de colocar doces no altar homenageando o Orixá do dia, Ciata ia para seus pontos de venda, com saia rodada, pano da costa e turbante, ornamentada com seus fios de contas e pulseiras. Levava sempre tabuleiro farto de bolos e manjares, cocadas e puxa-puxas, comidas de santo.
Na minha infância em São Cristovão, muitas vezes comi as cocadas e os puxa-puxas, nas baianas da praça da Bandeira. Pra ficar mais claro: a sexta feira, por exemplo, dia de Oxalá, é também o dia de cocadas e manjares brancos. Tudo muito bonito e delicioso. Ciata era ligada ao tronco mais tradicional do candomblé nagô baiano. Líder da comunidade, ela preparava os ranchos, mas nunca saía neles. Tia Ciata era de Oxum, Orixá que expressa a própria essência da mulher, patrona da sensualidade e da gravidez, protetora das crianças que ainda não falam, deusa das águas doces, da beleza e da riqueza.
“A História registra que ela era festeira, dançarina, pagodeira, partideira, cantava com autoridade respondendo o refrão”, conta Nei Lopes, compositor, cantor e escritor , profundo conhecedor da negritude carioca. E claro, ela sempre cuidava das panelas nas festas para que o samba nunca morresse. Comida de terreiro, gente, é o que há!
“Era na casa de Ciata que, nas grandes festas, o povo mais humilde, principalmente os negros baianos e cariocas, vivia seus momentos de alegria, de convivência fraterna e solidária. Foi ali, nessa mistura de gente simples, que se formou o caldo cultural que gerou o nascimento da música popular brasileira. Foi na casa de Tia Ciata que comendo a sua boa comida e o astral positivo dela que Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Heitor dos Prazeres e tantos outros, se reuniram e traçaram os rumos da música brasileira. Heitor Villa-Lobos também buscou ali inspiração para sua obra erudita”, assinalou em seus trabalhos o Nei Lopes.
Por que não imaginar o jovem Alexandre Levy bebendo também dessa fonte generosa?
A casa deTia Ciata era ponto obrigatório no itinerário dos cortejos dos ranchos e grupos de sambistas. Todos passavam em frente de sua janela para lhe prestar homenagem. E dizer que tudo isso aconteceu ali, ao lado do sobrado da Visconde de Itaúna, berço dos Veltman, dos Cardeman, dos Grossman, dos Goldfeld. Eu sempre desconfiei que meu pai sabia dessas coisas, dessas histórias maravilhosas dos nossos pretos maravilhosos… Onde foi mesmo que Chico meu pai foi buscar o moleque que ele educou e virou uma figura marcante da minha vida, da nossa vida, meu irmão negro Amaro Moura Cisneiros?!
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