Manhattan preserva a herança cultural legada pelos judeus expulsos de Pernambuco em 1654, os primeiros que aportaram na América do Norte
história dos judeus americanos fez escala no Brasil. Foi do Recife que partiram, em 1654, os primeiros judeus a se fixar na América do Norte. Esse grupo inicial, com 23 pessoas, abriu caminho para a chegada de outros sefardins (judeus então oriundos da Península Ibérica, hoje também concentrados no Oriente e na África.). Depois, no século 19, a comunidade acolheu milhões de asquenazis (na origem, judeus procedentes da Europa Oriental e da Alemanha). Hoje, com mais de 3 milhões de judeus, Nova York é a capital mundial do judaísmo. Mas a tradição dos pioneiros do Recife ainda é mantida na sinagoga da Congregação Shearith Israel, que eles fundaram. A atual sinagoga, de frente para o Central Park na esquina da Rua 70 Oeste, é a quinta construída pela congregação. As anteriores foram demolidas. Mas ainda existe o primeiro cemitério judeu, agora o mais antigo da cidade. Fica em Chatham Square, num antigo bairro que se tornou Chinatown. As lápides dos 107 túmulos foram quase apagadas pelo tempo. Mas alguns nomes não deixam dúvida sobre a origem: Mendes, Gomez, Seixas, Pinto, Fonseca, Burgos, Lopes, Rivera, Cardozo.
Acidente de Percurso Devido a um ataque pirata, judeus em fuga de Pernambuco para a Holanda acabaram em Manhattan |
O rabino Abraham Lopes Cardozo mantém viva a cultura dos antepassados ibéricos. Coleciona canções em ladino (dialeto judaico que funde o castelhano e o português arcaicos ao hebraico.), que costuma cantarolar. "Avram avinu, padre querido, padre bendicho, luz de Israel", entoa com pronúncia clara, sem entender todas as palavras. Seu bisavô foi o último rabino na família a pregar em português. Mas ecos do Brasil chegam aos ouvidos de Cardozo. Um visitante brasileiro trouxe notícias da restauração da sinagoga do Recife. E ele saúda a recuperação da economia brasileira, "graças a um Cardoso!"
"Recife, para os judeus americanos, foi só uma passagem, que durou pouco mais de 20 anos." Rabino Abraham Cardozo, da Comunidade Shearith Israel |
Da presença dos judeus no Recife ao tempo da invasão holandesa restam poucas lembranças. "Foi só uma passagem, que durou pouco mais de 20 anos", diz o rabino. Mas da chegada dos pioneiros a Nova York há referências concretas. Ao lado da sinagoga principal, adornada com vitrais Tiffany, existe a "pequena sinagoga", réplica da original. Ali o rabino Cardozo reza duas vezes ao dia. Nas orações, nomes de ancestrais continuam a ser lembrados: Gershom Mendes Seixas, aliado de George Washington na Guerra de Independência; seu filho Benjamin Mendes Seixas, fundador da Bolsa de Valores de Nova York; Benjamin Cardozo, juiz da Suprema Corte ligado a Franklin Roosevelt.
Nenhum deles era vivo quando da fuga do Recife. Após a expulsão dos holandeses, os judeus receberam um prazo de três meses para partir ou se converter. Com medo da fogueira da Inquisição, quase todos venderam o que tinham e deixaram o Recife em 16 navios, a maioria com destino a Amsterdã. Um dos navios, o Valk, perdeu-se durante uma tempestade. Reza a lenda que foi saqueado e queimado por piratas espanhóis no Caribe. Um pirata francês, Jacques de la Motte, resgatou os passageiros e os levou para Nova Amsterdã, então um pequeno entreposto da Companhia das Índias holandesas na Ilha de Manhattan, na foz do Rio Hudson. Eram quatro casais, duas viúvas e 13 crianças. Ao pisar em terra, os fugitivos não tinham como pagar as 2.500 moedas de ouro cobradas pelo francês, dívida perdoada por um tribunal holandês de apelação. Também escaparam da expulsão, graças à pressão da Companhia das Índias sobre o governador Peter Stuyvesant. Dez anos depois, quando os ingleses conquistaram Manhattan e a rebatizaram como Nova York, já havia pequenas comunidades sefardins na Nova Inglaterra. Mas, ao contrário de Israel, onde os sefardins são cidadãos de segunda classe, nos Estados Unidos eles constituíram durante séculos a "nobreza judaica", uma rede de comerciantes ricos que muito contribuiu para a prosperidade do país.
Com a chegada de levas de judeus alemães e da Europa Oriental, eles ficaram em minoria. Hoje, na sinagoga Shearith Israel, há mais asquenazis do que sefardins, estes na maioria recém-chegados do Norte da África e do Oriente Médio. Mas o culto ainda segue a ortodoxia luso-espanhola, ao contrário do culto reformado preferido pelos asquenazis americanos. O estrado de onde o rabino fala fica no meio do salão, voltado para a arca onde se guarda a Tora. E os bancos ainda têm o nome original em ladino, "bancas". São pequenos detalhes, como os sobrenomes Mendes e Cardozo, a lembrar que um pedaço importante da história dos judeus americanos passou pelo Brasil.
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Jorge Pontual, de Nova York
Foto:André Penner/Época
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