O que se pode sentir, observando as obras de Marc Chagall, é seu compromisso com a alma judaica. Em nenhum momento da sua longa vida, iniciada na cidade russa de Vitebsk, onde nasceu em 1887, arrefeceu o orgulho de sua origem religiosa.
Foi um dos maiores pintores do século 20, retratando a vida dos judeus no interior da Rússia e ilustrando contos populares aos quais era aficionado. Tudo isso se pode ver na exposição “Guerra e Paz”, realizada em Paris, no Musée du Luxembourg. Com uma incrível particularidade: era permitido fotografar os quadros, desde que não se usasse flash. Foi uma recordação para toda a vida.
Chagall morreu em 1985, quase centenário, tendo conhecido uma revolução, duas guerras e o exílio. Viveu tempos de guerra e de paz, a tudo retratando com uma qualidade ímpar. Transgrediu regras e códigos e nutriu-se do pensamento modernista, tornando-se pioneiro do cubismo e do surrealismo. São correntes, em seus trabalhos, as tradições judaicas hassídicas (o seu rabino de Vitebsk é antológico), além de episódios bíblicos e aspectos de família, a que ele era muito chegado (casou em 1915 com Bella Rosenfeld, daí nascendo a filha Ida).
Tímido, o pequeno Moise vivia entre a sinagoga, as festas religiosas, o trabalho e a casa, no shtetl1. Seus pais, Zakhar e Feiga-Ita, eram iletrados. A mãe conseguiu matriculá-lo em uma escola russa, onde, aos 13 anos, apaixonou-se pelo desenho. Depois da escola, foi para São Petersburgo, onde se consagrou à pintura, mas aprendeu também canto e violino. Foi para Paris em 1911, então capital artística do mundo. Viveu no meio de artistas, embora só falasse o russo e o iídiche. Longe da pátria, escolheu elementos folclóricos do judaísmo e da vida na sua cidade para compor seus famosos quadros.
Voltou à sua terra para casar com Bella. Em 1917, o país estava em plena revolução e ele foi nomeado comissário de Belas Artes em Vitebsk. Criou uma academia, na qual se inscreveram 900 alunos.
Em 1920, o teatro judeu de Moscou lhe encomendou nove imensos painéis decorativos. Estava com 33 anos, e muitos o consideravam em seu apogeu artístico. Foi aí que nasceu “O violinista no telhado”, logo transformado em obra-prima.
Em 1923, Chagall deixou a Rússia, voltou a Paris e passou a se dar com os intelectuais da época. Chegou, por momentos, a se encantar pela poesia. Fez sua primeira retrospectiva em 1924 e, dois anos mais tarde, a primeira exposição em Nova York (EUA). Mas é em Paris que ele se sente livre e feliz. Tanto que se propõe a pintar as fábulas de La Fontaine, o que faz com muito sucesso. Da mesma forma como dá vida a palhaços, animais e acrobatas do circo, outra de suas fixações.
A Torá
A leitura da Torá acompanhou Chagall desde sua primeira infância. Foi para a então Palestina em 1931 e visitou os lugares sagrados do judaísmo. Procurou exprimir o sofrimento de seu povo.
Naturalizado francês, em 1937, não se conformou com as perseguições aos judeus na Europa. A família Chagall embarcou para Nova York em 1941, justamente no dia em que a União Soviética foi atacada pela Alemanha, cujas autoridades nazistas haviam embargado suas obras das coleções públicas. Sua arte foi considerada “degenerada”. Em Nova York, com Bella, conheceu artistas e poetas judeus que não ignoravam os atos de barbarismo perpetrados pelos nazistas. Guerra, perseguições, êxodo e povoados em chamas habitam os quadros dessa época. A partir de então, seus trabalhos passaram a apresentar matizes sombrios.
Depois de perder a esposa Bella nos Estados Unidos, o que lhe valeu a depressão de um ano, sem pintar, em 1948 Chagall voltou definitivamente à França, dedicando-se a temas solares, marítimos e mitológicos. Aqui entram também as técnicas de cerâmica e escultura. Produziu vitrais para sinagogas e igrejas e para a Universidade Hebraica de Jerusalém. Durante os anos de 1950 a 1966 pintou o ciclo da Mensagem Bíblica. Em Nice foi criado o Museu Nacional Marc Chagall, com as preciosidades da sua obra imortal. Casou-se novamente com Valentina Brodsky e recuperou a felicidade.
Para ter uma ideia de como o judaísmo influenciou seus trabalhos, recordações e simbologias, podemos afirmar que isso se nota nos óleos de Vitebsk, “O violonista no telhado”, “A Torá vermelha”, “Moisés”, “Josué”, “O rabino de Vitebsk”, “O perdão de D’us anunciado em Jerusalém”, “O Rei Davi”, “O sepulcro de Rachel”, “Abrahão chorando Sara”, “O Shofar”, os vitrais do Knesset e do Hospital Hadassa (Israel), e muitos outros, todos dotados de uma formidável singularidade.
O paralelo entre as imagens da guerra e as imagens da paz revela a complexidade da sua obra. Assim, segundo as circunstâncias, Chagall visita e revisita certos temas, sempre com uma dimensão pessoal, em que é possível perceber as diversas fases de sua vida: a infância na Rússia, o período entre as duas grandes guerras, a vida nos EUA após a guerra e o retorno à França. São as marcas mais fortes da exposição apresentada no Musée du Luxembourg, visitada por milhares de pessoas das mais variadas partes do mundo.
Arnaldo Niskier é membro da Academia Brasileira de Letras
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