Opiniões diversas têm circulado sobre um fenômeno antropológico vivido hoje no Brasil pelos “bnei hanussim”, (filhos de conversos), cristãos-novos, marranos. Descendentes de judeus convertidos à força ao catolicismo em Portugal, em 1497, cristãos novos fugiram ou foram desterrados para o Brasil, aqui fazendo parte íntima da formação étnica do povo brasileiro. Confusões numerosas têm surgido em torno da questão desses descendentes de judeus convertidos (marranos, cristãos-novos, anussim) que já vivem no Brasil há 200, 300, 500 anos. No começo do século XX, foram descobertas diversas regiões em Portugal, principalmente nas Beiras (Belmonte) e em Trás os Montes, que mantinham secretamente, a consciência de sua origem judaica, praticando alguns costumes e rituais herdados de antepassados. No ano de 1965, tive oportunidade, guiada por um incansável pesquisador da história marrana, Amílcar Paulo, de conhecer a distante vila de Belmonte e descrevi, em um artigo, minha extraordinária experiência vivida junto ao pequeno grupo marrano (Revista Commentary, New York, maio, 1967, sob o título “The Last Marranos”). Minha visita rapidamente se divulgou em Israel e nos Estados Unidos e jornalistas e cineastas passaram a explorar o assunto que, rapidamente se ampliou, tornando Belmonte um ponto de atração turística, principalmente de judeus.
A existência de um fenômeno semelhante no Brasil não era conhecida. Pesquisas recentes sobre a Inquisição no Brasil revelaram uma realidade surpreendente no nosso país. Após a publicação de trabalhos sobre a Inquisição e os cristãos-novos, famílias inteiras passaram a reconhecer-se como judias. O interesse em retornar às suas origens se ampliou de tal maneira, que hoje encontramos em todas as regiões do Brasil indivíduos e famílias que se consideram descendentes de marranos do passado colonial. Alguns desses cristãos-novos que “retornaram” à religião judaica foram para Israel, onde se reconverteram oficialmente, integrando-se na ortodoxia judaica. Tive oportunidade de conhecer alguns na Universidade Hebraica de Jerusalém, outros nas Yeshivoth, onde vivem hoje plenamente como judeus.
Desde o Amazonas até o rio Grande do Sul existem brasileiros que se consideram descendentes de cristãos-novos portugueses, ou porque seu nome é Carvalho, Pereira ou Oliveira, ou porque seu pai não lhes permitia ir à Igreja, ou porque nunca haviam sido batizados. É interessante que encontrei no Nordeste famílias brasileiras que nunca souberam que seus hábitos e costumes cotidianos eram judaicos.
Como todas as minhas pesquisas e livros publicados tratam da Inquisição portuguesa e dos cristãos-novos, recebo continuamente cartas de brasileiros pedindo-me que os ajude a encontrar suas raízes. Hoje temos trabalhos que comprovam ter o Brasil recebido a maior imigração de cristãos-novos do mundo, o que faz o fenômeno marrano brasileiro atual não surpreender tanto.
São curiosas as confusões que têm surgido ultimamente em torno desse fenômeno. Seitas diversas como “Jews for Jesus”, “Messiânicos” e Evangelistas se identificam, no Brasil e nos Estados Unidos, com o Judaísmo, apesar de existir uma distância enorme que os separa. Procurei já explicar a alguns indivíduos que se chamam “bnei-Hanussim”, que a idéia de Jesus, filho de Deus ou Messias, jamais se poderá conciliar com o monoteísmo judaico.
Existem seitas que estão se proliferando por todo o mundo, mas que nada tem a ver com aqueles brasileiros que conheci recentemente em Campina Grande, na Paraíba, e sobre os quais vou fazer um breve relato.
Participei recentemente, como conferencista convidada, em um evento, organizado por um grupo que se denomina “Amigos da Torá”, inserido num evento maior, chamado Nova Consciência, que reúne todos os anos, em Campina Grande, centenas de indivíduos pertencentes a religiões, seitas e raças diferentes, desde a umbanda, tarot, espíritas, católicos, evangélicos.
Fui acolhida calorosamente por Davi Meneses e por todo grupo dos “bnei-Hanussim”, constituído de uma centena de pessoas. Há quatro anos que esse grupo se reúne em Campina Grande. Tive a oportunidade de encontrar entre os “Amigos da Tora” uma mulher de excepcional talento, uma judia fervorosa, Lourdes Ramalho, historiadora, escritora, teatróloga e famosa também pela sua cozinha de quitutes marranos do sertão. Sua casa, carregada de retratos, imagens, símbolos judaicos, uma típica casa nordestina, e seu fervor como judia, me emocionaram até as lágrimas.
Na sala coberta de azulejos foi servido o almoço, com pratos que eu nunca havia saboreado, mas que todos diziam, serem pratos típicos judaicos, ainda dos tempos coloniais. Reunidos em torno de uma longa mesa, a maioria cristãos novos, a conversa girava sempre em torno da história judaica. Arroz de leite, queijo na manteiga, carne seca, paçoca de carne e ainda a goiabada mole com requeijão quente, tudo feito pelas mãos de Lourdes Ramalho. Na casa de Lourdes conheci, surpresa, diversos marranos de Campina Grande. Gente culta, letrada, escritores, historiadores, poetas, políticos. As histórias de cada um era um romance. E, como escreveu minha filha Ilana, que me acompanhou, “entre mundos europeu e americano, português e brasileiro, católico e judeu, tornam-se todos poetas, sensíveis ao humano e à experiência melancólica e saudosa de algo que parece longínquo e perdido na memória”. Também o famoso filósofo francês Jacques Derrida escreveu, referindo-se aos marranos, “é um tempo que teima em não passar...”.
Ouvi estórias, as mais incríveis, que mostram uma ânsia de retornar e uma vontade de conhecer mais sobre suas origens remotas e desvendar mais sobre seu passado.
Davi Meneses, o “rosh”, “cabeça” e fundador do grupo “Amigos da Torá”, contou sobre sua paixão em retornar ao seio do povo judeu, acrescentando que recebe de braços abertos todos os que vêm a ele e que querem “novamente” ser judeus.
Sábado de manhã, fui assistir à celebração do “shabat”. Em uma pequena sala foi improvisada uma sinagoga. Um armário guardava uma pequenina Torá, muito simples, sem adornos. Um jovem cantava, acompanhado de uma guitarra e um violão. Com uma voz potente e melodiosa, encheu o salão de emoção e entusiasmo. Foi uma verdadeira doação. A sinagoga estava lotada de brasileiros, de cabeça chata, pele queimada do sol, que acompanhavam o canto. No final, se levantaram e em coro, ouvi todos cantarem em hebraico o hino nacional de Israel, “Hatikvah”. Pensei entrar no mistério que envolve toda nossa história. Quando me pediram para falar, pude apenas proferir esta frase: “Vocês são o testemunho vivo da imortalidade de Israel”.
Um garoto, filho de Davi Meneses, retirou do armário a pequena e pobrezinha Torá e leu as escrituras em hebraico, cantando e cumprindo o ritual do shabat. Todos acompanhavam comovidos e compenetrados. Foi um shabat tipicamente brasileiro, mas marrano, naquela sala improvisada, com uma mezuzá na porta, que cada adulto e criança beijava ao entrar, foi um shabat em pleno sertão da Paraíba, onde centenas de pessoas ansiosas buscavam saber quem eram, encontrando nessa busca um novo sentido para a vida. Alguns do grupo já haviam sido circuncidados, cobriam a cabeça com o solidéu bordado ou de cor preta. Todos estudam, rezam e comemoram as festas judaicas.
Davi Meneses morava na casa, onde hoje funciona a sinagoga, mas resolveu transformá-la em uma escola, onde crianças lêem as Escrituras e estudam o idioma hebraico, com um mestre, também “retornado”, que veio de Alagoas. No terreno ao lado da casa, estão construindo a futura sinagoga. Uma mulher me disse que ela faz uma geléia caseira, e cada três potes que vende, entrega o dinheiro para a compra de cimento para a nova sinagoga.
Durante o evento, em diversos dias, vi a sala repleta de nordestinos cristãos-novos, atentos às conferências, sedentos de conhecer sua história peregrina, as violências, o medo, e penetrar no segredo de seu passado.
Perguntas e mais perguntas choviam sobre mim e continuam a me chegar quase diariamente.
Nem sempre posso responder, nem sempre sei o que responder, mas uma coisa é certa: fiz duas descobertas na minha trajetória intelectual, e nas duas descobri um “outro” Brasil, subterrâneo e velado. Na Primeira, nas minhas pesquisas e nos meus estudos, registrei os nomes de descendentes de judeus que ajudaram a construir o Brasil. Sabemos hoje que cristãos-novos foram os primeiros escritores, poetas, médicos, comerciantes, agricultores, políticos e artesãos na sociedade colonial. Na Segunda, presenciando a revivescência, após cinco séculos de vida clandestina, de uma chama ardente que o tempo não consumiu. Encontrei um “outro” Brasil que palpita hoje nas franjas da sociedade brasileira, cuja história ainda tem de ser desvendado por aqueles que a vivem, e escrita pelos antropólogos e historiadores que a ouvirem.
Esses brasileiros que emergem hoje no nordeste, e principalmente em Campina Grande passam para seus filhos, netos e bisnetos, de geração para geração, uma curiosa história. Fiquei surpresa em ver a ansiedade com que cada um queria contar-me essa história. Lourdes Ramalho, Severino Barbosa da Silva Filho, Zilma Ferreira Pinto, herdeiros dos heróicos marranos dos tempos coloniais, resgistraram suas memórias em belos livros, que foram publicados no Nordeste, em reduzidas edições, das quais só recentemente tomei conhecimento.
Campina Grande é uma cidade de aproximadamente 400 mil pessoas e tem sete universidades. Impressionante ouvir aqueles jovens recitarem seus versos, e depois m'os oferecerem por escrito. O grupo “Amigos da Tora” constitui uma verdadeira “comunidade de destino”, sabem que sempre foram discriminados, e carregam um judaísmo recentemente descoberto, mas vivo, e cheio de sentido. Obedecem aos rituais e aos preceitos que ainda lembram, com um forte sentimento de “pertencer”. O que importa mesmo é saber “quem são”, de “onde vieram”, pois sua verdadeira origem e nome se perderam nas brumas do tempo. O que lhes ficou foi a crença num único Deus, criador do Universo, uma única Lei, alguns costumes e uma história comum.
Fisicamente, impressionam. Alguns devem descender de holandeses, são loiros de olhos azuis, e vivem no Cariri. Um rapaz se achegou a mim e me disse: “sou judeu”. E começou a recitar versos de grande beleza e sensibilidade. Vive no longínquo sertão de Boa Vista Santa Rosa, uma vila que visitei um dia, que tem poucas ruas e uma única igreja, e onde, uma mulher me olhou com horror quando lhe perguntei se comia carne de porco. “Meu pai mataria a gente se a gente comia essa carne!”.
O grupo que conheci em Campina Grande é constituído de brasileiros natos há muitas gerações e que eu considero judeus. Alguns me contaram que passaram primeiro pelo evangelismo, outros pelo messianismo, confusos sempre em busca da sua religião antiga, que pouco conheciam. Hoje, se encontraram no judaísmo e têm um líder que lhes ensina a Torá, a língua hebraica e também a história que os trouxe, há cinco séculos, para o Brasil.
Polêmicas e mais polêmicas têm surgido em torno desses brasileiros cristãos-novos que hoje se chamam de judeus. Críticas partem de vários setores do judaísmo, protestos de rabinos, dúvidas dos próprios judeus, que negam a esses brasileiros a liberdade de escolherem o que querem ser.
Milhares de vidas judaicas se perderam através dos tempos em guerras, massacres, assimilação. Somos poucos. Laicos, religiosos ou ateus, mas judeus. No entanto, é preciso ainda convencer a muita gente, que ser judeu não é apenas ser religioso. Judaísmo é mais do que uma religião, é toda uma civilização e principalmente, um estado de alma.
E eu quero deixar uma mensagem, apenas em meu nome,que não vai agradar a muitos: Venham a nós, que pertencemos ao povo judeu, todos aqueles que quiserem ser judeus, laicos, religiosos ou “Amigos da Torà”, mas que querem amar Israel e identificar-se com sua luta. Venham a nós todos aqueles que quiserem trabalhar conosco por um Israel livre e uma pátria segura para os judeus.
Retirado do Site: Notícias da Rua Judaica
Link: http://www.owurman.com/textos/anita.htm
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