Chaverim,

O texto que se segue foi retirado da Revista Eletrônica Novas Raizes Nº2, editada por meu irmão David Salgado para a Shavei Israel. Barros Basto, seu autor, era um cripto judeu português que por anos editou o jornal HaLapid ( A Tocha) e dirigiu a comunidade de Belmonte.

David, há alguns anos vem fazendo um trabalho de pesquisa e seleção dos artigos de Barros Basto editados em seu jornal e alguns ele publica na Novas Raízes.

Este, em particular, que fala da vida e da obra do grande escritor e filósofo sefaradí Shelomo Ben-Gabirol, foi selecionado, certamente, por sua ligação temática com Iamim Noraim (Dias Temíveis - entre Rosh Hashaná e Yom Kipur).

E como além do idioma hebraico, da poesia e de Iamim Noraim que estão se aproximando,   a temática nele é também a filosofia - naturalmente que isso me levou ao nosso mestre Paulo.

Paulo, a dedicatória inclue uma proposta: ao ler o artigo verá as referências filosóficas nele contidas. A proposta, que obviamente puxa, deslavadamente, a sardinha para a minha brasa sefaradí, é que te inspire a nos proporcionar algo de estudo e reflexão sobre alguns destes autores.

Abs.

Elias

 

 

Shelomo Ben-Gabirol - O Rabi Saudade

Por Ben-Rosh- Arthur Carlos de Barros Basto

Nos princípios do século XI da era vulgar o Império Espano-Muçulmano criado pelos Kalifas Ommeijadas fragmentara-se, após a queda desta dinastia, em pequenos estados.

A ambição dos Walis e dos Emires e as suas dissensões foram a causa dessa fragmentação.

Estes novos estados eram inimigos uns dos outros. Nesta época de agitação, em que as conjuras e traições eram frequentes, não raras vezes se via aliarem-se emires e sultões muçulmanos a condes e reis cristãos, e combaterem sob a mesma bandeira, umas vezes contra um emir árabe, outras vezes contra um rei cristão.

Em todos os estados árabes da Península os judeus gozavam dum certo grau de independência, de consideração vivendo num pé de igualdade com os muçulmanos apesar da diversidade de crenças.

Os árabes viam neles aliados seguros em casos de guerra ou de revolta; entre os dominadores e os hebreus travaram-se relações de grande amizade que nunca puderam ser igualadas em estado algum cristão. Nos estados muçulmanos os judeus ocuparam os mais altos cargos civis, militares e diplomáticos; na indústria, no comércio e no meio intelectual tiveram um lugar preponderante.

Os judeus abstinham-se, tanto quanto possível, das questões políticas, e os anais árabes encerram vários testemunhos disso.

Apesar disto não raras vezes vários judeus, pelos cargos, que exerciam eram envolvidos, por lhes ser impossível a neutralidade, em conflitos de ordem política, tão frequentes nesta época, que agitavam cristãos e muçulmanos.

Neste tempo a vida intelectual e religiosa dos judeus era de tal modo intensa em Andaluzia que esta região se tornou o centro do judaísmo. A Espanha judaica recolheu toda a herança da Judéia, de Babilônia e do norte da África,

e fez frutificar belamente este tesouro com grande proveito para as futuras gerações.

Em 1020 uma tribo de berberes, os Sinhadja, sob o comando do seu chefe Maksan, fundou na Andaluzia um reino independente, tendo Granada como capital.

No ano seguinte, 1021 nasceu em Malaga, que pertencia ao reino de Granada, Salomão Ben-Judah Ben-Gabirol conhecido entre os árabes por Abu Ayub Suleyman Ibn Yahia Ibn-Djeribul. Seu pai Judah Ben-Gabirol era natural de Córdova e tinha emigrado para Málaga, com outros judeus por motivo de agitações políticas que perturbaram a sua terra natal.

Acerca da sua família e da sua vida pouco mais se conhece do que as referências que ele próprio dá nas suas obras.

Perdendo em tenra idade seus pais e faltando-lhe assim o carinho maternal, Ben-Gabirol, de temperamento impressionável, torna-se sombrio e melancólico, como ele mesmo o confessa nestes versos:

"No meu peito de jovem bate um coração já velho. O meu corpo caminha na terra e o meu espírito paira nos céus".

Dotado duma sensibilidade quase doentia, sem família e em circunstâncias precárias, recolhe-se cada vez mais em si próprio acompanhando-se com as inspirações da sua imaginação e com as meditações da sua alma. A poesia e a fé ajudadas pela filosofia foram os anjos protetores que o afastaram do desespero. Os seus cantos são repassados de sentimento. Aos 16 anos escrevia uma poesia onde patenteia a sua melancolia:

"… Perante o riso se entristece o meu coração.

A vida parecia-me tão sombria!

O amigo, um jovem de 16 anos deve-se lamentar,

Em vez de se alegrar com a sua mocidade como o lírio sob o orvalho"?

Nas suas poesias, embora ainda de verdes anos, nota-se que ele encontra com facilidade a rima e a expressão, boas ideias e belas imagens. Tem imaginação fecunda, mas não atinge o exagero tão agradável aos poetas árabes.

Sob a sua ardente inspiração rejuvenesce a velha língua santa e em hebraico exprime com facilidade e eloquência o seu modo de pensar e de sentir; maneja essa língua como língua maternal, tornando-a flexível e dando-lhe brilho, elegância e uma harmonia nova.

Até então nenhum poeta hebreu representara a Musa e Ben-Gabirol personificou-a numa pomba de asas douro e voz melodiosa.

O nome de Ben-Gabirol e as suas qualidades chegaram aos ouvidos do hebreu Yekutiel Ben-Hassan, primeiro ministro do rei de Saragoça Yachia Ibn-Modhir. Este ministro distinguia-se pelo talento, pela sabedoria, pelo espírito e pela bondade com que acolhia os desventurados.

Pela mão deste seu correligionário Ben-Gabirol deixou a miséria e entrou na corte de Saragoça.

Yekutiel, cuja influência na corte era enorme, pois sempre ali os seus conselhos eram escutados favoravelmente, era um bom protetor de sábios e poetas judeus. Para Ben-Gabirol foi um pai afetuoso e um dedicado amigo, com a sua benevolência e carinho conseguiu adoçar com bom êxito o espírito inquieto e sombrio do jovem poeta.

Profundamente reconhecido por esta vigilante solicitude, Ben-Gabirol tirou da natureza e da Bíblia as mais belas e grandiosas imagens para em versos magníficos cantar as virtudes e a grandeza da alma do protetor. Estes versos são belos, comoventes mas também exagerados, mas ninguém poderá por esse motivo censurar a um jovem poeta abandonado e cheio de desgostos e exagero dos cantos de gratidão.

A fatalidade, que tanto perseguira o jovem poeta, não o abandonaria para sempre, havia-o apenas perdido de vista, mas logo que o encontrou sob o seu olhar, lançou imediatamente sobre ele as suas garras.

No ano de 1039 rebentou em Saragoça uma revolta de palácio, em que foram assassinados o rei, Yekutiel seu ministro e outros aulicos, apoderando-se do trono Abdallah Ibn-Hakam, primo do antigo rei e seu matador.

A morte do bondoso Yekutiel comoveu todos os seus correligionários peninsulares, tendo alguns escritores judaicos composto elegias honrando a sua memória.

O trágico fim do seu amigo lança Ben-Gabirol no desespero e no meio da sua dor escreve um eloquente poema, repassado de sentimento, no começo do qual exclama:

- Yekutiel, cessou de viver! Os céus podem pois também desaparecer?

O livro Shiré Shelomo (Cantos de Salomão) atribuído a Ben-Gabirol contem elegias sobre a morte de Yekutiel, mas alguns autores duvidam que algumas delas sejam da autoria do poeta malaguenho.

De novo a melancolia se apodera de Ben-Gabirol. Então diz-nos nos seus escritos que à sua volta há o ódio, a inveja e a triação. As suas palavras parecem envoltas num véu fúnebre. A sua dor, que era grande, e maior ainda pela sua fina sensibilidade, não o aniquilou, foi como um cadinho precioso de onde a sua energia saiu retemperada e a sua alma plena de firmeza, reconfortada no próprio sofrimento que dolorosamente a torturava.

São desta época as suas melhores poesias. São calorosas, fortes e de grande largueza de vistas.

Apesar de ter apenas 19 anos de idade versificava com tal facilidade que em 1040 da era vulgar escreveu uma gramática hebraica completa em 400 versos monorímicos, complicados ainda com acrósticos.

No prefácio desta obra Ben-Gabirol exalta a beleza da língua hebraica, que diariamente os anjos empregam para cantarem os louvores do Criador; da língua de que se serviu D-us no Monte Sinai, na qual falaram e escreveram os profetas e os salmistas.

Neste prefácio censura em estilo levemente mordaz a Comunidade Cega (a de Saragoça onde a gramática foi escrita) pela pouca atenção que ela consagra ao estudo e uso da língua sagrada, pois, segundo ele dizia, uns falam o idumeu (a língua romana) e outras a língua de Kedar (o árabe).

É também nesta cidade que Ben-Gabirol compôs em 1045 um tratado de moral. Esta obra é interessante pelo espírito que encerra e pela grande erudição que o autor, ainda tão moço, ali mostra. Ao lado de citações

bíblicas e talmúdicas, ali se encontram máximas de Sócrates, do seu discípulo Platão, de Aristóteles, de Filon, de filósofos árabes e sobretudo dum filósofo e moralista judeu denominado Alkuti. Este escrito, intitulado "Do aperfeiçoamento das faculdades da alma" (Tikun Midot há-Nefesh) expõe um sistema original sobre o temperamento, as paixões e o instinto do homem. Contém também alusões mordazes a certos judeus de Saragoça. Os traços estão tão pouco disfarçados, porque Ben-Gabirol acrescenta: "é inútil aqui eu citar nomes, reconhecer-se-á facilmente as personagens". Ele ataca os orgulhosos, sempre dispostos a humilhar os outros e a vangloriar-se do seu próprio mérito, os hipócritas, que falam sem cessar de amizade e de dedicação e cujo coração transborda de inveja e de ódio. No prefácio, o autor, não dissimula que a sua atitude lhe criará numerosos inimigos, mas o receio do perigo não o devia impedir de cumprir o que ele julgava o seu dever. Que me odeiem, disse, eu não me absterei de fazer o bem.

Pouco tempo depois, as suas previsões realizaram-se: foi expulso de Saragaça.

Partiu de Saragoça amaldiçoando-a e pensando em sair da Península; mas tendo viajado por várias terras, sempre descontente, encontrou depois um asilo e repouso, graças ao gênio tutelar do judeu hispânico Ben-Nagrela, que cantou em versos entusiastas.

Ben-Gabirol foi tão precoce filósofo como poeta. Ainda jovem abordou os problemas mais árduos e mais elevados que podem ocupar o espírito humano: D-us, a criação, a alma, o infinito, tentou resolver estes graves problemas, não para firmar a sua fé, mas para satisfazer o seu espírito de pensador afim de abranger o conjunto do mundo espiritual e material, as suas relações recíprocas e o lugar que ele mesmo ali deve ocupar.

Nas suas obras desenvolveu o seu sistema filosófico-religioso com clareza, achando sempre os termos precisos e a imagem flagrante.

Uma das suas meditações que foram incorporadas na liturgia do rito português para o dia de Yom Kipur pode dar-nos uma idéia do carater geral das suas poesias:

"Olvida o teu desgosto, minha alma agitada! Por que tremes com as dores cá da terra? Brevemente o teu invólucro repousará no túmulo e tudo será esquecido".

"Tem esperança, minha alma! Mas que o pensamento da morte te inspire um salutar temor; ele te salvará no dia em que voltares para junto do teu Criador para receberes a recompensa das tuas obras".

"Por que te perturbas, ó minha alma, por que te agitas por coisas da terra? O sopro vai-se e o corpo fica mudo; e, quando voltares ao teu elemento, nada levas desta vã glória, e tu voas apressadamente, como a ave para o ninho".

"Tu, nobre e leal, que tens a fazer nesta carreira pouco demorada onde o esplendor real se muda em inquietação, onde o que tu julgas salutar nada mais é do que um arco tenso e ameaçador? O que te parece precioso é só ilusão; toda a felicidade mentira, quer venha quer se vá embora; e para outros fica sem proveito para ti, o que com tanto custo adquiriste".

"O homem é uma vinha, a morte é o vinhateiro que a observa e a ameaça a cada instante. Minha alma procura o Criador; o tempo é curto, o fim é longo. Alma rebelde, que te satisfaças com pão seco; esquece estas misérias, não penses senão na morte, só temas o dia do julgamento".

"Treme como uma pomba, pobre aflita, lembra-te sem cessar do repouso celeste. Invoca o céu constantemente, envia a D-us as tuas lágrimas e as tuas orações e cumpre a sua vontade; e os anjos da sua morada te conduzirão ao jardim celeste".

A vaidade das coisas terrenas é o pensamento dominante que se reproduz sobre mil formas na poesia dos judeus. Ben-Gabirol tem sempre os seus olhares voltados para o céu; a terra oferece-lhe poucos encantos, a felicidade fugia-lhe constantemente; a sua triste sorte havia-lhe recusado até as suas puras e legítimas alegrias.

Uma das suas composições poéticas mais notáveis chama-se Keter Malchut (Coroa Real) e é um poema harmonioso em forma de oração, que ele coloca à testa dos seus hinos. No pensamento do poeta, é um hino celebrando o D-us único e as maravilhas da sua criação. Mas não é só do sentimento religioso que ele tira piedosas inspirações; nem também, como em algumas

das suas poesias, uma súbita admiração produzida pelo imponente espetáculo da natureza; o poeta procura levantar, por meio da ciência do seu tempo, o véu que cobre os mistérios da natureza. E esta tarefa é partilhada pelo espírito e pelo coração, pela inteligência e pelo sentimento, pelo conhecimento e pela imaginação. Alternadamente se encontra neste poema os arroubos líricos da inspiração religiosa, o tom didático da ciência refletida, o tom lugubre dum coração oprimido, as piedosas expansões duma alma que tem esperança. É ao mesmo tempo um hino religioso, uma piedosa meditação e um poético resumo da cosmologia peripatético – alexandrina. A religião e a filosofia unem-se para, numa perfeita harmonia, glorificarem o Ser Único.

O principal livro filosófico de Ben-Gabirol é Mekor Chaim (Fonte da Vida) onde expõe o seu sistema.

Ben-Gabirol, segundo a sua maneira de ver filosófica, ensina-nos que no vértice há a Divindade, incognocivel e indefinivel. Do princípio primário emana por meio de radiações toda a série dos seres finitos. Toda a existência, tão bem a inteligível como a sensível, compõe-se de matéria e de forma. Uma só e mesma matéria é espalhada no Universo desde a esfera suprema até a última. Em D-us, é preciso distinguir a essência da propriedade. A propriedade, é a vontade, o verbo atuante, criador, da forma. Ela tira de si própria as formas e realiza-as na matéria que, ela deriva da essência de D-us. No seio do absoluto, a Unidade que abraça e domina todos os contrários, estas duas potências estão em estado de indiferença; no universo temporal e especial pelo contrário, eles diferenciam-se e desenvolvem-se sob o aspecto de matéria e forma.

Ben-Gabirol reconciliou o neoplatonismo com a concepção monoteísta do judaísmo.

Ben-Gabirol foi na Europa o primeiro professor do Neoplatonismo. Seguindo Filon mil anos mais tarde, Ben-Gabirol ocidentalizou a filosofia Greco-árabe e restaurou-a na Europa.

Assim como Filon exerceu uma grande influência nos meios cristãos primitivos, Ben-Gabirol igualmente a exerceu sobre os meios escolásticos medievais. Os primitivos escolásticos cristãos haviam traduzido as obras primas gregas para o siriaco e árabe.

Ben-Gabirol e outros filosofos árabes e judeus trouxeram a nova filosofia Grega ao seio do Cristianismo.

"Fonte da Vida" é um diálogo fisiolófico entre mestre e discípulo, o seu nome deriva de considerar assunto e forma como a base da existência e a fornte da vida de todas as coisas criadas.

Ben-Gabirol foi com o nome Abencebrol, durante quatro séculos pelos cristãos considerado como um filósofo escolástico da sua fé.

Ben-Gabirol influenciou o franciscano Duns Scotus e os dominicanos Albertus Magnus e Tomaz d’Aquino.

Entre Aquino e Ben-Gabirol há muitos pontos de contato; mas o mais zeloso dos campeões da teoria de Ben-Gabirol acerca da universalidade da matéria é Duns Scotus. Muito mais tarde a alma inquieta de Giordano Bruno também se ia deleitar-se na "Fonte da Vida" do Rabbi malaguenho, a quem chama "o mouro Avicebron".

Ben-Gabirol escreveu também um livro de pensamentos morais, a que deu o nome de Escolha de Pérolas, e um tratado sobre a vontade criadora de D-us.

Segundo a crônica de Abraham Zacuto (Sefer Yechassim), Ben-Gabirol morreu em Valência em 1070. Ben-Yachiah narra no seu livro Shelshet haKabalah (Cadeia da Tradição), a lenda da morte do Rabbi Saudade.

Um poeta árabe muçulmano, invejoso do talento de Ben-Gabirol matou-o e enterrou-o debaixo duma figueira do quintal de sua casa. Pouco tempo depois a árvore deu frutos dum tamanho e doçura extraordinárias. Chegado este caso maravilhoso ao conhecimento do Emir, este mandou chamar à sua presença o dono da figueira e de tal forma o interrogou, que o árabe confessou o crime que praticara. E por ordem do Emir o árabe matador pagou com a sua própria vida a vida do canto da Coroa Real (Keter Malchut).

Keter Malchut é um poema em verso rimado; e devido à elevação das idéias nele expostas, é lido pelos israelitas do rito português na noite de Yom Kipur (Dia do Grande Perdão).

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