Por que uma Hagadá? Artigo de Jonathan Safran Foer

Por que editar uma nova Hagadá, o livro que contém a narrativa, as orações, as canções e os provérbios judaicos relativos à libertação no Egito? Porque eu queria dar um passo rumo à conversa que eu mal podia ouvir através da porta fechada da minha ignorância; um passo rumo a um judaísmo de pontos de interrogação ao invés de aspas; rumo à história do meu povo, da minha família e de mim mesmo.

A opinião é do escritor norte-americano Jonathan Safran Foer, autor de Extremamente Alto & Incrivelmente Perto (Rocco, 2006) e Comer Animais (Rocco, 2010). O artigo foi publicado no jornal The New York Times e republicado pelo jornal La Repubblica, 07-04-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Eu passei boa parte dos últimos anos trabalhando em uma nova Hagadá – o livro-guia para as orações, rituais e canções do Sêder [ceia cerimonial judaica de Páscoa] – e muitas vezes me perguntam por que eu quero tirar tempo dos meus próprios escritos para investir em tal projeto.

Toda a minha vida, meus pais hospedaram o Sêder na primeira noite da Páscoa. Como a nossa família se expandiu e como a nossa definição de família também se expandiu, mudamos o jantar ritual da nossa sala de jantar para o nosso porão mais espaçoso e mofado. Uma mesa se tornou muitas superfícies em formato de mesa encostadas desajeitadamente. Eu sempre sabia que a Páscoa estava se aproximando quando meu pai me pedia para tirar a rede da mesa de pingue-pongue. Todas as mesas eram cobertas de uma vez por toalhas iguais e manchadas.

Em cada assento estava uma Hagadá que meus pais haviam montado fotocopiando passagens favoritas de outras Hagadás e, quando os Foers finalmente tiveram acesso à Internet, imprimindo de fontes online. Por que esta noite é diferente de todas os outras? Porque nessa noite o copyright não se aplica.

Na ausência de uma pátria estável, os judeus fizeram o seu lar nos livros, e a Hagadá – cujo núcleo é a releitura do Êxodo do Egito – foi traduzido de forma mais ampla e revisto com mais frequência do que qualquer outro livro judaico. Por toda a parte em que os judeus vagavam, havia Hagadás – da Hagadá de Sarajevo do século XIV (que se afirma que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial debaixo do piso de uma mesquita e ao cerco de Sarajevo em um cofre de banco), às Hagadás feitos por judeus etíopes levados de avião para Israel durante a Operação Moisés.

Mas das 7.000 versões conhecidas, sem falar das inúmeras edições caseiras, há uma que é mais usada do que todas as outras juntas. Desde 1932, a Maxwell House Haggadah – como na marca de café – tem dominado o ritual judaico norte-americano.

Depois de confirmar em 1920 que o grão de café não é um legume, mas sim uma fruta, e portanto kosher para a Páscoa, a Maxwell House encarregou a agência de publicidade Joseph Jacobs para tornar o café, ao invés do chá, na bebida de escolha depois dos Sêderes. Se isso soa maluco, observe que o café Maxwell House sempre foi particularmente popular nas casas judaicas.

A Hagadá resultante é uma das promoções de vendas mais prolongadas da história da publicidade. Ao menos 50 milhões de cópias foram distribuídas gratuitamente nos supermercados e são exatamente tão inspiradoras quanto você pode imaginar que elas sejam.

E, no entanto, muitas pessoas sentem carinho pela Hagadá da Maxwell House, pelo conforto vertiginoso que ela evoca. Nós gostamos dele assim como gostamos de piadas de judeus. A versão da Maxwell House é, em si mesma, uma espécie de piada de judeu – tente mencioná-la a um grupo de judeus sem arrancar risadas. Além disso, ela é gratuita e, assim como a bebida cafeinada de baixo custo que ela promove, satisfaz uma necessidade mais básica.

O mais lendário de todos os Sêderes – que é, em um giro pós-moderno, recontado no própria Hagadá – ocorreu por volta do início do segundo século, em Bnei Brak, entre os maiores estudiosos da antiguidade judaica. Ele terminou prematuramente quando os estudantes se intrometeram para anunciar que era a hora das preces matinais. Mesmo que eles tenham lido a Hagadá do começo ao fim, cumprindo cada ritual e cantando cada verso de cada canção, eles devem ter ter gasto grande parte do seu tempo fazendo outras coisas: extrapolando, dissecando, discutindo. A história do Êxodo não espera ser apenas recitada, mas também enfrentada.

Se a Hagadá da Maxwell House nunca chegou a atender às demandas intelectuais e espirituais do Sêder, ela serviu adequadamente aos judeus alfabetizados ritualisticamente de uma ou duas gerações atrás. Mas os atores não sabem mais o roteiro. Em mais uma espécie de êxodo, os judeus norte-americanos se mudaram: da pobreza para a riqueza, da tradição para a modernidade, do conhecimento de uma história compartilhada para a perda da memória coletiva.

Nossos avós eram imigrantes na América, mas nativos ao judaísmo. Nós somos o oposto: fluentes em American Idol [versão norte-americana do programa Ídolos], mas analfabetos em heróis judaicos. E assim agimos como os imigrantes em torno do judaísmo: cautelosos, o rejeitosos, autoconscientes e fingindo (ou alcançando) indiferença. No país estrangeiro da nossa fé, a nossa necessidade de um bom livro-guia é urgente.

Embora signifique "a narração", a Hagadá não conta uma história meramente: é o nosso livro de memória viva. Não é suficiente recontar a história: devemos dar o salto mais radical da empatia por ele. "Em cada geração, uma pessoa é obrigada a ver a si mesma como se fosse aquela que saiu do Egito", diz a Hagadá. Esse salto sempre tem sido um desafio intimidatório, mas é fecundo para a minha geração de uma forma que não era para os assimiladores desesperados das gerações anteriores – agora, além de uma falta de educação e de conhecimento do aprendizado judaico, há o também a mácula de complacência coletiva.

A integração dos judeus e dos temas judaicos em nossa cultura pop é tão prevalecente que nos tornamos intoxicados pelas falsas imagens de nós mesmos. Eu também amo Seinfeld [série da TV dos EUA], mas não há um problema quando o programa é citado como uma referência para a própria identidade judaica? Para muitos de nós, ser judeu se tornou, acima de tudo, engraçado. Tudo o que deixado no vazio de fluência e de profundidade é riso.

Há cerca de cinco anos, eu notei um desejo em mim. Talvez ele tenha sido inspirado pela paternidade ou simplesmente por envelhecer. Apesar de ter sido criado em um lar judeu intelectual e autoconsciente, eu não sabia quase nada sobre o que supostamente era o meu próprio sistema de crença.

E, pior, eu me sentia satisfeito com o pouco que eu sabia. Às vezes, eu pensava na minha postura como uma rejeição, mas você não pode rejeitar algo que você não entende e que nunca foi seu. Às vezes, eu pensava nisso como uma conquista, mas não há nenhuma conquista na perda passiva.

Por que eu tirei tempo dos meus próprios escritos para editar uma nova Hagadá? Porque eu queria dar um passo rumo à conversa que eu mal podia mal ouvir através da porta fechada da minha ignorância; um passo rumo a um judaísmo de pontos de interrogação ao invés de aspas; rumo à história do meu povo, da minha família e de mim mesmo.

Assim como toda criança, meu filho de 6 anos é um grande amante de histórias – mitos nórdicos, Roald Dahl, contos recontados da minha própria infância –, mas nada mais do que os da Bíblia. Assim, entre o banho e a cama, minha esposa e eu geralmente lemos para ele as versões infantis do Antigo Testamento. Ele adora ouvir essas histórias, porque elas são as maiores histórias já contadas. Nós adoramos contá-las por uma razão diferente.

Nós o ajudamos a aprender a dormir durante a noite, a usar um garfo, a ler, a andar de bicicleta, a dizer tchau para nós. Mas não há nenhuma lição mais significativa do que a que nunca se aprende, mas sempre se estuda, o projeto coletivo mais nobre de todos, tomado emprestado de uma geração e emprestado para a próxima: como buscar a si mesmo.

Há algumas noites, depois de ouvir sobre a morte de Moisés pela enésima vez – como ele deu seus últimos suspiros contemplando uma terra prometida em que ele nunca iria entrar –, meu filho encostou a sua cabeça ainda molhada no meu ombro.

"Há algo de errado?", eu perguntei, fechando o livro.

Ele balançou a cabeça.

"Você tem certeza?"

Sem olhar para cima, ele perguntou se Moisés era uma pessoa real.

"Eu não sei", eu lhe disse, "mas estamos unidos a ele".

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