Papai,
por que esta noite é diferente de todas as noites,
em que com mãos estendidas,
como se nos protegesse,
a mamãe abençoa sobre nossa mesa,
com os olhos acesos de um par de velas,
coloca no centro uma grande taça de vinho,
reparte pão ázimo com o braço comovido
e a casa inteira está em festa?
—Quero que saibas, filho
que até o dia de ontem, há quarenta séculos,
fomos escravos,
nós, tua mãe, tua irmã, tu e eu,
talvez sob outros nomes, por trás de outros rostos,
mas nós mesmos fomos, até ontem, escravos no Egito.
E hoje chegou a hora em que decidimos nos erguer
e tomar a liberdade.
E nessas luminárias que ardem sobre nossa mesa
tua mãe abençoa o fogo interior que tem mais poder do que a força.
E nos serve pão sem fermento, amassado na pressa
de deixar a abundância do país dos escravos
em troca do deserto fértil, de sermos nós mesmos.
E o faz comovida porque somos
a última geração que experimentou a escravidão
e a primeira que vislumbra a liberdade.
E aquele grande copo de vinho
espera o profeta que vive em cada um
e que há de nos libertar,
a nós, e a todos os homens do mundo,
da submissão, da miséria, do ódio e da loucura;
que nos libertará por nossas mãos
quando o quisermos de verdade
ainda que seja hoje mesmo.
Somos parte de um povo inquieto, em movimento
disperso por entre as fronteiras de cinco continentes
há muitos séculos.
Muitos povos evaporados
perderam sua memória.
Mas, estranhamente, por cima de montanhas e oceanos
em dois milênios de exílio,
sempre houve judeus
que mantiveram acordadas as suas raízes
e não entregaram suas entranhas ao esquecimento.
Pensando em idiomas diferentes
e percorrendo diferentes destinos,
continuávamos sendo um único povo
habitantes de um território metafísico,
de uma Jerusalém plantada mais além dos caminhos.
Cada festividade era uma carga de nostalgia
que crescia de pais a filhos
implicando-lhes
pessoalmente na vasta memória
do povo judeu.
Dentro de cada um voltava Abraão
a despedaçar outra vez os ídolos
e cada um de novo optava
pelo difícil pão da autenticidade
como que voltando a sair do Egito
deixando atrás a facilidade de ser como o vizinho.
Por isso é necessário que conheças tua história:
para que possas escolher ser tu mesmo.
—Mas não quero, papai
viver desarraigado e dividido,
condenado a ser diferente.
—A opção definitiva há de ser tua,
mas, será que por acaso tenho direito filho,
de ocultar os espelhos
para que não te descubras a ti mesmo?
de escamotear a história de tua origem?
E a ignorância é por acaso garantia de firmeza?
—Ontem... Há quarenta séculos
Papai, o que tem isso a ver hoje, aqui comigo?
E por que me diferencio de meus amigos?
Por que comemoro histórias que eles desconhecem,
e quando termino minhas horas de aula
aprendo a geografia de um país distante;
que sucedeu e sucede com um povo abstrato
e falo uma língua que a rua não fala?
—Quero que tu mesmo te conheças, filho.
Que conheças a profunda raiz que amamenta o teu sangue.
Quero te enriquecer com o teu próprio passado
contar-te tua própria história,
uma história ardente, na qual, de muitos modos
repetimos o gesto de nos libertar.
—Papai, o que significa ser judeu?
—As crianças que nascem na França
são sem dúvida francesas.
As que nascem na Itália
também não questionam porque são italianas.
E os israelenses, são simplesmente israelenses.
A condição judaica não vem subentendida
nem figura inscrita nos papéis;
não se nasce judeu de imprevisto;
não é um parto simples:
trevas por um lado, uma porta que se cruza,
luz sobre o rosto de repente.
Vai-se nascendo aos poucos,
descobrindo lentamente, dentro de si,
séculos de dor e alegria e combates reprimidos;
milênios de grandeza e poesia
e povo e amor e fé no homem
e firmeza e quedas e voltar a começar,
como judeu,
não como uma sombra nascida casualmente
num canto qualquer da terra.
Mais que dividir-te, eu te multiplico,
vou te fazer conhecer o que de qualquer maneira levas dentro,
algo que se não aprenderes a usar vitalmente,
pode, então sim, apodrecer,
o amor tornar-se um engano,
uma maldição, da qual nunca poderás desprender-te, filho.
Não. Eu não tenho todas as respostas na mão,
mas para saber quem sou,
não preciso perguntar a ninguém,
e nunca me perdoaria burlar-te, não te dizendo.
—Mas, e por que Israel no futuro
para viver a nossa vida?
Por acaso, você não ama esta país?
—É uma coisa que minhas entranhas teriam que te explicar.
Aqui sou um judeu que suspira por sua terra
e em Israel vou me tornar um brasileiro nostálgico,
pendente do que acontece em São Paulo.
Brasil e Israel são dois amores entre os quais oscilo
e tanto me custa optar que faz anos que venho iludindo me definir,
mas suspeito que a vida tem um limite,
e , além disso, quantos anos pode se viver
a cavalo entre dois países?
Claro que há muito por fazer aqui como brasileiro.
E há o futebol, a rua, as pessoas, os amigos
mas existe um Israel vivente que considero próprio
e uma Jerusalém com a qual tenho
marcada uma entrevista
há séculos ...
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