Há alguns meses, o Ministério da Saúde israelense concedeu a Channa Maayan, uma professora de pediatria da Universidade Hebraica, um prêmio por um livro que ela foi coautora sobre doenças hereditárias comuns entre os judeus.
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Traditional roupa usado por ultraortodoxos dispostas perto de uma sinagoga em Jerusalém
Na cerimônia, Maayan usou uma blusa de manga comprida e uma saia longa, em respeito ao ministro interino de Saúde, Yakov Litzman, que é ultraortodoxo, e outros religiosos presentes. Mas isso não foi suficiente.
Além de Maayan e seu marido terem de se sentar separadamente, porque homens e mulheres foram segregados no evento, ela foi instruída que um colega do sexo masculino teria de aceitar o prêmio em seu lugar, porque as mulheres não poderiam subir ao palco.
Apesar de chocada de isso ter acontecido em uma cerimônia do governo, Maayan não falou nada. Mas outros não ficaram quietos e sua história está entrando na lista de muitas outras que vêm provocando raiva entre os seculares e que estão dando início a uma batalha pelo controle do espaço público de Israel, travada entre os ultra religiosos e todos os demais.
Em uma época em que não há progresso na questão da palestina, os israelenses estão se voltando para questões de seu próprio país e têm descoberto que um assunto que até então tinham negligenciado – a posição dos judeus ultraortodoxos – aos poucos tem dado sinais de uma crise.
Seu principal foco é as mulheres.
"Assim como o nacionalismo e o socialismo secular apresentaram desafios para a instituição religiosa de um século atrás, hoje a questão é o feminismo", disse Moshe Halbertal, professor de filosofia judaica da Universidade Hebraica. "Esse é um imenso desafio ideológico e moral que toca na essência da vida e, da mesma maneira que está afetando o mundo islâmico, é a principal questão que tira o sono dos rabinos."
A lista de controvérsias cresce semanalmente: os organizadores de uma conferência sobre a saúde das mulheres e a lei judaica na semana passada impediram as mulheres de subir ao palco para falar, fazendo com que pelo menos oito palestrantes cancelassem sua participação no evento; homens ultra-ortodoxos cuspiram em uma menina de 8 anos de idade, pois consideravam que ela estava vestida sem recato; o rabino-chefe da força aérea renunciou a seu posto porque o Exército se recusou a liberar soldados ultraortodoxos de participar de eventos onde cantoras fossem aparecer em público; manifestantes representaram o comandante da polícia de Jerusalém como Hitler em cartazes porque ele instruiu as linhas de transporte público de uso unissex a passar por bairros ultraortodoxos; vândalos apagaram os rostos das mulheres que apareciam em propagandas de outdoor em Jerusalém.
O discurso público em Israel está dominado por uma nova frase em hebraico: "hadarat nashim" ou “exclusão das mulheres”. A frase está em toda a parte nas últimas semanas, da mesma maneira que a frase "chauvinismo masculino" esteve quando surgiu há décadas nos Estados Unidos.
Tudo isso parece anômalo para a maioria das pessoas em um país onde cinco jovens mulheres foram recentemente formadas com prestígio no curso de pilotos da Força Aérea e uma mulher preside o Supremo Tribunal Federal. Mas cada lado nessa disputa está travando uma vigorosa campanha pública.
O Fundo Nova Israel, que defende a igualdade e a democracia, tem organizado eventos e concertos com mulheres de Jerusalém e chegou a colocar cartazes dos rostos das mulheres com o lema: "As mulheres devem ser vistas e ouvidas." A Associação Médica de Israel afirmou na semana passada que seus membros irão boicotar eventos que excluam as mulheres de falar no seu palco principal.
Autoridades religiosas disseram que grupos liberais estão tentando iniciar uma guerra de ódio contra os devotos que querem apenas viver em paz.
Rabbi Dror Moshe Cassouto, ultraortodoxo que defende seu modo de vida, com seus filhos em Jerusalém
Esses religiosos, os ultraortodoxos que se vestem de preto, são conhecidos em Israel como Haredim, ou seja, aqueles que tremem diante de Deus. Entre os Haredim, há vários grupos distintos, com abordagens diferentes da liturgia, bem como da maneira de cumprir as regras de vestimenta, o estilo de seus chapéus, barba e a cobertura do cabelo das mulheres. Entre eles estão o Hasidim, de origem europeia, assim como os que vem de países do Oriente Médio que são representados pelo partido político Shas.
Como grupo, os ultraortodoxos são, na melhor das hipóteses, ambivalentes sobre o Estado de Israel, que consideram insuficientemente religioso e prematuro em sua fundação, pois o Messias ainda não chegou. Ao longo das décadas, os Haredins têm se manifestado contra práticas estatais como permitir que ônibus operem aos sábados - a maioria acredita que o Estado não sobreviverá.
O sentimento era mútuo. As comunidades originais dos Haredim na Europa foram dizimadas no Holocausto e quando o primeiro-ministro que fundou Israel, David Ben-Gurion, ofereceu subsídios e isenções do Exército aos poucos que habitavam em Israel na época, ele pensou que estava oferencendo ao grupo um funeral digno.
"A maioria dos israelenses na época, achava que os Haredim iriam acabar na próxima geração", disse Jonathan Rosenblum, um escritor Haredim.
Em vez disso, eles se multiplicaram, juntaram-se a coalizões governamentais e ganharam subsídios e isenções para crianças, moradia e estudo do Torá.
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Eles chegam a quase 1 milhão, uma comunidade em sua maioria pobre mesmo em um país com uma boa condição financeira e com a população de 7,8 milhões de habitantes. Eles geralmente têm se mantido fora da política israelense, muitas vezes mantendo-se neutros em relação até mesmo da questão da Palestina e concentrando suas negociações mais nas necessidades materiais e espirituais dos seus colegas. Nos últimos anos, eles têm estado mais inclinados a adotar uma política de direita.
Em outras palavras, ao mesmo tempo que rejeitam o Estado, os ultraortodoxos sobrevivem fazendo acordos com ele. Por outro lado, ao mesmo tempo que rejeitam o grupo, os governos israelenses – sejam eles geridos pela esquerda ou pela direita - têm sobrevivido por meio da negociação de subsídios a ele para conquistar seus votos. Agora cada um tem de conviver com o outro, e o atrito resultante disso é difícil de ser contido.
"A coexistência entre os dois está por um fio", disse Arye Carmon, presidente do Instituto Democrático de Israel, uma organização de pesquisa de Jerusalém. "Isso é muito perigoso".
Carmon comparou os judeus ultra-religiosos de Israel aos islâmicos do mundo árabe, dizendo que há uma dinâmica similar em jogo no Egito, com crescentes tensões entre as forças seculares que lideraram a revolução e os partidos islâmicos que estão agora cada vez mais poderosos.
"Hoje não existe uma cidade sem uma comunidade Haredim", disse o rabino Abraham Israel Gellis, um Haredim de Jerusalém da 10ª geração sentado diante de sua casa que tem vista para uma yeshiva enorme. "Tenho 38 netos e eles vivem em diferentes partes do país."
Mas enquanto a comunidade ganhou maior poder econômico - há um crescente mercado que atende as suas necessidades - o que está faltando é produtividade econômica. A comunidade coloca o estudo do Torá acima de todos os outros valores e tem trabalhado arduamente para tornar possível que os homens se dediquem apenas a isso em vez de trabalhar. Embora as mulheres trabalhem, há uma taxa de 60% de desemprego entre os homens, que geralmente também não servem o Exército.
Essa combinação – de aceitar subsídios do governo, recusar o serviço militar, não manter um emprego e ao mesmo tempo ter de 6 a 8 filhos por família - que é inquietante para muitos israelenses, especialmente quando os cidadãos se sentem inseguros economicamente e maltratados pelo governo.
"A questão Haredim é algo que está ganhando força, como lava, e que poderá eventualmente explodir", disse Shelly Yacimovich, membro do Parlamento israelense e líder do Partido Trabalhista. "É por isso que ela deve ser tratada com sabedoria, ajudando-os a participar da sociedade moderna através do trabalho."
Crianças ultraortodoxas brincam em Jerusalém
Embora a mudança já tenha começado - milhares de homens Haredim estão aprendendo profissões, conseguindo mais empregos e um pequeno número se juntou ao Exército de Israel - a comunidade está em crise.
Muitos líderes ultraortodoxos se sentem ameaçados pela integração de alguns de seus seguidores à sociedade secular e eles estão desesperadamente tentando se manter no poder.
"Temos que ganhar a vida", disse o rabino Shmuel Pappenheim, um líder reformista Haredim da cidade de Beit Shemesh. “Somos um milhão de pessoas com um milhão de problemas. Os rabinos podem gritar mil vezes contra isso, mas isso não vai ajudá-los. E assim temos os extremistas - de ambos os lados".
Dan Ben-David, diretor executivo do Centro de Estudos Sociais Taub, em Israel, disse que as taxas de fertilidade na comunidade Haredim tornaram-se uma questão especialmente grave - esses judeus formam o único grupo em Israel que gera mais filhos hoje do que há 30 anos. "Eles representam mais de 20% de todas as crianças nas escolas primárias", disse. "Em 20 anos, existe um risco de termos uma população de terceiro mundo que não conseguirá sustentar uma economia e um Exército de primeiro mundo.”
Ben-David acrescentou que o que as crianças aprendem no sistema escolar ultra-ortodoxo - em grande parte não regulamentado pelo Estado, como resultado de acordos políticos - é inadequado para o século 21, por isso mesmo aqueles que desejam trabalhar estão encontrando dificuldades para encontrar empregos.
"Suas escolas não lhes forma para trabalhar em uma economia moderna, tampouco oferece alguma formação em direitos civis ou humanos ou entendimento da democracia", disse Ben-David. "Eles nem sabem do que estamos falando – ou o que nós esperamos deles - quando falamos de descriminação contra as mulheres".
A comunidade Haredim acha que isso é um mal entendido a respeito de seus pontos de vista.
O rabino Moshe Cassouto Dror, um Hasid de 33 anos de idade, vive com sua esposa e quatro filhos no bairro de Mea Shearim, em Jerusalém, um dos centros da vida Haredim em Israel. Ele nunca olha diretamente para uma mulher que não seja sua esposa e acredita que homens e mulheres têm papéis na natureza que na sociedade moderna foram revertidos "porque vivemos na escuridão".
Seu objetivo é espalhar a luz. "Deus vela sobre a nação judaica desde que ela continue estudando a Torá", disse.
Ainda assim, cuspir em uma criança e chamar alguém de nazista são coisas que o deixam horrorizado. Ele diz que esses radicais têm prejudicado a imagem dos Haredim.
Quando questionado sobre os problemas recentes, ele sacudiu a cabeça e disse: "Um tolo joga uma pedra em um poço e mil sábios não conseguem removê-la."
Por Ethan Bronner e Isabel Kershner
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