No dia 2 de março de 2014, houve uma intensa mobilização ultraortodoxa em Jerusalém que paralisou a cidade na manifestação contra a decisão do governo que obriga jovens estudantes de yeshivot (seminários rabínicos) a cumprirem o seu dever no serviço militar obrigatório de forma semelhante a toda sociedade.

Conexao Israel traduz um artigo publicado pelo jornal israelense Haaretz no dia 12 de julho de 2012 . Escrito pelo colunista Shahar Ilan, membro fundador e ativista da ONG Hiddush que defende a liberdade religiosa e a igualdade na sociedade israelense. Este texto nos relembra a importância de não nos rendermos a uma linha judaica que mente ao se auto-denominar  ”autoridade moral” para definir o que é “judaísmo” e demonstra os perigos de se permitir o uso das ferramentas democráticas por um grupo, facção ou partido político que não possui valores de respeito e tolerância com o diferente.

O autor João Koatz Miragaya esteve presente na manifestação e publicará na próxima quarta um relato sobre o que viu e ouviu  na manifestação em Jerusalém.

 



O mito da autoridade moral ultraortodoxa

Uma das principais fontes de poder que permite o comportamento extremista de judeus ultraortodoxos é a opinião generalizada do público israelense,  que admite que o seu modo de vida represente o judaísmo tradicional e que, quando se trata de judaísmo, quanto mais radical mais autêntico ele se torna. Este é um dos mitos infundados mais fortemente arraigados na sociedade israelense, e na medida em que o público israelense respeita esta tradição, os representantes da camada ultraortodoxa a utilizam em seu benefício, usando esta vantagem em suas lutas políticas, incluindo a manifestação em oposição a obrigatoriedade do serviço militar por estudantes de yeshivot (seminários rabínicos).

Representantes do partido ultraortodoxo judeu Achdut Hatorá declaram descaradamente que o estudo da Torá deve ser a base do estilo de vida tradicional judaico, na esperança de conceder legitimidade social para aqueles que fogem tanto do serviço militar como do trabalho remunerado. No entanto, esta alegação não tem fundamento.

Na prática, o conceito de um “avrech” (estudante de yeshivá casado) representa mais a exceção do que a regra na Diáspora. Isto tornou-se central no modo de vida ultraortodoxo apenas em Israel, como resultado de vantagens de bem estar social fornecidas pelo Estado.

Na sociedade judaica tradicional, os chefes de família procuravam trabalhar e sustentar suas famílias, da melhor maneira que podiam. Em Israel, um novo “código” foi criado segundo o qual o emprego remunerado passou a ser um sinal de status social inferior.

O exemplo mais absurdo dessa nova forma extrema do judaísmo é o alimento classificado como “glatt kosher”. A palavra em hebraico kasher indica aquilo que é permitido, e o extremismo ultraortodoxo criou um novo padrão segundo o qual apenas o que é “glatt kosher” está permitido para consumo. O resultado desta mudança é que a comida kasher regular se tornou para todos os efeitos, não kasher.

Não apenas a kashrut foi redefinida. Em tempos idos, era esperado que as mulheres se vestissem de forma modesta. Esta modéstia era necessária, entre outras razões, para que os homens e mulheres participassem em conjunto de todos aspectos da vida social. A única separação dos gêneros ocorria na sinagoga.

Isto já não é verdade. O conceito tradicional de modéstia foi substituído pela segregação de gênero e a cobertura integral de todo o corpo feminino. Homens ultraortodoxos não estão mais dispostos a sentar-se nos mesmos ônibus ou usar as mesmas calçadas que as mulheres. Até mesmo observar tornozelos de uma mulher passou a ser um comportamento inadequado. Este ponto de vista distorcido é apresentado como a pura personificação do judaísmo tradicional.

Se alguma coisa pode ser considerada clara no judaísmo é a questão da conversão. A partir do momento em que alguém se converte, esta pessoa passa a ser considerada verdadeiramente judia. Mas a corte rabínica do rabino Avraham Sherman decidiu invalidar milhares de conversões. E não estamos falando, Deus me perdoe, de conversões realizadas por rabinos reformistas ou conservadores, mas aquelas realizadas sob os auspícios do rabino Haim Druckman, então o Chefe da Autoridade de Conversão do Estado e um rabino ortodoxo não menos destacado do que Sherman.

Uma grande parte do público ultraortodoxo continua caminhando cada vez mais para uma posição extrema, até o ponto em que assemelha-se a nada menos do que um culto Talibã.

Esse extremismo encontrou partidários dentro da comunidade hassídica, que é responsável pela recente praga da segregação de gênero, e do ramo lituano do judaísmo ultraortodoxo, que está por trás da recente anulação de milhares de conversões ao judaísmo. Apesar de nossos antepassados ​​ilustres jamais terem imaginado que essas inovações religiosas fossem possíveis, isto não impede estes ultraortodoxos de alegar que o judaísmo que praticam representa o caminho correto e a verdade.

A corrente radical do judaísmo ortodoxo é um movimento de reforma, mas as suas “reformas” não são progressivas ou moderadas. Ao contrário, estão criando proibições e interdições. Além disso, o judaísmo ultraortodoxo objetiva apresentar-se como o verdadeiro representante de um judaísmo autêntico, mesmo depois de excomungar e perseguir o parlamentar e rabino Chaim Amsellem, que em palavras e ações procura seguir o verdadeiro caminho do judaísmo tradicional.

Chegou a hora de quebrar o mito enganador que determina que o estilo de vida de “ser tão extremo quanto possível” ou “ver o mundo através de seu próprio extremismo” é o caminho do Judaísmo.

É essencial esclarecer ao público que esta abordagem não tem nada a ver com o judaísmo tradicional de outrora, mas na verdade, é uma imitação distorcida dele. A este tipo de extremismo não devemos nos render.

 

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