O Islã está vencendo as eleições de vários países, pois é o canal mais profundo no qual o descontentamento árabe pode desaguar
O último turno das eleições parlamentares no Egito terminará na próxima semana, mas o resultado já está se tornando claro. A Irmandade Muçulmana provavelmente conquistará a metade das cadeiras da Câmara Baixa do Parlamento. Islâmicos mais extremistas ocuparão um quarto. Os partidos seculares ficarão com 25% dos assentos. O islamismo não foi a causa da Primavera Árabe. Os governos autoritários da região simplesmente não cumpriram suas promessas. Apesar de o autoritarismo árabe ter se saído bem dos anos 50 aos 80, as economias da região acabaram estagnadas. As dívidas se acumularam e cresceram e populações instruídas viram as sociedades igualitárias prósperas que lhes foram prometidas se esvanecendo no horizonte, atingindo todos, secularistas e islâmicos. As últimas semanas confirmaram que as consequências de uma revolução nem sempre acompanham suas causas. Em vez de levar revolucionários seculares ao poder, na Primavera Árabe estão desabrochando flores de um matiz decididamente islâmico. Mais inquietante para muitos, os islâmicos estão vencendo de modo limpo e imparcial: os partidos religiosos ocuparam o primeiro lugar em eleições livres e abertas na Tunísia, Marrocos e Egito. Então, por que tantos árabes estão votando em partidos que parecem politicamente retrógrados para os ocidentais? A própria história do Ocidente fornece uma resposta. De 1829 a 1850, a Europa assemelhava-se ao mundo árabe de hoje sob dois aspectos: ambas as regiões viveram rebeliões históricas e aparentemente contagiosas que se alastraram de país para país. E, em ambos os casos, pessoas frustradas em muitas nações, com pouca coisa em comum, uniram-se em torno de uma única ideologia – não criada por elas, mas herdada de gerações anteriores mais radicais. Na Europa do século 19, essa ideologia foi o liberalismo. Ele surgiu no final do século 18 a partir das revoluções americana, holandesa, polonesa e, especialmente, francesa. Enquanto a principal divisão política na sociedade era entre monarcas e aristocratas, as revoluções traçaram uma nova linha entre o “antigo regime” da monarquia, nobreza e Igreja e as novas classes dos comerciantes e pequenos proprietários de terras. Para esse último grupo, foi o antigo regime que ocasionou os impostos predatórios, a bancarrota dos títulos do governo, a corrupção, guerras perpétuas e outras patologias que arruinaram suas sociedades. A solução liberal era estender os direitos e as liberdades para além da aristocracia, que herdou tais direitos e liberdades na Idade Média. Suprimir o liberalismo tornou-se o principal objetivo de regimes absolutistas na Áustria, Rússia e Prússia, depois que ajudaram a derrotar a França em 1815. O príncipe Klemens von Metternich, o poderoso chanceler austríaco, declarou que os “princípios ingleses” de liberdade eram estranhos ao continente. Mas grupos de liberais – os “carbonari” italianos, os franco-maçons, os radicais ingleses – continuaram a operar clandestinamente, comunicando-se no interior das sociedades e oferecendo uma linguagem comum para os dissidentes. Isso contribuiu para estabelecer-se as bases ideológicas da revolução liberal da Espanha, em 1820. A partir daí, as revoltas propagaram-se para Portugal, os Estados italianos de Nápoles e Piemonte, e a Grécia. Notícias da revolução espanhola impulsionaram a adoção de Constituições liberais nos Estados nascentes da Colômbia, Argentina, Uruguai, Peru e México. Apesar das queixas variadas, em cada caso o liberalismo serviu como ponto de convergência e programa político com o qual os descontentes conseguiam concordar. Insurreição. Uma década mais tarde, em julho de 1836, uma revolução derrubou a monarquia conservadora da França. A insurreição alastrou-se para Bélgica, Suíça, diversos Estados italianos e germânicos e a Polônia. Mais uma vez, as queixas diversas foram canalizadas para uma rejeição geral do antigo regime e a adoção do liberalismo. As revoluções de 1848 foram mais numerosas e consequentes, mas surpreendentemente similares às primeiras. Rebeldes com pouca coisa em comum – trabalhadores de fábricas em Paris, camponeses na Irlanda, artesãos em Viena – seguiram um roteiro que foi escrito nos anos 1790 e foi ensaiado continuamente nos anos seguintes em todo o continente. Hoje, árabes das zonas rural e urbana com culturas e histórias amplamente diversas mostram que compartilham uma profunda frustração com os déspotas e exigem dignidade. Muitos, moderados ou radicais, vivendo numa monarquia ou numa república, compartilham uma linguagem comum de dissidência: o islamismo. O Islã político, especialmente a versão rigorosa praticada pelos salafistas no Egito, está prosperando porque se inspirou nos princípios ideológicos estabelecidos muito antes de as revoltas começarem. Inventado nos anos 20 pela Irmandade Muçulmana, mantido vivo por seus muitos afiliados e ramificações, impulsionado pelos fracassos do nasserismo e do baathismo, pretensamente financiado por dinheiro saudita e do Catar, e inspirado no exemplo desafiador do Irã revolucionário, o islamismo durante anos ofereceu um relato coerente sobre os males das sociedades muçulmanas e qual seria a cura. Longe de tornar o islamismo desnecessário, como alguns especialistas previam, a Primavera Árabe fez crescer a sua credibilidade – afinal, os islâmicos há muito tempo condenaram aqueles regimes corruptos como destinados ao fracasso. O liberalismo na Europa do século 19 e o islamismo no mundo árabe hoje são como canais abertos por uma geração de ativistas e mantidos assim, às vezes silenciosamente, pelas futuras. Quando as tempestades da revolução desabam, seja na Europa ou no Oriente Médio, as águas encontram esses canais. O islamismo está vencendo porque é o mais profundo e amplo canal em que o descontentamento árabe pode desaguar. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
Fonte! http://blogs.estadao.com.br/radar-global/o-avanco-do-islamismo/
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