O conflito palestino-israelense se parece com uma interminável telenovela onde dezenas de situações se cruzam e se interpenetram. No capítulo mais recente, em setembro, perdeu-se mais uma vez uma oportunidade de diálogo para uma paz negociada, justa e duradoura para a região.
A disputa se arrasta há quase um século e tem início com a Declaração de Balfour emitida pela Grã Bretanha em 1917, uma semana após a tomada do Palácio de Inverno na Rússia. Foi uma maneira de dividir as grandes massas judaicas oprimidas que viviam no Império Czarista e viam uma possibilidade de adquirir sua cidadania no novo regime instaurado. A declaração prometia um Lar Nacional Judeu na Palestina, o que transformaria o sonho sionista em algo palpável. Contudo, a partir dos anos de 1930, a Grã Bretanha modifica radicalmente sua política para o mandato da Palestina, impedindo a imigração de judeus a partir de 1936. Milhões deles poderiam ter sido salvos do Holocausto.
Mesmo com o grande constrangimento, ao fim da 2ª Guerra, os britânicos continuaram a proibir a imigração para a Palestina dos judeus europeus que sobreviveram. Detiam as embarcações que se dirigiam à Palestina e confinava-os em campos de refugiados em Chipre.
Logo após a 2ª Guerra, a URSS era vista como a grande vitoriosa da guerra na Europa. A maioria dos judeus tinha grande simpatia por esse país. A URSS estava interessada em meter uma cunha no Oriente Médio contra os países colonialistas, Grã-Bretanha e França.
Quem defendeu e encaminhou a proposta da partilha da Palestina, que deu ensejo à criação de um Estado judeu — e de um Estado árabe-palestino — na Assembeia Geral da ONU, em novembro de 1947, foi Andrei Gromyko, embaixador soviético neste novo organismo. Os Estados Unidos votaram a favor da proposta com muitas reticências, a Grã-Bretanha se absteve. Todos os países árabes rejeitaram a partilha e declararam guerra ao Estado recém-criado, com o apoio tácito dos britânicos, que se absteve na votação.
A República Popular da Checoslováquia forneceu em grande medida as armas utilizadas pela Haganá, embrião do Exército israelense, na Guerra da Independência (1948). Note-se que o processo de descolonização na Ásia e África estava em marcha com o apoio decisivo da URSS.
Este quadro começa a mudar a partir da Guerra Fria, por várias razões.
Em primeiro lugar, porque o novo Estado de Israel era economicamente frágil. Embora a URSS tenha se empenhado na criação de Israel, não tinha condições de prestar ajuda econômico-financeira, dado que necessitava reconstruir o seu próprio país que sofrera perdas humanas e materiais incalculáveis durante a grande guerra.
Ao ser criada a República Federal da Alemanha, seu primeiro chanceler, Konrad Adenauer, firmou um tratado com o Estado de Israel (1951), pelo qual os sobreviventes do Holocausto teriam indenizações vitalícias, e a soma referente aos 6 milhões de assassinados destinar-se-ia ao novo Estado, o que deu um certo alento econômico.
Com o surgimento do macartismo nos Estados Unidos, houve um certo temor de que ocorressem perseguições aos judeus norte-americanos, uma vez que havia manifestações antissemitas e racistas em vastos setores do país. Portanto, não interessava o confronto com esta superpotência.
Em 1951, reorganiza-se a Internacional Socialista (IS), totalmente destroçada com a ascensão do nazismo, uma vez que o Partido Social-Democrata Alemão havia sido o grande sustentáculo desse campo político. Os partidos trabalhista (Mapai) e socialista (Mapam), majoritários na fundação do Estado de Israel, ingressaram na IS.
Mais adiante, num contexto absolutamente polarizado da Guerra Fria, os países europeus, dirigidos por partidos pertencentes à IS, alinharam-se aos Estados Unidos, bem como Israel. Enquanto isso, a URSS investia nos países árabes para fincar uma posição estratégica no Oriente Médio rico em petróleo.
Por fim, as denúncias sobre os crimes stalinistas — apresentadas no XX Congresso do PCUS (1956) — dão início a uma ruptura de muitos comunistas e socialistas judeus com a URSS. Os próceres da intelectualidade soviética que se expressavam em iídiche, inclusive os componentes do Comitê Antifascista (Itzik Fefer, Peretz Markish, Solomon Michoels, entre outros), que poucos anos antes, durante a guerra, haviam viajado para os Estados Unidos para pedir a abertura da Segunda Frente na Europa, foram liquidados.
Na Guerra do Sinai (1956), Israel se alia à França e à Grã-Bretanha, enquanto a URSS passa a apoiar Abdel Gamal Nasser do Egito. Apesar da vitória israelense, este é o marco do declínio das potências colonialistas na região. e Israel vai se aproximando cada vez mais dos Estados Unidos. Este processo tem seu ápice logo após a Guerra dos Seis Dias (1967), quando a URSS e as Repúblicas Populares do bloco soviético rompem relações com Israel. Num processo binário de “bandido e mocinho”, os países da esfera soviética dão apoio integral aos palestinos e a clivagem torna-se absoluta. Este modelo só sofrerá mudanças durante a Perestroika e a Glasnost de Gorbachev. O mesmo chegou a declarar que a posição soviética havia sido muito unilateral.
Embora todos os países do Oriente Médio e do Norte da África tenham sido peões das duas grandes superpotências durante a Guerra Fria, setores da esquerda passaram a caracterizar Israel como ponta de lança do imperialismo norte americano na região.
Em meio à intensa pressão dos países árabes contra Israel, através do poder dos “petrodólares”, o sionismo chegou a ser caracterizado como racismo. No Brasil, a ditadura militar (“pragmatismo responsável” do chanceler de Geisel, Azeredo da Silveira) vota a favor dessa resolução na ONU, em troca de exportação de serviços, automóveis e armas à Líbia de Kadhafi e ao Iraque de Saddam Hussein.
Pouco a pouco, o antissemitismo clássico é substituído por um antissionismo raivoso. Como exemplos deste antissionismo antissemita, cito material recentemente divulgado pelo atual PCB - que nada tem com o PCB original, no qual havia uma grande militância judaica; posições petistas em defesa do Irã ou do Hamas; distribuição nas universidades, pelo PSTU, dos “Protocolos dos Sábios de Sião” (panfleto apócrifo antissemita forjado na Rússia Czarista), etc.
As várias vertentes do antissemitismo, enrustido ou oficial, mesclam-se na lógica aristotélica simplista de que “quem é inimigo dos Estados Unidos é meu amigo”, aliança que comporta desde a “esquerda” radical até os grupos neonazistas, passando por líderes “progressistas” como Ahmadinejad.
Isto não isenta o Estado de Israel — hoje governado por uma coalizão de extrema-direita nacionalista e fundamentalistas religiosos — de erros políticos e atos extremamente reprováveis com relação aos palestinos.
A centro-esquerda israelense alinhada com a IS, numa Realpolitik, entendeu, a partir do fim do “socialismo real”, que seria imperioso negociar para acabar com o conflito. Daí decorrem os acordos de Oslo e a Iniciativa de Genebra (www.pazagora.org/genebra), apoiados pelo governo democrata americano de Bill Clinton. Do lado judeu, os negociadores de Oslo são Itzhak Rabin e Shimon Peres, que em conjunto com Yasser Arafat mereceram o Prêmio Nobel da Paz.
Não foi um palestino, mas um fundamentalista judeu que assassinou Rabin! Assim como foram fundamentalistas muçulmanos que mataram Anwar Sadat após o líder egípcio ter promovido um corajoso acordo de paz com Israel. Cada vez que se está perto de um acordo, os fundamentalistas de ambos os lados realizam algum ato que acaba atrapalhando as negociações.
Para entender por que a extrema-direita israelense se fortaleceu tanto, é preciso entender a composição da população israelense. Quem vota na direita desde a criação de Israel, Estado multicultural e multiétnico (os judeus da Diáspora que chegaram a Israel de todas as partes do mundo são muito diversos entre si), são as classes mais pobres e menos instruídas, provenientes dos países do Oriente Médio e da África (iemenitas, marroquinos, iraquianos, etíopes, etc.).
Muitos sobreviventes do Holocausto, desprezados pelos fundadores do Estado, sob o discurso de que foram aos crematórios como carneiros, ressentidos, também votam na direita, que faz o discurso da segurança, lembrando sempre que o Holocausto pode repetir-se sob outra forma. Portanto, a lógica magnificada é de um país fortaleza que assegure sua sobrevivência física.
Ao contrário do que ocorreu no começo do século XX, quando os judeus provenientes da Europa Oriental eram predominantemente marxistas e socialistas, os que saíram da URSS nos anos 80 e 90, tendo passado pelas experiências stalinista e brejnevista de opressão dos judeus soviéticos, não querem nem saber de socialismo. Engrossam em massa o caldo da extrema-direita israelense. O atual ministro de Relações Exteriores, Avigdor Lieberman, é o representante por excelência desse segmento sem esquecer que é, pessoalmente colono de um assentamento na Cisjordânia, como muitos outros imigrantes recentes.
Num país com 7 milhões de habitantes, os russos chegados após a queda da URSS – uma massa de 1 milhão de pessoas - desequilibram decisivamente a balança do eleitorado para a direita.
Outros 20% do eleitorado são constituídos por cidadãos árabes-israelenses, descendentes dos que optaram por permanecer no país em 1948. Essa população de cerca de 1,5 milhão de pessoas tem direito de votar e ser votada. Mas têm em grande parte se abstido de votar.
Lembram-se do voto nulo durante a ditadura no Brasil? Objetivamente este é um dos mais importantes fatores que fortalecem a direita israelense. Se os palestinos votassem na esquerda e centro-esquerda, a balança penderia para o outro lado. Eles têm direito de lançar candidatos próprios, mas — em função de um alto nível de abstenção nas eleições — sua representação no Parlamento (Knesset) é muito inferior à sua proporção demográfica.
Com este quadro, o diálogo por uma paz negociada justa e duradoura — com dois Estados para dois povos e suas respectivas capitais em Jerusalém — fica cada vez mais difícil. Só uma ampla frente do campo da paz poderia enfrentar a direita, mas a esquerda está muito dividida - principalmente em função da violência das intifadas palestinas que, por sua vez haviam sido desencadeadas pela intolerável ocupação de Gaza e Cisjordânia.
Um fenômeno recente em Israel é a manifestação de centenas de milhares de jovens em praça pública, por uma nova ordem econômica mais justa. O neoliberalismo implantado pelos governos de direita acabou com várias conquistas sociais do Welfare State. Israel deixou de ser uma das sociedades mais igualitárias do mundo, ao lado dos países escandinavos, para hoje ter enormes diferenças de renda e crescentes parcelas de população abaixo do nível de pobreza.
No entanto, poucos estão associando estes problemas com o desvio de recursos públicos para a colonização dos territórios ocupados e à segurança do país.
Os colonos extremistas são cada vez mais audazes em suas atividades antipalestinas como se viu nas últimas semanas com a queima de mesquitas no norte da Galiléia, sem que o “main stream”, embora discorde, se manifeste. Mesmo israelenses do campo da paz têm sido alvo de ameaças e atentados. Há intelectuais israelenses que comparam a situação com as ocorrências na Europa central e oriental no período de entreguerras.
Enquanto Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, notificava a ONU de que faria um discurso solicitando o reconhecimento pleno da Palestina, o primeiro-ministro israelense, Benyamin Netanyahu, proferia discursos voltados para estes jovens, alertando para a possibilidade de uma nova guerra e a necessidade de unir o povo. Ironicamente, ministros da coalizão de governo sugeriam que quem precisasse de moradia acessível se mudasse para a Cisjordânia ocupada...
A esperança hoje é de que as massas de jovens que vêm enchendo as ruas e praças de Israel em busca de justiça social sejam conscientizadas de que o que lhes traz mais dificuldades é a ocupação. E que a solução que lhes fará justiça — assim como ao povo palestino — é um acordo de paz baseado na criação de um Estado Palestino ao lado do Estado de Israel.
O vendaval que teve início nos países árabes no começo do ano e a “primavera árabe”, gerou muita esperança. Mas, paradoxalmente, atinge e complica o conflito mais antigo da região - e quiçás do mundo. No tabuleiro de xadrez, estão os três grandes protagonistas muçulmanos regionais, a saber: Egito, Irã e Turquia. Na Síria, apoiada pelo governo iraniano, seguem os sangrentos embates internos, com particular ferocidade do ditador Bashar Assad, não permitindo margens de manobra externos, pelo menos momentaneamente. Mas o Irã continua apostando numa solução que rompa alianças com os países ocidentais, sobretudo com os EEUU, esperando exercer maior influência regional, quer religiosa como político-econômica
A situação egípcia ainda é uma incógnita, na medida em que o Exército – a mesma base de poder que sustentou o governo deposto de Mubarak - vem perdendo prestígio, enquanto parcelas expressivas da população, laica ou islâmica, vêm questionando os acordos firmados por Anwar Sadat com Israel. As mudanças são críticas visto que o Egito torna a fronteira com Gaza permeável, reforçando o temor dos israelenses por sua sobrevivência.
No momento em que o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, profere na Assembléia Geral da ONU um discurso moderadíssimo a favor do reconhecimento pleno da Palestina junto a esta organização, e obtém o reconhecimento da grande maioria dos países do mundo, este pleito não teve sucesso. Alguns dias depois, é anunciado que Netanyahu negociou com o Hamas a libertação do soldado israelense Gilad Shalit, seqüestrado há cinco anos. Este episódio tem várias interpretações no plano internacional, trocado por mais de mil prisioneiros palestinos em Israel, muitos deles condenados por ataques terroristas no país. Quem perdeu com isto foram os campos da paz, tanto de Israel quanto da Autoridade Palestina.
A popularidade do Hamas cresce ao obter mediante ações violentas a libertação de prisioneiros, tema dos mais candentes entre os palestinos. Enquanto isto, a atitude moderada dos membros da Fatah, pouco tem rendido em termos de fim da ocupação e uma solução pacífica
Se somarmos ao fato a declaração do Hamas, logo após a troca de prisioneiros, reafirmando a intenção de continuidade dos seqüestros – assim como a retomada do bombardeio do sul de Israel por mísseis disparados de Gaza - a leitura possível é uma aposta no “status quo” que permite cada vez mais assentamentos na Cisjordânia ocupada, criando uma situação irreversível.
Mas pode-se fazer uma leitura mais otimista uma vez que há um primeiro sinal de reconhecimento implícito do Estado de Israel pelo Hamas, na medida em que aceitou a negociação.
Utilizando a frase gramsciana do “pessimismo da razão e do otimismo da vontade” é preciso mobilizar o “campo da paz" em ambos os lados, desmascarando o discurso da direita israelense de que “não há interlocutores confiáveis do lado palestino".
O terceiro protagonista é a Turquia, país democrático de maioria islâmica moderada que vinha se preparando para ingressar na União Européia. É cada vez mais clara a intenção da Turquia mudar de rumo, sobretudo após a recente crise enfrentada pela Europa. Não por acaso, Erdogan visitou nos últimos meses países do Oriente Médio e deu guarida a revoltosos sírios. Tudo indica que gostaria de reaver pelo menos parte da influência tida durante o Império Otomano. Como esta pretensão não pode se dar “manu militari”, a Turquia tem interesse em liderar um processo de paz regional. Com isto, poderá assumir um papel de destaque no desenvolvimento de sistemas democráticos em substituição aos regimes autocráticos derrubados pela primavera árabe. Além de servir como articulação estratégica entre esses países e a União Européia.
Dina Lida Kinoshita é membro do Conselho da Cátedra UNESCO de Educação para a Paz, DDHH, Democracia e Tolerância junto ao IEA -USP e membro dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA (www.pazagora.org
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