Ronald Silva Marçal posted a status
Mai 2
A primeira fase da última edição do vestibular da UECE (2024.2) demonstra o nível de antissemitismo que contamina a academia cearense, em especial as catedras de Ciências Humanas e Sociais.

Diante das circunstâncias em que nos encontramos hoje, com a guerra entre Israel e Palestinos na faixa de Gaza e todas as tensões que se elevam decorrentes do contexto bélico em questão, seria natural que a temática fosse abordada em questões de vestibulares e outros exames de ingresso na educação superior, porém, se já não fosse minimamente estranho a presença de 3 questões em um único certame, dada a desproporcionalidade em relação à outros temas relevantes a serem abordados (tanto em nível nacional quanto regional e estadual), o conteúdo das mesmas deixa transparecer a necessidade de cultivar um discurso de ódio em relação ao "judaico" estabelecida como um requsito exigido para ingresso na instituição.

Isso se deve ao fato de que todas as três questões apresentaram perspectivas antissemitas claras, além de anacronismos e pura ignorância da história judaica (do povo judeu e dos pensamentos judaicos). Aquela que pode ser considerada como a mais grave, a de número 29, apresenta uma citação do livro "Inferno, o mundo em guerra. 1939-1945", de Max Hastings, e pede para que o concorrente analise três afirmações, tendo o gabarito sugerindo que o item correto seria o que considerava verdadeira a seguinte afirmação: "O extermínio dos judeus foi uma decisão antieconômica na medida em que sua mão de obra escrava poderia ter sido mais bem explorada pelos alemães".

Tal afirmação é problemática em vários níveis, mas cabe ressaltar dois como essenciais. Primeiro, tal afirmação é uma clara postura insensível às vítimas do holocausto (Shoa), e seus descendentes, ao sugerir que o genocídio perpretado pelos nazistas seria produto de uma irracionalidade pois de uma perspectiva racional o ideal não teria sido matar os judeus, mas escravizá-los, ou em uma linguagem mais direta, o item afirma que teria sido racional escravizar judeus nos territórios controlados pelos nazi.

Segundo, a questão ignora todas as circunstâncias históricas e sociais que levaram ao Holocausto, uma vez que a intenção do nazismo não era simplesmente tirar proveito econômico dos judeus, e nem eram, os nazis, simplemsente sujeitos agindo sem lucidez.

As raízes do antissemitismo europeu estão relacionadas à choques culturais e perspectivas políticas antagônicas entre as duas civilizações, de forma que aquilo que os nazistas levaram a cabo na primeira metade do século XX era um desejo milenar, expressado de diversas maneiras (seja apenas no mundo das ideias ou mesmo no mundo da praxis política) ao longo da história judaica na Europa. Isto significa, em resumo, que a cultura tradicional europeia está asentada em elementos que se posicionam no extremo oposto daqueles em que a cultura judaica se sustenta. Ou seja, enquanto a cultura europeia, romano-germânica, foi construída sobre as conjunturas estabelecidas por grandes conquistadores, grandes guerreiros, em políticas expansionistas de grandes impérios, a cultura judaica foi estabelecida por proto-libertários, pensadores, intelectuais, pessoas "dos livros". A Torá, a legislação de Moisés, por exemplo, é um conjunto de Leis que não exigem um Estado Centralizador, não exige polícia, não exige prisões, ou seja, é o registro de uma experiência que (se fosse realizada na atualidade) poderia ser enquadrada dentro de um espectro socialista-libertário, ou seja, o completo oposto de uma tradição estabelecida em impérios (helenístico e romano) ou de grandes conquistadores (francos, godos, visigodos, etc), quem pensavam a sociedade a partir de um ponto de governo central.

Diante disso, a presença de um grupo de pessoas que se organizam, que são criadas e formadas a partir de uma perspectiva "libertária", dentro de uma sociedade que valoriza o poder centralizador, o expansionismo e o controle sobre outros povos como sendo o auge de uma civilização, naturalmente tende a ser encarado como uma ameaça, algo a ser eliminado, seja por meio de desterros (como experimentado na Inglaterra no século XIII, na Espanha no Século XV e Portugal no século XVI), ou levado às últimas consequências como no trágico episódio do Holocausto. Em síntese, na tradicional perspectiva do antissemitismo europeu não há espaço para a mínima existência de judeus, nem mesmo na pior das situações imagináveis (como a de um escravo). Isto significa que as ações do estado Nazista que levaram ao Holocausto não podem ser colocadas como irracionais; elas foram políticas bem pensadas e planejadas buscando atingir um objetivo específico, a limpeza étnica dos judeus na Europa.

Outra questão, a de número 27, faz uma citação da "primeira palavra" (primeiro mandamento, na tradição cristã), e em seguida apresenta um texto que expressa um flagrante anacronismo, sugerindo que o êxodo do povo hebreu se deu em direção à Palestina (sic).

Com essa afirmação, a questão busca apagar a relação histórica do povo judeu com sua terra ancestral. Se o texto tivesse a intenção de reproduzir o que as fontes dizem, o correto teria sido mencionar "Canaã", mas em vez disso utilizam o termo latino bem posterior "Palestina", e isso gera no receptor da mensagem uma compreensão de que a relação histórica do povo judeu com a região é sempre, desde o êxodo, a de invasão e conquista.

Esse tipo de afirmação ignora que o relato parte de uma experiência de exílio, de um momento em que o povo esteve dominado e subjulgado em uma terra estrangeira, e que o relato mítico do êxodo foi formulado para exprimir essa angústia e o desejo latente no interior daquela comunidade de voltar à terra de seus antepassados. Ou seja, em vez de abordar o texto bíblico de forma crítica (como seria esperado de uma instituição de nível superior) para demonstrar a relação entre exílio e retorno que moldam a angústia da existencia judaica, o certame utiliza de uma perspectiva fundamentalista para indicar que judeus se relacionam com a terra de forma parasitária e conquistadora, isto é, de forma sutil reproduz toda uma estrutura de pensamento antissemita.

A última das três questões, a de número 35, é o típico discurso antissemita disfarçado de anti-sionismo. O texto motivador da questão pede para que o concorrente relacione a expressão "aspecto expansionista territorial israelense" com a ideologia sionista. A questão ignora que, mesmo com a maior parte da população no exílio, a presença judaica (e samaritana) na terra nunca cessou completamente nesses 2 milênios. Maimônides, o mais importante filosofo judeu da Idade Média, por exemplo, está sepultado em Tiberíades. O Arizal (rabbi Isac Luria), o principal sistematizador da Kabbalah, o misticismo judaico, na Idade Moderna, e Rabbi Yossef Karo, o principal codificador da Halakhah (lei judaica), estão sepultados em Safed.

Além disso, mesmo que no começo do século XX a maioria da população da região fosse islâmica, a terra ainda não era massivamente ocupada quando iniciaram as imigrações judaicas impulsionadas pela ascensão do sionismo moderno. À nível de comparação, os primeiros censos levantados pelos britânicos e franceses no Oriente Médio demonstram que o Líbano tinha uma população que equivalia a 1,5 vezes toda a população palestina, em uma área 3 vezes menor, de forma que seria plenamente possível estabelecer um lar nacional judaica na região sem afetar a maior parte da população não-judaica vivendo ali.

Da mesma forma, o texto ignora completamente a forte presença judaica nas demais regiões do antigo Império Otomano e no Norte da África, e a crescente migração para a Palestina Britânica após as circunstâncias se tornarem extremamente negativas para judeus no Oriente Médio, uma vez que durante a Segunda Guerra, em especial com a queda da França para a Alemanha, quando seus domínios - Síria, Líbano e Iraque - passam a ser controlados por agentes árabes nazistas, fazendo a presença judaica aumentar ao ocidente do Jordão.

Ou seja, ignorando toda a complexa cadeia de eventos e realidades no mundo judaico e árabe pré-1948, os elaboradores da prova buscaram reduzir de forma preconceituosa o anseio histórico de retorno à terra ancestral, anseio este que sempre foi expressado nas diversas manifestações religiosas ("im eshkachech yerushalaim") e culturais ("irme kero madre a Ierushalaim") das comunidades judaicas, e as migrações resultante de políticas antissemitas no século XX a partir da Europa e Oriente Médio, a uma mera política expansionista. Estabelecendo, assim, um critério de seleção que contempla apenas concorrentes que cultivem uma visão negativa de tudo relacionado ao povo judeu (sua relgião, sua cultura e pensamento), de forma que a adjetivação como "antissemita" desta última edição do vestibular da UECE expressa muito bem o caráter da banca.

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