A RELAÇÃO DO JUDAÍSMO COM A NATUREZA

A RELAÇÃO DO JUDAÍSMO COM A NATUREZA Jane Bichmacher de Glasman Mas não é apenas através do calendário e das festividades e suas simbologias que o judaísmo expressa sua relação com a natureza. Na verdade, a atitude para com a natureza expressa, hoje mais que nunca, um critério pelo qual a sociedade deve ser julgada. Para ilustrar a verdade de que o homem não peca só para o mal, Rabi Shimon Bar-Iochai contava: “Estavam alguns homens sentados numa embarcação e um deles, interpretando um presságio, pôs-se a abrir um furo debaixo do seu lugar. Seus companheiros exclamaram: – Que estás fazendo? Replicou ele: – É acaso da tua conta? Não estou abrindo um buraco debaixo do meu banco? – Naturalmente é da nossa conta – retrucaram os outros – pois a água virará o bote e nós, com ele”. (Vaicrá Rabá 4:6) O judaísmo ensina o respeito à natureza como criação de D’us: “A terra é do Senhor e tudo o que há nela; o mundo e todos os que nela habitam”(Salmos 24:1). O homem, por causa do grande poder que é capaz de exercer sobre o meio-ambiente, tem a responsabilidade de tratá-lo com respeito. Ele é o procurador de D’us na terra, disse Rashi, comentando o verso do salmo 115:16: “Os céus são os céus do Senhor, mas a terra, Ele a deu para os filhos dos homens”. Há ênfase especial na tradição judaica para que não se inflija qualquer sofrimento desnecessário aos animais, apesar de ser permitido o abate dos animais para a alimentação, desde que feito por um método que atenda a esse requisito. (Apesar de existirem judeus vegetarianos, o judaísmo não exige o vegetarianismo). Para ilustrar, duas versões talmúdicas (do Talmud da Babilônia e do Talmud de Jerusalém): O patriarca Rabi Iehudá I sofreu longos anos de dor de dentes. Por que fora castigado assim? Porque certa vez vira um bezerro levado ao matadouro; o bezerro balava, pedindo socorro, mas o Rabi disse: “– Vai, que para isso foste criado.” E como se curou o patriarca? Um dia, vendo uma ninhada de ratos que iam ser afogados no rio, disse: “– Deixai-os livres, pois está escrito: ‘A misericórdia de Deus paira sobre todas as suas obras’”. (T.I. Quilaim, cap. 9). Certa vez Rabi Iehudá, o Príncipe, explicava a Lei perante uma assembléia de judeus babilônicos, em Seforis, quando viu passar um bezerro que procurava esconder-se e mugia com um som melancólico, como se dissesse: “Salva-me! “ Disse Rabi Iehudá: – “Que posso fazer por ti? Para essa sorte (isto é: para seres abatido) foste criado”. Em conseqüência, Rabi Iehudá sofreu dor-de-dentes treze anos... No fim desse tempo, sucedeu que uma doninha desatou a correr atrás da filha dele e ela quis matar o animal. Disse-lhe então o pai: – “Deixa-a ir, pois está escrito: “A misericórdia de D’us paira sobre todas as suas obras”. Decretou-se então no Céu: “Desde que Rabi Iehudá teve piedade, compadeçamo-nos dele”. E passou-lhe a dor-de-dentes”. (Raba Metzia, 85a). Já na Bíblia, há muita legislação humanitária a respeito dos animais, englobadas no princípio de Tsaer Baalei Haim (compaixão pelos seres vivos). Incluem-se proibições do afastamento da ave mãe de sua cria (Deutero-nômio 22:6s), de se juntar numa parelha o boi e o asno (Deu-teronômio 22:10) e de se amordaçar um boi quando estiver debulhando o milho (Deuteronômio 22:10). No 4º mandamento, há a estipulação de que animais domésticos devem participar, com seus donos humanos, do respeito pelo descanso no Shabat sagrado. Outras leis foram criadas pelos rabis; por exemplo, a que proíbe comprar um animal se não se tem condições de cuidar dele adequadamente (Talmud de Jerusalém, Iebamor 15:3) ou a que determina alimentar os animais antes de se fazer a própria refeição (Berachot 40a). Os sábios também contavam uma lenda fascinante sobre Moisés. Certa vez, ele percorreu grandes distâncias para resgatar uma pequena ovelha que se tinha afastado de seu rebanho e, por esse ato de compaixão, mostrou-se aos olhos de D’us como competente para transformar-se no pastor de seu povo, Israel (Êxodo, Rabá 2:2). Tal tradição não veria com bons olhos a caça como esporte. Isto era firmemente condenado pelo eminente Rabino Ezequiel Landau, do século XVIII, em uma de suas responsas. “Não é para o feitio dos filhos de Abraão, Isaac e Jacob”, escreveu. Mas o respeito pela natureza vai além do respeito aos animais. A indicação de que não pode ser utilizada sem algumas restrições consta da lei bíblica que exige do fazendeiro que não cultive a terra a cada 7 anos (Levítico 25:3); e de outra lei que proíbe aos exércitos cortar as árvores frutíferas ao sitiarem uma cidade (Deuteronômio 20:29). Este mandamento foi generalizado, por uma interpretação judaica posterior, para uma proibição contra qualquer destruição injustificada (Maimônides, Sefer Ha-Mitzvot, proibição 57). Assim entendido, este mandamento, um dos 613 de nossa religião, tornou-se particularmente relevante em tempos recentes, quando a humanidade se deu conta do perigo potencial que ameaça a sua própria sobrevivência – a espoliação negligente dos recursos naturais do meio ambiente. Isto também é uma mitzvá “do homem para com seu próximo”, mas no sentido especial de que se relaciona à responsabilidade que cada geração de seres humanos tem para com a posteridade. A cosmovisão judaica é orientada basicamente pela Torá. Aliás, este é o significado da palavra Torá – orientação. E, quando fazemos uma leitura do texto bíblico procurando aprender todo o seu simbolismo, podemos encará-lo como um compêndio ecológico metafórico. Começando com a criação do homem: D’us o cria para ser seu parceiro na criação. Depois a mantendo: a ação do homem sobre a natureza representa o exercício de seu livre-arbítrio, sua própria opção pela vida ou pela morte. Interpretando de outra forma a passagem que o cristianismo viria a considerar como o pecado original, podemos identificar na transgressão de Adão o primeiro crime ecológico – o homem, incapaz de respeitar seus limites em prol do equilíbrio da natureza, provoca a perda do paraíso terrestre (arquétipo da harmonia ecológica), devido à ação predadora do próprio homem. O Talmud, através de suas agadot (lendas), ressalta o profundo alcance do simbolismo de ter sido criado somente um homem: “Um só homem foi criado no tempo da criação para que mais tarde ninguém tivesse o direito de dizer a outrem: Meu pai valia mais do que o teu” (T.I., Sanhedrin, 4:5). “Por que se criou um só homem, sem companheiro? Para que não se dissesse que certas raças são melhores do que outras” (Sanhedrin, 37a). Um homem foi produzido no tempo da criação, para atestar a grandeza de D’us. Quando os humanos se servem de uma forma para cunhar muitas moedas, elas saem todas iguais. D’us cunhou todos os homens com o molde de Adão, mas todos diferentes entre si. Logo, o homem tem direito de dizer: O mundo foi criado para mim... Também foi feito para ensinar que quem destruir uma simples vida é tão culpado como se tivesse arrasado o mundo todo e quem resgatar uma única vida grangeia tanto mérito como se houvesse salvo o mundo inteiro” (T.I.,4:5). “D’us criou primeiro o mundo e as outras criaturas, deixando o homem para o fim, ou melhor, para a véspera do Shabat, pois assim poderia dizer-lhe em qualquer ocasião: Até a mosca, um minúsculo inseto, foi criada antes de ti”. Sobre a responsabilidade do homem diante da natureza, conta o Talmud: “Criado o primeiro homem, levou-o D’us a passear entre as árvores e lhe disse: Observa as obras que criei, vê como são belas! Procura não pecar e não destruir o mundo que fiz. Pois se vieres a estragar algo, não haverá quem o conserte”. Outra conhecida passagem talmúdica, ressalta a responsabilidade do homem em relação às futuras gerações: “Certa vez, nas suas viagens, Honi Hameaguel viu um velho plantando uma alfarrobeira, e perguntou-lhe quando presumia que a árvore desse frutos. – Dentro de setenta anos – respondeu-lhe o velho. – Esperas viver setenta anos e comer os frutos do teu trabalho? – Quando vim ao mundo, não encontrei um deserto – replicou o ancião. – Os meus antepassados plantaram para mim antes que eu nascesse. Assim, eu planto para os que vierem depois de mim”. (Taanit, 23a). Para encerrar, pensemos sobre outra versão anedótica de história semelhante, narrada também no próprio Talmud e que bem representa como a perspectiva ecológica deve ser vista como um bem em si mesmo, não visando outras “recompensas”: “O Imperador Adriano, a caminho dos campos de batalha, passou por um jardim e viu um velho plantando uma figueira. Freando o cavalo, perguntou: – Por que trabalhas tão assiduamente nesta idade? Esperas comer os frutos da árvore que estás plantando? Respondeu o velho: – Se for a vontade de D’us, eu os comerei; do contrário, os desfrutarão meus filhos. Três anos depois o imperador passou pelo mesmo lugar. O mesmo velho adiantou-se e apresentou-lhe um cesto de figos, dizendo: – Meu Senhor, dignai-vos a receber esta dádiva. Eu sou o homem a quem falaste há três anos. Comovido, o imperador mandou encher o cesto com peças de ouro e devolvê-lo ao velho laborioso. Sucedeu estar a mulher de um vizinho em casa do ancião quando este voltou com o ouro. Ouvindo o relato, ela ordenou imediatamente ao marido que enchesse um cesto de frutos de todos os tipos e o levasse ao imperador. – Ele gosta da fruta da terra e, em recompensa, pode encher-te o cesto de moedas de ouro. O homem seguiu o conselho e apresentou a oferenda ao soberano, dizendo: – Majestade, ouvi dizer que gostais de frutos e trouxe-vos estes, para que os saboreeis. Sabendo do caso e indignado pela audácia do homem, o imperador ordenou aos soldados que atirassem os frutos à cara do atrevido. Arranhado, quase cego, o astucioso chegou à casa. – Como te foste? – perguntou ansiosamente a mulher. – Muito bem – respondeu. Se fosse limões, eu não estaria vivo”. (Vaicrá Rabá, 25). © Jane Bichmacher de Glasman Professora da UERJ e do ISTARJ Bibliografia: Bíblia Hebraica (Kassuto) Browne, Lewis. A Sabedoria de Israel, V. II. RJ, Ed. Biblos, 1963 Enciclopédia Judaica, Ed. Cecil Roth, RJ,ED Tradição, 1967 Glasman, Jane B. de. À luz da Menorá, RJ, UERJ/ed. Aut., 1987 Goldberg, David; Os judeus e o judaísmo. RJ, Xenon Ed. 1989 Judaica. RJ, A. Koogan Ed, 1990 Levi, Leo; Beit Israel, Jerusalém, Israel, Departamento de Publicações da Agência Judaica, 1966