A geografia do horror
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bloodlandsweb.jpg?w=480&h=714Stalin e Hitler, carnífices do Leste Europeu. Terre di sangue: um livro que levanta discussões entre os historiadores. Segundo seu autor, Timothy Snyder, os dois regimes compartilharam a política de extermínio.

A reportagem é de Simonetta Fiori, publicada no jornal La Repubblica, 10-11-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Nos EUA, foi o "livro do ano de 2010", tão aclamado e discutido por muitas publicações renomadas pelo seu olhar incomum e até mesmo perturbador. Ele agora está publicado na Itália com o título Terre di sangue. L'Europa nella morsa di Hitler e Stalin (Ed. Rizzoli).

O autor é um professor de Yale com pouco mais de 40 anos, Timothy Snyder, especialista em história da Europa centro-oriental. Qual é a sua contribuição original? Pela primeira vez, ele preferiu contar uma história como ninguém jamais a havia contado em sede historiográfica. Ou melhor, preferiu analisar, em um único quadro, atrocidades estudadas até agora separadamente.

Essa é a história das Bloodlands, ou seja, das terras devastadas pela fúria nazista e stalinista entre 1933 e 1945. Um territórios delimitado não por fronteiras políticas, mas pela geografia das vítimas, "o lugar em que os regimes mais criminosos da Europa atuaram do modo mais feroz".

Quatorze milhões de mortos em pouco mais de 10 anos, fruto da política de extermínio de Hitler e Stalin. Um mapa ensanguentado que se estende da Polônia central à Rússia ocidental, incluindo Bielorússia, Ucrânia e Estados bálticos. Histórias de pessoas mortas não pela guerra, mas por lúcidas estratégias de massacre.

"Nenhum daqueles 14 milhões de mortos era um soldado em serviço efetivo. A maior parte era constituída por mulheres, crianças e idosos. Principalmente judeus, bielorrussos, ucranianos, poloneses, russos e bálticos". Pessoas inermes, muitas vezes privadas de tudo, até mesmo das roupas.

"O maior desastre na história do mundo ocidental", diz Snyder, que o remete à interação e à sobreposição dos dois regimes totalitários, fotografados em suas diabólicas analogias. "Hitler e Stalin compartilharam uma certa política tirânica: provocaram catástrofes, descarregaram sobre o inimigo a responsabilidade pela sua escolha, depois usaram a morte de milhões de pessoas para demonstrar como as suas políticas foram necessárias ou desejáveis". A construção do livro também restitui esse cruzamento mortal, em um crescendo narrativamente muito eficaz e até mesmo angustiante.

Eis a entrevista.

Professor Snyder (foto), o senhor reúne história nazista e história soviética, mostrando a inédita geografia das “Bloodlands”. Snyder-Timothy300-Ine-Gundersveen.jpgUma perspectiva original na historiografia. Como o senhor chegou a isso?

O que deve surpreender certamente não é o meu corte original. Qualquer um que tenha vivido nessas terras e nesses anos, sob o jugo de nazistas e soviéticos, não pôde escolher entre comparar ou não os dois regimes: foi condenado a fazer isso, às vezes, na tentativa de sobreviver. O que surpreende, ao contrário, é que ainda hoje é reconfortante para nós manter os dois regimes separados e manter separadas as histórias nacionais individuais. Mas isso nos impede de ver a dimensão completa do horror. E nos impede sobretudo de explicá-lo.

Como se o senhor quisesse dar voz novamente às vítimas, por muito tempo contestadas pelas diversas memórias e pelas diversas ideologias.

O assassinato de 14 milhões de civis é uma tragédia enorme que requer uma séria tentativa de explicação. Claro que é difícil entender até o fim cada uma das políticas de extermínio, entendida individualmente. A lista é longa. A fome provocada deliberadamente por Stalin no início dos anos 1930 na Ucrânia. O Grande Terror entre 1937 e 1938. A agressão mortal germano-soviética às classes cultas polonesas entre 1939 e 1941. Os três milhões de prisioneiros soviéticos que foram entregues à morte por fome pelos alemães. As centenas de milhares de civis mortos nas represálias nazistas. Enfim, o Holocausto. Não compreendemos completamente as causas de alguns desses assassinatos em massa e o como eles podem ser reciprocamente conectados.

O que o senhor quer dizer?

Tomemos a maior das catástrofes, o Holocausto. O extermínio dos judeus ocorreu nesses territórios, as “Bloodlands”, onde mais de 8 milhões de não judeus foram mortos quando Hitler estava no poder. Mesmo sem o Holocausto, essa seria a maior hecatombe da história da Europa. Podemos realmente compreender o Holocausto sem conhecer esse pano de fundo? Não, eu acho que não. E ainda hoje nenhum livro sobre o Holocausto, exceto o meu, mostra essa parte fundamental da realidade.

Mas desse modo não se corre o risco de diluir a singularidade do Holocausto? Algum historiador norte-americano, intervindo na discussão sobre as “Bloodlands”, disse que, se não há nada de errado em comparar o Holocausto aos crimes de Stalin, essa equivalência poderia perturbar.

O mu livro não é uma pesquisa comparativa, ao contrário, é o estudo do que aconteceu em um determinado território quando tanto os nazistas quanto os soviéticos estavam presentes. Dois elementos imprescindíveis. O primeiro é que, nessas terras, ocorreu a maior calamidade da história da Europa, objeto da minha investigação. O segundo elemento é que as vítimas não puderam não comparar os dois regimes. Penso em Vasilij Grossman, escritor soviético nascido na Ucrânia, de família judaica. Ele assistiu à fome lucidamente induzida por Stalin na Ucrânia e mais tarde perdeu sua mãe no Holocausto nazista, ainda na Ucrânia. Foi-lhe natural comparar os dois terríveis eventos. Assim também foi para muitíssimos judeus, assim como para muitíssimos ucranianos.

Isso é óbvio. Mas uma coisa é comparar, outra é reconhecer a singularidade do genocídio dos judeus.

Esse é o ponto. A comparação não significa assimilação. O meu livro mostra de forma inequívoca o caráter extraordinário do Holocausto, a política unicamente voltada à eliminação física de um povo inteiro. Além disso, eu demonstro, pela primeira vez, que o Holocausto também foi a pior política de extermínio em termos quantitativos. Durante décadas – antes que eu os freasse –, os historiadores do Holocausto defenderam que o Holocausto manteve o seu traço de singularidade, mesmo que Stalin tenha eliminado mais pessoas. Na realidade, não foi Stalin, mas sim Hitler o responsável por um número maior de mortes. O Holocausto fez mais vítimas do que a política assassina de Stalin entre 1933 e 1945.

O senhor retraça muitas afinidades entre os dois regimes totalitários. Com isso, também sugere uma equivalência moral entre Hitler e Stalin?

Não, é claro que não. No meu livro, o olhar está constantemente voltado para as vidas humanas, para a individualidade singular, e o regime nazista fez o dobro de vítimas em comparação aos mortos da ditadura soviética. O que é mais importante é que o nazismo planejou matar um número de pessoas enormemente maior do que a multidão que conseguiu liquidar. Mas devemos ter cuidado ao tratar desses problemas morais.

A que o senhor se refere?

É preciso conhecer a história o máximo possível. A ditadura stalinista foi muito pior do que muitos italianos acreditam. Qual regime realizou o primeiro extermínio de massa de caráter étnico: o nazista ou o soviético? Foi o soviético, nas "operações nacionais" de 1937-1938, que mataram cerca de 250.000 pessoas. A mesma reflexão pode ser feita sobre o regime nazista: que, se lembra hoje dos três milhões de soldados soviéticos que foram mortos de fome em condições inimagináveis? Ninguém.

Eu seria mais otimista, professor Snyder, com relação ao estado da arte na Itália acerca de Stalin e de Hitler.

Se realmente os italianos sabem a respeito das "operações nacionais" de Stalin ou das estratégias de morte por fome e inanição realizadas por Hitler, eu ficaria muito impressionado, porque russos e alemães em geral as ignoram. Mas é um problema de todo o Ocidente. Voltemos um momento ao Holocausto: a imagem que temos é muito mais pálida e diluída do que a realidade. Nós pensamos nas vítimas italianas e alemãs, mas a grande maioria dos judeus exterminados eram poloneses ou judeus soviéticos. Nós pensamos nos campos de concentração, mas a grande maioria das vítimas nunca vi um campo. Foram fuziladas ou mortas a gás perto dos lugares em que viviam. Acreditamos que a organização nazista remetia ao anonimato de uma máquina, e, ao contrário, os assassinatos de judeus eram executados à queima-roupa. Só concentrando-nos sobre as terras de sangue podemos ter a ideia da monstruosidade completa desse crime.

Por que o senhor acha que ainda existe uma dificuldade em dominar as “Bloodlands”?

É muito mais simples interpretar as catástrofes como tragédias nacionais. Mas as histórias nacionais individuais só podem fazer perguntas, não sugerir respostas. E, a partir de uma perspectiva da Europa ocidental, ainda é reconfortante pensar que a União Soviética apagou o mal do regime nazista. Nos fatos, porém, o inferno aconteceu nos lugares em que Hitler e Stalin tinham o poder. Mas essa experiência permaneceu alheia à mentalidade ocidental, tanto na Europa quanto nos EUA. E sempre será mais fácil imaginar a Alemanha nazista e a União Soviética como entidades distintas: os dois regimes eram muito diferentes, mas os territórios por eles controlados se sobrepunham. “Bloodlands” é a história dos europeus aos quais coube a sorte de se deparar com ambos os regimes criminosos.

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