Faces humanas por Paulo Blanck

Lá pelas tantas a amiga comentou que andava lembrando da avó. Ela costumava trancar suas cinco crianças num quarto da fazenda assim que um deles aparecia com catapora, sarampo, o que fosse a epidemia da vez. A ideia era forçar o contagio. Brincar de médico e doente revezando os papeis ajudava a suportar a situação. Livrava a garotada do horror de ficarem esperando a ameaça invisível. O pai lhe contou que os irmãos nunca estiveram tão unidos como naqueles dias de espera forçada. Enquanto ela passeava pela memória comecei a pensar na fala da Angela Merkel.
Angela Merkel acertou em cheio: “isto é um teste para a nossa solidariedade, nosso senso de comunidade, nossa empatia e consideração pelos outros”. O que cada um consegue aprender das catástrofes vai depender da própria visão de humanidade e de seus interesses imediatos. Se Weintraub, ministro brasileiro da educação, citou salmos supondo que o divino autor da Bíblia resolveu castigar a presidente do movimento “Educação Já”, despejando sobre ela a praga da corona vírus, é porque a sua maneira de aproveitar do Livro dos Livros é essa. A sua humanidade é essa.
Para bancar uma quarentena só mesmo transformando a restrição em liberdade. Consciência de proteger o ausente. Aquele que nem consigo imaginar quem seja. Não me deixar infectar é cuidar do anônimo que não é parente. Caso eu não consiga dar essa reviravolta na minha percepção vou acabar prisioneiro emparedado. Reagir como a criança contrariada. Foda-se. Faço o que bem entendo. Em pleno crescimento do número de vítimas ainda nos falam em histeria. Claro, a terra é plana e os campos de concentração também não existiram. O que importa ao anti-humanismo é negar a razão a fraternidade e a ciência. “Abajo la inteligência. Viva la muerte!” Mais do que nunca o teste de Merkel faz sentido
.
Quando o medo esgarça a própria pele e o pânico se instala, o corpo deixa de funcionar como última trincheira. Perco o sentimento de ser eu mesmo. Sair de casa é perigo mortal. Minha fronteira são dois metros e minhas luvas. É a guerra de todos contra todos. O jeito é subverter a equação do virtual que afasta os próximos e buscar o rosto de quem não vemos mais. Seu olhar. O rosto do outro está gravado na minha alma. Dá sentido ao humano que sou desde que nasci. Desde que o meu olhar encontrou o da mãe. É ancora em momentos de solidão. Um santo remédio inscrito no livro que Weintraub não sabe ler. Viralização, sinônimo de sucesso quando se trata de internet, virou ameaça. O que era palavra cobiçada, virou palavra de medo.
Derrotar o anti-humanismo não é tão difícil assim.
Eles não suportam o amor.

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