Links de Ódio Por Dra. Adriana Dias *

O Ódio on-line

Há mais de oito mil sites racistas, neonazistas e revisionistas na Internet – cerca de quinhentos em domínio brasileiro. Alguns atingem a marca de dois milhões de visitas mensais para cento e quarenta e cinco mil endereços de IP distintos. Em vários deles há mais de cento e cinqüenta links para outras URLs de discurso semelhante, tecendo uma verdadeira rede, na qual se inserem: narrativas pessoais em blogs; exaltações a símbolos específicos em fóruns; discussões; material de divulgação dos movimentos – para ser “esquecido” dentro de livros em bibliotecas públicas (NLNS, TV); cartoons; músicas; imagens; textos que objetivam “formar líderes arianos” (NA, ANS, RC, NLNS, AARG); livros para colorir a fim de permitir o “encantamento das crianças arianas com a história e a força” (NA) de sua raça; listas de discussões para ensinar as “mulheres arianas” a não se comportarem como “um bando de judias briguentas” (WAU).

Arcabouços do ódio

À medida em que, nos últimos quatro anos, fui me aproximando deste universo singular esta teia foi se revelando um arcabouço de representações, valores e crenças, expresso nos sites por um léxico específico que coordena relações de “inclusão e exclusão, distância e proximidade e associação e dissociação”.

Estas relações, ora articuladas a referências que se pretendem científicas por se valerem de uma gramática biologista associada à “verdades absolutas” ora cifradas em códigos simbólicos demarcados numa atmosfera profundamente mítica, estabelecem condições para que seu léxico se pretenda irrefutável.

Nos sites analisados, o discurso racista regula, seleciona, organiza, redistribui e articula poderes e perigos: a supremacia racial branca está no epicentro das discussões acerca dos poderes e a ameaça de sua extinção, em particular pela possibilidade de casamentos inter-raciais ou por adoção de crianças negras, emoldura as discussões a respeito dos perigos. Há um direito de falar privilegiado ou exclusivo, exercido apenas pelos responsáveis dos sites, geralmente líderes de movimentos “que lutam pelos ideais da supremacia ariana” (EM, NA, V88), ou por militantes destes movimentos, freqüentemente para narrar como se descobriram portadores do “precioso sangue” (3W) e como esta descoberta transformou sua vida, afastando-os dos perigos que envolvimentos afetivos com judeus ou negros apresentariam. Os sites delimitam tabus: qualquer tentativa de se tecer um mínimo elogio a negros e judeus , em fóruns ou listas de discussão, provoca reações fortíssimas; muitas vezes expulsões. Nos relatos, exemplos peculiares de narrativas rituais, o processo de “se descobrir ariano (HLOBO)” ganha status de iluminação, e a vida, a partir desta descoberta, um “real sentido” (JNS). Outro interdito aparece nas linhas, por vezes nas entrelinhas: é preciso cuidar para que “a liberdade de expressão não seja castigada pelo poder público” (NLNS, AARG).

“Lógicas” racistas

No presente texto situo o discurso racista no campo digital e credito aos sites escolhidos o lugar de “bons para pensar”, pois leio a radicalização discursiva de suas apresentações hipertextuais, inserida intencionalmente por seus agentes no atual contexto de discussão acerca de diferenças. Este contexto ultrapassa os limites dos sites racistas, e pulveriza a discussão acerca de identidades raciais no campo digital, conduzindo-a para lugares não habituais para discussão do tema, como por exemplo, comunidades do Orkut formadas com outros interesses, blogs pessoais de pessoas não ligadas aos movimentos racistas ou anti-racistas, páginas de notícias, piadas, cartoons, listas de discussão diversas, fóruns que versam a respeito dos mais diversos assuntos, a exemplo de telenovelas e jogos de futebol.

As ciberepresentações em torno da temática “raça” (nas quais proliferam elementos gráficos, tecnológicos e textuais), se relacionam com outras dimensões do campo digital, por meio do link. Navegando pelos links, de qualquer ponto do campo digital em que se discuta raça, se chegará, em algum momento, a um dos sites apresentados no presente discurso, ainda que a totalidade do universo expressa pelos sites racistas seja desconhecida pela grande maioria dos internautas. Ao mesmo tempo o link interliga, intercomunica, interdita e intersecciona. Garante multidimensionalidade, pois fornece a possibilidade da conexão de qualquer ponto a qualquer outro ponto; mas ao mesmo tempo em que isto significa expansão, também pode significar limitação, pela impossibilidade de abarcar-se o todo, partindo-se de qualquer ponto. O todo, no campo digital, não existe: milhões de links são criados todos os dias, apontando para páginas que existem ou não, para páginas que serão criadas, para páginas que já saíram do ar, numa bifurcação contínua que frustra qualquer intenção totalizadora. Qualquer análise do ciberespaço deve levar em conta esta descontinuidade expressa no link, a Scheerazade do mundo virtual, e haverá sempre mais uma história, uma outra narrativa, e outra ainda, num fluir que apenas aponta a imensidão desse oceano do ódio onde encontrei os sites racistas, as ilhas em que venho desenvolvendo a etnografia que dá origem ao presente texto.

Tomando estes sites, seus discursos e os internautas que neles interagem como “informantes”, pretendo, sob o olhar antropológico, discutir os sites pesquisados, suas representações, e apresentar como constroem identidades para si e para seu Outro (o Judeu e o Negro, especialmente), e como, para empreender tal tarefa se valem de duas estratégias: a primeira, fundamentada num discurso que se pretende científico e biológico e a segunda em articulações míticas e rituais. É importante, salientar, no entanto, que estas estratégias se articulam formando estereótipos e “lugares” raciais que se pretendem tanto científicos, históricos e biológicos, como espirituais, míticos, esotéricos.

Tentativas de simplificar realidades

Neste sentindo tais estratégias buscam uma “simplificação” das relações sociais no sentido em que Homi K Bhabha a utiliza o termo: não como uma falsa representação da realidade, mas como “uma forma presa, fixa, de representação”. Nos sites racistas muitas vezes as idéias são emolduradas desta forma:

1. “É simples: nosso mundo é hierárquico.” (WAU);

2. “Nós nos vemos como parte integral de um mundo único à nossa volta, que evolui de acordo com as leis naturais. Nas palavras mais simples: Há somente uma realidade, a qual nós chamamos de Natureza; não a ‘minha ou a sua realidade, mas a nossa realidade’. (NA) “Raça é o conjunto de indivíduos que compartilham entre si as mesmas características genéticas, culturais e históricas. [...] Nenhuma mestiçagem é boa, miscigenação significa suicídio racial, representa o fim das características de ambos os elementos raciais envolvidos e o surgimento de uma criatura sem identidade alguma. A natureza é sábia e colocou cada raça em um continente, isto não ocorreu por acaso. [...] Cremos firmemente que a Raça Branca Ariana é superior as demais raças, mas isto não deve ser visto como algo que vá contra a natureza, pois a superioridade de certas espécies sobre outras é parte da hierarquia natural.” (V88).

“Nossa raça é nossa nação”

Esta tentativa de “simplificar” a realidade social, posiciona a idéia de raça como um “lugar”, dado por uma “natureza sábia” (V88), uma “realidade metassocial ou física “, e valida nos sites em questão, como diferenças “naturais, biológicas” (NA) entre os grupos sociais por ela definidos, diferenças estas que se estenderiam a partir de origens “genômicas” (NA, WAU, JNS, V88, SWP, 3W) a aspectos culturais, sociais, políticas, psíquicas, morais e comportamentais. Esta “simplificação” é necessária, para preencher a idéia de “raça” possibilitando-a como força articuladora de legitimações de sentido e justificativa primeira das práticas sugeridas aos agentes, lhes emprestando o contorno que assegure a legitimidade e a reprodutibilidade que seu discurso crê como premissa. Neste sentido, refletem um “conteúdo previamente conhecido e fixo”, expresso por uma “essência particular, sujeita a certas regularidades que serão entendidas como regras ou leis da natureza”. Para cada “essência particular”, estereotipada numa “raça” existiria, advogam os sites em questão, um lugar “natural”, no “nosso mundo naturalmente hierárquico” (NA). Os sites afirmam explicitamente:

1. “Não existe Nação.” (NA, Nar, ANS, V88, NLNS, LEANDRO);

2. “O Brasil não é uma nação, visto que seu povo não possui identidade comum alguma. Nossa nação é nossa raça. Lutamos pela sobrevivência e desenvolvimento da mesma, independentemente de circunscrições territoriais.” (V88).

“Também sempre frisamos a importância de pararmos de pensar em termos de país (Brasil) e começarmos a raciocinar exclusivamente em cima da questão racial. NOSSA RAÇA É NOSSA NAÇÃO.” (V88).

“Nação e pátria estão diretamente relacionados a laços culturais e raciais. Os judeus por exemplo sabem muito bem disso e onde quer que vivam, sempre consideram Israel como sua pátria.” (V88).

Esta espacialização da idéia de raça, expressada na idéia de que “nação possui uma conotação racial e cultural” e que ambas derivam de uma “realidade genética”, desembocam no “fato” (NA) de que “as classificáveis raças humanas” (JNS, 3W) se hierarquizariam intelectual, moral, cultural, psíquica, espiritual e fisicamente. Esta hierarquização é defendida, nos sites analisados, alicerçando-se num discurso “naturalizante”. Esta hierarquia, definida pelos sites racistas, e neles emoldurada como “natural e mítica” (NA, WAU, NSWP, 3W, V88) constrói-se num discurso que se arvora científico por valer-se de uma abordagem biológica evolucionista.

Desagregando a sociedade humana

Privilegiando estas definições, geram-se relações conceituais e para as mesmas os sites defendem uma agenda: projetos sociais, posturas políticas, engajamentos ideológicos. Esta adoção de uma visão equivocada da biologia humana estabelece, para os sites analisados, uma justificativa para a “subordinação permanente de outros indivíduos e povos e, no limite, para eliminá-los se necessário, utilizando-se de todos os meios para manter um espaço branco” (NA):

1. “Cada um de nós é membro da raça Ariana (ou Européia), “…e desenvolveu suas características especiais ao largo de milhares de anos”, “…a fez avançar pelo seu caminho evolucionário”. [para] “…sobreviver a um inverno requeria planejamento e autodisciplina, avançaram mais rapidamente no desenvolvimento de suas faculdades mentais mais elevadas – incluindo as habilidades para conceptualizar, resolver problemas, fazer planos para o futuro e adiar a gratificação – do que aqueles que permaneceram em um clima relativamente invariável dos trópicos”. [as] “…raças variam hoje em suas capacidades para construir e manter uma sociedade civilizada e, mais em geral, em suas habilidades para ter uma mão consciente à Natureza na tarefa da evolução”. “…somos conscientes de nossa própria natureza e nossas relações com o resto do mundo, nós temos uma inevitável hierarquia de obrigações e responsabilidades. A natureza tem refinado e polido as qualidades especiais corporizadas na raça Ariana para que pudéssemos ser mais capazes de cumprir totalmente a missão que nos foi designada”… “Finalmente, nós temos uma responsabilidade com nós mesmos de sermos os melhores e mais fortes indivíduos que possamos ser. Nós nos vemos como parte da Natureza, sujeitos às leis da Natureza. Nós reconhecemos as desigualdades que se produzem como conseqüências do processo evolucionário e que são essenciais ao progresso em cada esfera da vida. Nós aceitamos as responsabilidades como homens e mulheres Arianos de lutarmos para o avanço de nossa raça a serviço da Vida, e de sermos os instrumentos mais adequados que possamos ser para esse propósito”. (NA)

“Esse é um dos nossos objetivos, mostrar a todos que as diferenças entre Homem e Mulher são necessárias porque guerreiros e mães são necessários para todas as sociedades. Ao longo da história, ambos, guerreiros e mães, lutaram para o mesmo fim, proteger a nossa terra, o nosso lar e o mais precioso de tudo, as nossas crianças, o nosso futuro”. (WAU)

“Há uma luta para manter a própria natureza em estado evolucionário e hierárquico (estabelecido pela hierarquia entre raças), luta esta construída de maneira também hierárquica (diferentemente para homens e mulheres) a fim de garantir às ‘desigualdades que se produzem como conseqüências do processo evolucionário’ (portanto naturais e legitimáveis), o seu direito de se reproduzirem como desiguais”. Este direito se coloca “a serviço da Vida” e, neste sentido, pretende-se o “ariano” como “instrumento” que serve a tal “propósito”. O discurso fala de uma “Vida” que “deseja a si mesma”, e que em seu desejo “hierárquico” utiliza as “desigualdades naturais entre raças” para atingir seu êxtase evolucionista. Deste êxtase participam “homens e mulheres arianos”, necessariamente nesta ordem, não como sujeitos desta “vida hierarquizada”, mas como seus objetos, reificados por uma vida imersa em fetichismo. A eles, o lugar de guerreiros; a elas, o lugar de mães. A ambos o dever de preservar o futuro: a criança branca. “Devemos assegurar a existência do nosso povo e um futuro para as crianças brancas!” Estas 14 palavras, construídas por David Lane, se repetem em praticamente todos os sites e adquirem a forma de mantra. A defesa desta criança portadora da “raiz mitocontrial ariana” (SWP) se aloja na pauta de discussão acerca de identidades, emoldurada na contemporaneidade pela volta ao biologismo, no qual o léxico genômico se destaca. O discurso racista privilegia o evolucionismo e a genômica determina a pauta dos fóruns:

Pergunta: “…meu primo tem características genéticas italianas e portuguesas, mas também indígenas (em pequena quantidade). Ele possui pele branca e tem características predominantemente européias, porém, sei que ele também possui genes provenientes dos povos indígenas, devido a impurificação de sua mãe”. Resposta: “…a pessoa em questão seria 1/8 indígena, em geral os traços de miscigenação costumam aparecer até a 4ª ou 5ª geração, …só podemos considerar ariano o que apresentar menos de 32% de material genético não ariano. …Indivíduos com evidentes traços de mestiçagem foram taxados pelo suspeito teste de DNA como tendo 98 ou 99% de origem caucasiana, a nosso ver isto é simplesmente impossível. Não sabemos se o erro foi do teste ou se houveram distorções na redação e edição da matéria (é sabido que Veja se vendeu a mídia judaica), é possível que o teste utilizado na época fosse falho”. (V88)

“Sou filho de brancos, neto de brancos, sou caucasiano, eu posso ter uma mitocôndria negra? ou talvez um gameta negro, ou células negras?” (CORK – Poder Branco). “Não seria melhor para a humanidade evitar a reprodução de genes ruins (como os meus) e incentivar a reprodução de pessoas com genes bons?” (CORK Biologia vc Racismo)

“Paradoxalmente, o racismo – discriminar o outro por critérios raciais – pode ter surgido pelos mecanismos evolucionários de seleção de comportamento. Num ambiente ancestral em que éramos organizados em bandos disputando os mesmos recursos, fazia sentido identificar quem fosse diferente do bando, e tratá-lo de forma diferenciada. Acredito que esses mesmos mecanismos estejam presentes na organização do nosso cérebro atual, e que estejam intimamente ligados ao racismo”. (CORK Biologia vc Racismo).

Moldura mítica

Outro mecanismo articulado pelos sites, para validar sua agenda de lutas é o de se amparar numa moldura mítica para configurar um espaço de incorporação de regras, valores, gostos, idéias, símbolos. Neste sentido, expressam de forma elucidativa o processo que depende das “tomadas de posição pela intermediação do espaço de disposições, ou do habitus; ou, em outros termos, ao sistema de separações diferenciais “validados pelos mitos reproduzidos inúmeras vezes e por rituais que asseguram sua manutenção. Estes mitos e rituais nascem de classificações, originadas, segundo Cornelia Essner, no “dogma racial nórdico” de Hans F. K. Günther, principal ideólogo do racismo nacional-socialista e antigo membro da “Liga para a Germanidade Pura”. Günther, segundo a historiadora da Universidade de Berlim, obteve a articulação entre a ciência denominada por ele de “biologia social” e idéias que incorporavam princípios de eugenia. Nesta articulação, o “Sangue Nórdico” restava como “portador da imortalidade simbólica ” trazida pelo povo alemão em suas veias. A carne e o sangue nórdicos, por herança, se transubstanciariam na raça alemã, perpetuando-a. Esta eternidade virtual só se materializaria, no entanto, se “o Sangue” permanecesse puro: o que garantiria a evolução “da Raça’. O “Reich” seria a força transcendente que garantiria esta imortalização. Nos sites observados o “Sangue” verte no vermelho das suásticas e por ele está disposto a morrer: “Ou o Estado nacionalista, ou nossos cadáveres”(RH, TV). É o sacrifício da carne, mantendo vivo o sangue. O novo Pão e o novo Vinho: a carne dos soldados e o sangue nórdico de suas veias.

Deste modo, o “Terceiro Reich” comunicou, sacralizou e legitimou a idéia de “imortalidade do Sangue”, que, vertido, fertilizaria a ascensão da “raça ariana”: uma raça de “imortais”. A morte pelo ideal racial não seria real. Real seria a imortalidade por ela concedida. No amanhecer, o Estado Nacional Socialista. O futuro apontaria para isto, acreditavam os soldados de Hitler. E continuam acreditando, conforme demonstrado os sites analisados…

Sangue “puro”

No que consistia, contudo, a crença no “Sangue”? Em seu texto mais conhecido, A Raciologia do Povo Alemão, Hans Günther defende a idéia de que todos os povos da Europa se construíram da mistura de três raças: a nórdica, a alpina e a mediterrânea. A raça nórdica conservaria o melhor material genético, conservando em si “a própria vida’, afirmava Günther. Para os biólogos sociais seria dever do Estado proteger e melhorar o patrimônio genético social, e para isto seriam convenientes políticas eugênicas claras; pois a mestiçagem seria o que mais de prejudicial poderia acontecer ao “povo ariano” pois impediria que a própria Vida, que corre em “Sangue” continuasse seu caminho evolutivo. Para traçar esta teoria, busca no Ensaio sobre a Desigualdade entre as Raças Humanas, de Arthur de Gobineau, sua principal fonte de informação.

A idéia de Günther pretende solucionar a crise de Gobineau, para quem o Ocidente estava se deteriorando, na medida em que sua essência se dilui na mestiçagem, propondo que o “processo de desnordificação” europeu seja interrompido, o que, no limite, significaria “salvar” a própria civilização. Aspirava ele um aumento significativo do sangue nórdico no povo alemão, processo que denominou Aufnordung (renordificação). No entanto, esta teoria, ainda que servisse, em parte, aos interesses do Reich, foi em parte também recusada por ele: como era possível ler na cultura nórdica uma “natureza superior” se a “alta cultura renascentista” nascera à beira do Mediterrâneo? Era preciso repensar os mitos e amalgamá-los a outros para emoldurar a proposta do Reich: a isto serviu, de maneira inusitada, o debate acerca da “mestiçagem humana” de Eugen Fischer, geneticista e fundador do Instituto Imperador Guilherme: em sua teoria, o crânio humano se transforma em artefato cultural e sua forma determina o grau de nobreza da raça. Preservar a raça seria garantir esta nobreza de alma racial, incorporada ao formato de seu cérebro.

Teorias raciais

As diversas teorias raciais lutavam por poder e legitimidade dentro do partido nazista. Interpretadas e reinterpretados por vários intelectuais alemães, as teorias de Günther e Fischer eram vistas como certezas absolutas ou censuradas por seu absolutismo, que exilava às condições do meio sobre as disposições genéticas.

Foi com Karl Saller que a defesa da “raça alemã” uniu várias tradições de pesquisas, da antropometria à eugenia. Em seu pensamento a idéia de povo, que abrange o conceito de cultura, aproxima-se da idéia de raça sem explicitar esta aproximação. Ao publicar A Biologia do Corpo alemão, em 1934, Saller oferece ao Estado nazista o conceito de “raça alemã”. Neste livro, Saller se debruça sobre a questão judaica e nega aos judeus qualquer vestígio de germanidade. A repercussão seria evidente: em 1935 decreta-se, a 15 de setembro, a “lei de proteção do sangue“, que interditava o casamento entre judeus e alemães, evitando-se, assim, a “mestiçagem que poderia destruir toda a harmonia interior do povo alemão”(V88).

Valendo-se de simbolismos diversos da mitologia nórdica, o discurso associa a idéia de sangue a uma herança espiritual definida. Valhalla, nome de um dos maiores sites neonazistas brasileiros, nomeia o grande palácio em Asgard no qual os guerreiros mortos em batalha, levados pelas Valquírias, passam os dias em lutas entre si e as noites banqueteando-se no grande salão, supervisionados pelo próprio Odin. O Valhalla é descrito como o palácio mais maravilhoso de toda Asgard. Guerrear pela preservação da raça é garantir um lugar no paraíso nórdico. Tais elaborações simbólicas se articulam ao discurso racial, pretendo incorporar um significado místico a luta, seus poderes e perigos. Genômica e Nazismo Esotérico unidos para garantir a eficácia discursiva.

Abrindo o debate

Embora tenha apenas esboçado aqui o quanto o discurso dos sites analisados utiliza léxicos genômicos e místicos, creio que este esboço é suficiente para demonstrar o quanto tais léxicos servem para expor a idéia de raça como uma condição de lugar e, portanto, como espaço de apreensão de um modo de vida, demarcado por “propensões para pensar, sentir e agir”.

Em Razões Práticas – sobre a teoria da ação, Pierre Bourdieu advoga a idéia de que “os ‘sujeitos’ são, de fato, agentes que atuam e que sabem, dotados de um senso prático” (grifo no original), no interior do campo. Este senso prático é, ao mesmo tempo, “um sistema adquirido de preferências de visão e divisão…”, “…de estruturas cognitivas duradouras…”, “… de esquemas de ação que orientam a percepção da situação e a resposta adequada”, e a esta espécie de senso prático, Bourdieu denomina habitus. O conceito de habitus de Pierre Bourdieu interessa-nos por ser capaz de demonstrar como as disposições discursivas se estruturam; neste conceito, o “sistema de preferências” delimita o sentir, “o que chamamos de gosto”, afirma Bourdieu, enquanto as “estruturas cognitivas duradouras” essencializando o “produto da incorporação de estruturas objetivas” dando formato às idéias e, por fim, os “esquemas de ação” legalizam “a direção e seu movimento” reproduzindo “sua vocação”. Bourdieu enfatiza que o “discurso enquanto opus operatum encobre por meio de suas significações reificadas o momento constitutivo da prática”, explicitando, portanto, a gênese do processo de significação cultural. Esta característica do campo digital de revelar escondendo e esconder revelando, é conveniente aos sites racistas, por acolher o universo dicotômico de sua possibilidade discursiva: este misto de grito de ódio e silêncio criminoso.

“Lógicas” e práticas racistas

Neste campo, o habitus racista circunscreve sua estratégia de produção, legitimação e reprodução do pensar, sentir e agir discriminatórios em sua particular lógica gramática de classificar, desclassificar e reclassificar. Discutida por Bhabha como “discurso estereotipado do colonialismo” esta argumentação, presente freqüentemente nos sites racistas, revela-se ainda mais nos momentos de recrutamento: “Ha falta de europeus empreendedores e audazes. Não se trata de apoderar-se de um bocado da África, mas sim de resolver o problema africano. Se esperarmos que comece a inevitável luta na Ásia, será tarde demais. A supremacia dos brancos na África estará em perigo”. (CORK Raça Branca).

“Outro dos nossos principais objetivos é a educação das mulheres brancas para que estas despertem para os perigos que as rodeiam, perigos estes que sabemos que mais ninguém as alertará para eles. Achamos fundamental que a mulher branca acorde e que consiga finalmente ver que não é crime amar, querer preservar a sua cultura e o seu povo, e que é desse modo que deve educar os seus filhos, os nossos futuros guerreiros, pois está nas mãos das mulheres a educação daqueles que um dia serão, provavelmente, os heróis do nosso povo”. (ANS, FE, NW).

A prática racista se torna um elemento a ser incorporado à medida que se desperte para o valor da “grande raça” (TV, NA) e para o perigo da “ameaça negra e judia” (NA, WAU, JNS). Nos sites, textos são oferecidos, aos milhares, para facilitar a conscientização que tal incorporação exigiria. Os internautas, desde que tenham certeza de uma origem absolutamente não mestiça, são convidados a se perceberem como arianos e a desejarem o status de superiores, num ciclo formativo que envolve o reconhecimento de determinados atributos físicos, espirituais, morais, cognitivos, sociais, culturais e, paulatinamente, reconhecerem nos membros de outras raças, perigo e inferioridade. São convidados a ter “quatro filhos loiros” (CORK – Quero ter quatro filhos loiros), a se desenvolverem em células de luta (V88), a aprenderem o esporte da caça para justificar porte de armas (JNS), a ler “livros arianos” (NA), a imprimir material e divulgá-lo (todos os sites). Enfim, espera-se do ariano que visita o site, que se torne um “ativista político” (V88) do movimento, consciente de que a luta pode exigir “medidas extremas” (NA).

Ao afirmar que “…nada, no estado atual da ciência, permite afirmar a superioridade ou a inferioridade intelectual de uma raça em relação a outra…”, Levi-Strauss defendeu as raízes da universalidade humana, discutindo o fenômeno cultural a partir de processos de dispersão, diferenciação, contato e isolamento dos grupos humanos. No debate que se faz necessário diante da proliferação geométrica do extremismo racial do qual os sites da Internet são apenas a ponta do iceberg, a ponderação do grande mestre francês permanece no centro de qualquer discussão científica como um dado de verdade, embora os sites analisados pareçam descartar esta informação, mantendo-se fiéis à tendência de “repudiar pura e simplesmente as formas culturais, morais, religiosas, sociais e estéticas mais afastadas daquelas com que nos identificamos”, mesmo que a distância física destas formas se reduzam “na faculdade ou no trabalho em que você é obrigado a conviver com a corja negra, mestiça e judia” (V88). Tal etnocentrismo encontra, no contexto contemporâneo preenchido por debates acerca de semelhanças e diferenças, revolução de paradigmas gerada e gerida pela genômica, demandas nacionalistas e neocolonialistas, um espaço para se revitalizar e difundir.

Paixão pelo ódio

Desenvolvendo um mapa da atual configuração do neonazismo no Brasil e no mundo, a socióloga e jornalista Helena Salem adverte que embora os grupos neonazistas, politicamente, se configurem como pequenos, em termos de força política, denunciam uma realidade filosófica e histórica mais ampla. Na Internet estes grupos desenvolvem sites racistas, neonazistas e revisionistas, posicionando-se contra judeus, negros e mestiços construindo para seus objetos de ódio identidades e classificações. Enquanto o faz, cada agente destes grupos arquiteta também para si uma moldura: distintiva, demarcada pelo desejo de segurança e que busca responder ao apelo de individualismo e reconhecimento dos novos tempos, moldura que determina o que ele deve pensar, sentir e como deve agir para efetivar sua identidade. Esta identidade é, segundo Sartre, fruto de uma paixão, ainda que “certamente apresente-se sob forma de proposição teórica”. Esta paixão faz do antisemita “tudo menos homem” e persuade ao racista de que seu verdadeiro lugar no mundo, aquele a que tem direito a ocupar, foi alienado pelo judeu e/ou pelo sionismo.

“Ou a raça ariana ou a praga judia”

Para não nos determos no cinismo e na indiferença que sangra abundantemente dos sites analisados, e nos focarmos apenas em como elaboram suas práticas discursivas, é possível perceber, rapidamente, o quanto em sua declaração acerca de que “ou a raça ariana ou a praga judia terminará neste embate final, a evolução assim o exige” (V88) é demarcada por um paradigma biológico, análogo ao debate evolucionista que emoldurou a instituição da antropologia moderna como disciplina acadêmica. Defendendo um descartar de qualquer forma de relativismo cultural (“não existe a sua verdade, ou a minha verdade, mas a verdade, única e racial” – NA; “este relativismo é uma magia judaica que desviou a humanidade de sua evolução natural” – V88), e atribuindo um sentido racial a todos os processos históricos (“as demais raças, não são capazes de criar ou evoluir longe da influência Ariana” – V88), os sites analisados postulam equivalências diretas entre aspectos genéticos e traços culturais, ignorando a complexidade dos sistemas de classificação da natureza ou as elaboradas técnicas de produção de artefatos que preenchem milhares de páginas de relatos etnográficos. O etnocentrismo e toda a crítica antropológica a suas demarcações aparecem no site; o primeiro como verdade absoluta, a segunda como fabricação de “mentalidades judias torpes, como de certos antropólogos judeus” (V88). Considero urgente que a antropologia se mantenha fiel à herança de auto-reflexão, filosófica, moral e politicamente, denunciando os hiatos do discurso racista e auxiliando na defesa da totalidade humana . Nesta reflexão, as críticas foucaultianas acerca da microfísica do poder, da arqueologia do saber, o antiesteticismo de Baudrillard, as contribuições teóricas de Derrida, Guattari e Deleuze, encontraram um lugar importante, por proporcionarem à Antropologia uma análise de sua participação nos processos colonialistas e elucidarem muitas discussões atuais. O projeto de uma nova visão antropológica que nasce destas discussões acerca das quais há milhares de páginas para ler e pensar, deve abarcar também, acredito, uma resposta às questões deflagradas pela análise dos sites pesquisadas, que espero ter, minimamente, esboçada neste artigo.

* Adriana Dias, em tese de mestrado em Antropologia Social defendida em 06/11/07, na Unicamp

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