A Pergunta do Claudionor e a transparência do mal.
Unde Malum? Foi esta a pergunta instigante que o Claudionor Rolim da Costa me enviou outro dia. Senti-me o próprio rebe contestando numa responsa a indagação mais importante que o humano jamais fez e continuará fazendo. Busquei esta pequena crônica escrita anos atrás e preferi responder de público à pergunta instigante para que todos possamos conversar sobre um tema que acompanha a humanidade desde sempre. De onde o mal?
A natureza do mal sempre foi um problema para a civilização monoteísta. Como pode haver mal num mundo de um só Deus que cuida de tudo como se fosse um jardineiro dedicado? Frente à unidade do ser humano em uma criação divina onde colocar o Mal? Uma solução foi culpar o ser humano. Este, ao pecar estragando a obra perfeita de Deus faz necessária a intervenção divina para salvá-lo do seu pecado original e repetitivo através do perdão e estamos conversados. Ou serão melhor dois deuses? Um mal e outro bom e com isso livrar a cara de todos supondo tratar-se da influência de um ou do outro sobre um humano manipulado como uma marionete. Reagindo ao dualismo zoroástrico de um mundo e dois deuses, o profeta Isaias trouxe uma afirmação perturbadora falando em nome de deus: “Formo a luz e crio as trevas, faço a paz e crio o mal”. Eis o Deus monoteísta em sua plenitude, assumindo que o homem criado à sua imagem e semelhança não comporta a divisão simplista da batalha da luz contra trevas. Ao que parece a mente humana ainda resiste às antigas idéias do profeta. Claro, é muito mais simples expelir o mal e colocá-lo no outro. Assim o rosto humano do próximo, no lugar de convite ao esforço de conhecê-lo, transforma-se na máscara do temor a ser varrido da face da terra.
Desde a pequena maldade do dia a dia, até o horror da guerra, é sempre fácil identificar o mal nos atos e nas palavras dos outros. A dificuldade de reconhecê-lo em nós mesmos se instaura quando, apaixonados pelos nossos argumentos, nos tornamos emires da razão, justificando qualquer gesto próprio de acordo com os nossos desejos inquestionáveis do momento. O importante é ser assertivo, ensinam os cursos de liderança nas empresas contemporâneas.
Movidos por profundo despudor, vemos como é fácil fazer renascer em nós a religião de Zoroastro, dividindo o mundo em bem e mal sem qualquer preocupação por outra experiência que não seja a própria. Os debates políticos são excelente exemplo deste paradoxo. Em nome da “justiça” da qual me declaro representante, nego qualquer proximidade entre mim e meu opositor, rompo as pontes que nos unem como humanos, destruo-o com argumentos e atos sem a mais mísera sombra de culpa. Afinal, cobertos pela razão não enxergamos mais nada...
A Cabalá, o pensamento místico-filósofico judaico, pode nos ajudar nesta reflexão. No seu já popularizado esquema de forças chamado de Árvore da Vida, a Cabalá constrói uma teoria das influências que regem as relações humanas e cósmicas. Um campo de qualidades do divino que se desdobra em toda criação. Chamadas Sefirot, essas dez qualidades interagem em tensão permanente sendo influenciadas pelos atos humanos e influenciando em troca o destino do mundo. Forma-se então um campo de influências de dar inveja a qualquer pensador da complexidade.
Duas destas qualidades dizem respeito ao nosso tema. De um lado da Árvore, o Din/lei, do outro a Compaixão/ Hessed. Sem a lei que coloca os limites necessários para que a vida se organize, a doação infinita da compaixão não dar forma ao mundo. No entanto, sem compaixão o mundo dá forma ao mal. Curiosamente na tradição da Cabalá existem versões em que ao invés do nome Lei/Din esta força é chamada de Gvurá. Ela tem a mesma raiz que dá tanto origem à palavra macho-guever quanto a heroísmo-gvurá.
Prefiro trabalhar com as duas opções ao invés de excluir uma. Ficando tanto com Din quanto com Gvurá, podemos considerar que a lei sem compaixão se transforma em força extrema, rigorosa, que desconhece o outro no vigor que lhe dá a certeza absoluta em si mesma. Assim são as ditaduras quando encarnam uma lei única ignorando qualquer diferença. Assim também se comportam os líderes populistas contemporâneos quando buscam encarnar a verdade e não admitem qualquer critica que soe como desvio ou diferença. É o grande “Eu Sou” que entra em jogo naquele momento. Um Eu sem máculas que se apresenta enquanto protetor de todo mobiliza as carencias humanas e anula a compaixão que equilibra esta força desmesurada da paixao introduzindo a diferençae mantendo a capacidade de pensar. Na paixão não existe um pensamento capaz de diferenciar o eu do tu.
É aí, como já aprendemos ao longo da historia, que se desperta a paixão avassaladora pelo líder. Nesta hora o amor próprio de cada um vai nas alturas porque se sente parte de um totalitarismo onde se sente protegido e querido pelo líder paternalista ou pela uma mulher-mãe que ele escolhe para amar ao povo. Amor tão poderoso quanto o amor divino. É aí como também acontece no ambiente religioso fundamentalista, que começa a se apagar a razão pensante .
Uma opção interessante é utilizar a linha de pensamento da Cabalá e o seu campo de forças composto por cada Sefirá. Bem e Mal deixam de ser uma especulação metafísica para se integrarem a cada uma das criaturas formadas à imagem destas mesmas forças do divino. Quando o Rigor de Gvurá, do qual falamos, reina absoluto, ele extingue o diálogo na face da terra por que anula a compaixão que se expande em direção ao que está fora de si. A conclusão é simples. Na medida em que me torno impermeável ao outro instauro o rigor e crio o mal sem qualquer possibilidade de atenuá-lo através da compaixão de Hessed que marca a existencia do outro fora de mim. O rigor todos sabemos como funciona.
Eis aí um esquema que aponta de maneira esclarecedora tanto para a violência diária de nossas relações quanto para as grandes guerras que assolam o planeta. Sem santos de um lado e malfeitores do outro, é do esforço racional de falar e ouvir que nasceria a possibilidade de construir o encontro. O exercício do mundo visto por esta ótica transforma a experiência humana num constante chamado para a importância de nossas palavras e gestos. Ao invés de uma ética infantil que almeja um mundo idealizado nos tornamos construtores de uma ética adulta pautada no compromisso e no trabalho diário. De crianças fantasiosas atrás de religiões infantilizadoras, passamos a adultos responsáveis praticando religiões de adultos. Nada fácil.
Não será casual que a palavra Messias (machiach) tem em hebraico a raiz siach/conversa. Meditando sobre este fato a tradiçãonos ensina que o tempo do Messias será de muita conversa, bate papo e esclarecimento pacífico de dúvidas da Torah acumuladas ao longo de milênios. Talvez por que nessa época, como profetizou Isaias, não estudando mais as artes da guerra e nem levantando espadas uns contra os outros, sobraria tempo para jogar conversa fora. E aí, de conversa em conversa, iremos vendo como é que ficou aquela velha amizade, naquele papo furado num bar de um Leblon de tempos menos delirantes que agora e o mal, abandonado e solitário, dormirá, enfim, num sono de algum justo. Entorpecido de tanta conversa construída entre nós através do equilíbrio sempre instável entre a Lei limitadora de Din e a compaixão acolhedora de Hessed até o mal,finalmente,dormirá no sonho dos justos.
Um grande abraço meu caro Claudionor.
Comentários