Amós e a emergência do universalismo profético judaico
(Publicado em CARVALHO, Alexandre Galvão (ed.): Interação social, reciprocidade e profetismo no mundo antigo.Vitória da Conquista, UNESB, 2004).
Edgard Leite
DELIMITANDO O TEMA
O profetismo judaico é um fenômeno histórico-religioso complexo e plural. A tradição rabínica afirma a sua existência desde as origens do povo judeu, como um dos eixos fundamentais da experiência religiosa judaica. Por meio dele, os elementos definidores do pacto entre Deus e os judeus foram estabelecidos. Tanto Abraão quanto Isaac, Jacó e Moisés teriam sido, nessa perspectiva, profetas – mais precisamente os quatro primeiros. Segundo Oséias (Oséias, 12:14) (circa século VIII a.C.), literalmente, “Deus fez Israel subir do Egito por intermédio de um profeta”. O historiador contemporâneo deve considerar, no entanto, as implicações decorrentes do desenvolvimento dessa tradição. Certamente o profetismo, na sua diversidade histórica, possui elementos recorrentes ao longo do processo de construção da identidade religiosa e étnica judaica (FISHBANE, 1994, p. 63). Mas também apresenta particularidades, igualmente determinantes para a compreensão do fenômeno em sua longa duração.
Parece evidente que o profetismo, em sua dinâmica formal, não era estranho às demais culturas com as quais os judeus dialogavam na Antigüidade. Existem referências a atos “proféticos” em diversos textos antigos do Oriente Próximo. A estela Mesha, datada do século IX a. C., menciona a ordem que a divindade moabita Kemosh deu ao rei Mesha de atacar a cidade de Nebo. Um texto egípcio do reino antigo (circa 1900-1785 a.C.) apresenta um certo Neferti, sacerdote-escriba da deusa Bastet, que é conduzido ao faraó Snefru, da IV dinastia. Ele prevê uma época de desagregação social e política que terminaria com o advento de um
Rei, vindo do sul. Este seria responsável pela virtual destruição dos inimigos dos egípcios e pela restauração da justiça e da ordem (PRITCHARD, 1950, p. 444-446). Nos documentos do arquivo real do reino amorita de Mari, na Mesopotâmia, encontramos os registros das comunicações das divindades Dagan, Adad, Annunitum e Diritum ao rei Zimrilim. Estão presentes nesses textos fórmulas clássicas, que serão mais tarde utilizadas na literatura profética judaica, como “Dagan me enviou, ou assim falou Annunitum”. Os oráculos, interlocutores das divindades, ligados aos templos, são denominados de diversas formas nessas fontes. Uma delas é o termo nabu, provavelmente um cognato da expressão hebraica nabi, com a qual se designa o “profeta”. (BLENKINSOPP, 1996, p. 43).
Também os gregos tinham os seus mantis, prophetes e chresmologos. Os sábios que produziram a tradução grega dos textos hebraicos, a chamada “versão dos setenta”, ou Septuaginta, utilizaram o termo prophetes para traduzir nabi, entendido como “porta-voz”, ou “aquele que fala” (MEEK, 1952, p. 2000). Entre os gregos, usava-se o termo prophetes para designar o indivíduo que realizava a ação de falar e proclamar, usualmente, uma mensagem divina (POTTER, 1994, p. 11; BLENKINSOPP, 1996, p. 27). Mas os “profetas” gregos eram principalmente “transmissores” da mensagem dos deuses, e não “interlocutores” capazes de um diálogo em igualdade de condições com o divino. Moisés, por exemplo, encontrou-se com Deus panim el-panim, face a face, “como um homem conversa com um amigo” (Êxodo, 33: 11). A tradução grega do termo hebraico não dava conta, portanto, da real dimensão do fenômeno.
Podemos portanto dizer que, desenvolvendo-se paralelamente a esses “profetismos” mesopotâmicos, egípcios, cananitas e mediterrâneos, o profetismo judaico era dotado de uma expressiva originalidade. Hilda Graef chamou a atenção para o peculiar diálogo contido na relação entre Moisés e Deus, presente de uma forma ou outra em toda tradição profética. Este inaugurou, no pensamento do Oriente Próximo, a possibilidade de um encontro pessoal com o divino, no qual o ser preserva sua integridade individual e, embora finito, torna-se capaz de uma interação em igualdade com o infinito (GRAEF, 1972). De fato, a teologia judaica rompeu, ao longo do seu desenvolvimento nessa remota antiguidade, com muitos paradigmas religiosos então existentes na região. O judaísmo passou a negar a existência de um abismo estrutural de impossível transposição entre as dimensões do mortal, transitório e imperfeito e do imortal, eterno e perfeito. Essa distância começou a ser entendida pelos hebreus como superável por meio do encantamento do Eterno pelo transitório, ou de Deus pelo homem. Relação de difícil aceitação racional no mundo antigo.
No seu desenvolvimento histórico, o profetismo judaico apresenta certos momentos decisivos. A historiografia contemporânea tende a valorizar o aspecto que o fenômeno adquiriu em um determinado período histórico, entre o X e o VI século a.C. (BLENKINSOPP, 1996, p. 6). Esse período tem início em torno de 1000 a.C. quando, em parte, pela fragilidade circunstancial das grandes potências regionais, os hebreus conquistaram a sua independência política. O fizeram primeiro de forma unitária, sob Saul, David e Salomão, e depois de forma fragmentada nos reinos de Israel, ao norte, e Judá ao sul. Esse período de autonomia terminou com a destruição de Israel pelos assírios, em 734-722, e de Judá pelos babilônicos, em 586. Alguma soberania nacional foi restabelecida, por fim, com a conquista da Babilônia pelos persas, em 539. No decorrer desses momentos, amadureceram as questões básicas do pensamento profético. Neles atuaram diversos profetas que, de diferentes maneiras, declinaram não só algumas implicações gerais e particulares dessa relação entre o humano e o divino, mas também os elementos identitários judaicos nela imbricados. Os textos relativos a esse período encontram-se, em sua maioria, na porção da bíblia hebraica conhecida como Nebi’im. Englobam tanto os livros históricos onde aparecem profetas que não deixaram textos escritos, como Elias e Eliseu, quanto os livros cuja autoria é atribuída a profetas específicos. Neste último caso, Isaías, Jeremias e Ezequiel são os mais extensos, e Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias, os de menor extensão.
Numa perspectiva geral, os autores tendem a concordar que, em sua forma final, muitos dos livros proféticos contidos em Nebi’im datam do período persa. Defende-se, igualmente, que o período persa foi fundamental não apenas na consolidação dessa literatura profética, mas também “na formação das tradições legais em sua forma escrita final” (BLENKINSOPP, 1996, p. 11). Mas é razoável supor, como assegura Blenkinsopp, que, antes de suas derradeiras edições, pequenas coleções de textos tenham sido elaboradas durante a vida dos profetas, pelos próprios ou discípulos e transmitidos pelas gerações subseqüentes (BLENKINSOPP, 1996, p. 13). Isso significa que guardam, em suas estruturas, não apenas a marca de um redator final, mas também os elementos das épocas em que foram elaborados.
ABORDAGENS TEÓRICAS DO TEMA
O surgimento dos estudos contemporâneos sobre a tradição profética judaica está relacionado à ampliação do conhecimento da Antigüidade do Próximo Oriente. Principalmente, portanto, após a tradução e interpretação dos textos egípcios e cuneiformes, no decorrer do século XIX. Rompeu-se então, de forma sustentada do ponto de vista documental, com as perspectivas exclusivamente racionalistas, idealistas ou românticas, mas basicamente ensaísticas, que proliferaram a partir do século XVIII. O pioneiro trabalho que repercutiu os novos estudos de Antigüidade foi o de Gustav Hölscher, Os profetas, de 1914. A tese de Hölscher, sob o ponto de vista da história das religiões, foi a primeira a chamar a atenção para o contexto mais amplo do assunto, afirmando que o profetismo era, na verdade, uma experiência religiosa característica da Ásia Menor, Síria e Palestina. A Bíblia reconhecia tal fato (por exemplo, Jeremias, 27: 1-15), mas Hölscher problematizou o tema. Ele afirmou que o profetismo era um fenômeno próprio não de grupos sociais nômades, como outrora foram os judeus, mas sim das culturas agrárias da região. Asseverou, portanto, que seus elementos gerais teriam sido assimilados de seus vizinhos pelos hebreus. Tratava-se de uma tentativa de dimensionar historicamente a tradição profética para além dos limites teológicos da discussão, aceitos pelas diferentes confissões religiosas, cristãs ou judaicas.
Essa mesma tendência instalou-se nos estudos de crítica histórico-literária que buscavam trabalhar com as estruturas dos textos e, assim, tentar resolver o problema das origens históricas do profetismo e de seus conceitos básicos. É o caso de Hermann Gunkel (1923), para quem a essência da experiência profética era a questão da identidade com Deus e com seus desígnios em história e de S. Mowinckel (1914), que levantou as associações entre certos profetas e as instituições do Templo. Nesta última direção, um criticismo mais específico permitiu a depreensão da existência de sub-tradições proféticas, quer institucionais ou não, quer regionalmente identificáveis. Por exemplo, Hans Walter Wolff (1964) propôs a filiação de Oséias com a tradição da pregação levítica do reino do Norte e de Amós com a tradição sapiencial da monarquia em Judá (WOLFF, 1973).
Um autor com grande influência teórica nos estudos do profetismo judaico foi Max Weber. Ao reafirmar uma perspectiva histórica do assunto, Weber entendeu o profetismo como originário dos conflitos decorrentes da passagem da federação tribal para a monarquia em Israel. Derivou daí a explicação para o discurso antiinstitucional dos profetas, sobrevivência de formas arcaicas de “êxtase guerreiro”, resistentes à complexidade institucional da monarquia (WEBER, 1963). Num outro momento, Weber classificou o profeta na figura do “indivíduo dotado de carisma”, o que o libertaria da necessidade de reconhecimento institucional – desempenhando a profecia, do ponto de vista histórico, tanto um papel desestabilizador quanto conservador (WEBER, 1963).
Nas últimas décadas os estudos históricos sobre o assunto têm evitado generalizações e procurado centrar as discussões na análise de profetas específicos. Há certas dificuldades operacionais para isso, já que a arqueologia dá poucas evidências para iluminar os períodos em questão, e os textos proféticos, segundo Blenkinsopp, contêm poucas passagens biográficas e autobiográficas as quais, muitas vezes, são obscuras (BLENKINSOPP, 1996, p. 32). Mas parece consenso que não se deve crer em um único tipo de profetismo do ponto de vista histórico, mas em diversos. Alguns profetas parecem, como Samuel, ter surgido em círculos próximos ao poder. Outros aparentam ter desempenhado algum tipo de trabalho agrário antes do chamado, como Eliseu, e assim por diante (BLENKINSOPP, 1996, p. 33).
Blenkinsopp defendeu a existência de, pelo menos, uma distinção visível entre o que chamou de profecias metropolitana e provincial. Tendo ambas como objetivo a reconciliação do povo judeu com Deus, expressariam, no entanto, tendências políticas e sociais distintas. Por exemplo, em Miquéias, vindo do centro provincial de Moreshet, a sudoeste de Jerusalém, encontrar-se-ia uma radical e aguda crítica das instituições. Esta não seria totalmente verificada em outros profetas, porventura ligados à autoridade central ou ao Templo. Seria essa tensão social que influenciaria, na sua opinião, as dimensões sociais do Deuteronômio (BLENKINSOPP, 1996, p. 3), cuja elaboração data do período final da monarquia. Ele sugere que uma das razões para a redação e promulgação dos códigos de leis é precisamente “neutralizar os desconcertantes e geralmente contraditórios apelos dos profetas” (BLENKINSOPP, 1996, p. 15), isto é, atender às demandas dos setores periféricos ou subalternos. A legitimação religiosa da fala profética não parece deixar dúvidas de seu poder transformador social. “A fórmula característica ‘assim falou Iahweh’, indica que o profeta vê a si mesmo como um intermediário entre o povo e o seu Iahweh [...] o que leva muitas vezes a um conflito com as autoridades e jurisdições estabelecidas nas esferas política e religiosa” (BLENKINSOPP, 1996). Na sua opinião, portanto, a presença de preocupações sociais nos textos bíblicos adviria precisamente dessa tensa e complexa relação entre os profetas e o poder.
Segundo Blenkinsopp, à maneira de Weber, parece evidente a existência de uma íntima associação histórica entre o amadurecimento do profetismo judaico e a instauração da monarquia. Observemos que Samuel unge tanto Saul quanto David, e é a perda do suporte profético do primeiro que causa a desestabilização do regime. É com Samuel que o profetismo de Nebi’im tem seu início, já que, a partir desse momento, as chamadas divinas tornam-se freqüentes, generalizadas e altamente politizadas. O envolvimento de indivíduos e grupos proféticos em política, na ascensão e na queda de governantes e dinastias significa que profecia foi desde o princípio um fenômeno problemático. A instabilidade política do reino do norte, decorrente de um intervencionismo militar permanente, em oposição à estável permanência da dinastia davídica no sul, estaria relacionada à força do profetismo em Israel, donde a equação weberiana de uma relação entre profetismo e militarismo encontrar algum eco documental.
O que podemos dizer é que a sociedade judaica durante esse longo período esteve tomada por uma profunda insatisfação religiosa, social e política. As respostas dadas a essa crise, no entanto, não podem ser totalmente explicadas apenas por variáveis objetivas. Os profetas tentavam lidar, além desses elementos concretos, com as grandes questões da existência. E foi o pano de fundo do judaísmo que forneceu as bases para o entendimento dos processos em curso. Os princípios jurídicos e éticos tradicionais e as concepções teológicas sobre os mistérios da existência e seu desenvolvimento delinearam as respostas proféticas. Como em algumas outras experiências históricas de construção de soluções para assuntos particulares, alcançou-se uma percepção profunda da totalidade, cujo impacto foi crucial para a construção da identidade religiosa do povo judeu. As especulações feitas pelos profetas sobre a natureza dos pactos políticos e sociais e das transformações históricas, sobre as responsabilidades sociais e a realidade da condição humana tiveram um efeito duradouro na consciência das sociedades do Próximo Oriente e, por meio do cristianismo e do islamismo, que reivindicam essa herança, do resto do mundo. O nosso objetivo nesse estudo é apontar a singularidade e a relevância do profeta Amós na fundamentação das grandes linhas do pensamento profético.
AMÓS E SEUS CONTEXTOS
Após a morte do Rei Salomão (circa 930/922 a.C.), o Estado centralizado fundado por Saul e David entrou em colapso. Antigos e recentes ressentimentos que opunham as tribos do norte à tribo de Judá foram decisivos para a ruptura institucional que culminou no surgimento do Estado de Israel. Este recusou a continuidade da dinastia davídica e escolheu seu próprio rei, Joroboão, o primeiro de uma seqüência caótica de dezenove monarcas (KUHRT, 1995, p. 468). Um longo período de retração política na Mesopotâmia, Egito e Anatólia favoreceu, como já foi mencionado, a existência independente dos hebreus. Essa fase, no entanto, começou a encerrar-se com a segura emergência da Assíria.
A partir de 745 a.C. os assírios iniciaram sua expansão. Seu poder acabou por estender-se sobre quase todo o Oriente Próximo, até o Egito. O Estado de Israel foi conquistado em 722. O Império Assírio foi o primeiro de uma série sucessiva de poderes hegemônicos no Mediterrâneo Oriental. Judá seria arrasada no decorrer da posterior expansão babilônica. A tentativa judaica de reconquistar e consolidar a independência, séculos depois, sob a dinastia dos asmoneus, terminou no transitório regime de Herodes e, finalmente, no domínio romano. Durante esse período, por duas vezes, o templo de Jerusalém foi destruído, a primeira pelos babilônios, a segunda pelos romanos e inúmeras vezes profanado. Sem condições de enfrentar tais poderes continentais, portanto, os judeus atravessarão a partir da expansão assíria quase mil anos de vicissitudes que culminarão na derradeira e trágica revolta de Bar-Kokhba, no século II a.C.
As impressões escatológicas advindas de todo esse processo, ao longo de seu desenvolvimento, são agudas e marcadas pela crença na futura restauração da paz, unidade e harmonia do reino de David, mediante um seu descendente. Implicaram, de forma original, na gradual valorização do processo histórico como a dimensão por excelência para o entendimento das ações divinas. Essas idéias aparecem, por exemplo, culminadas no helenístico Livro de Daniel, que contém uma reflexão retrospectiva sobre todo esse processo histórico. Ali, Nabucodonosor sonha com um gigante de pés de barro (Daniel, 2: 31). Desse sonho se depreende que, após a sucessão de quatro grandes impérios, advirá um “reino que jamais será destruído” (Daniel, 2: 44). A ameaça assíria, portanto, inaugurou uma fase de dificuldades e incertezas. Os contemporâneos a verão – e com razão – com grandes e sinistras preocupações, e os pósteros, como o início de um grande e terrível ciclo de brutalidades, dotado, no entanto, de um profundo significado religioso. As obras dos profetas foram escritas e reescritas tendo em vista essa realidade religiosa e suas inúmeras implicações conceituais. Amós, no período da expansão assíria, é um dos primeiros a pensar no significado e movimento da história como um espaço por excelência para refletir sobre a ação de Deus. Lança, portanto, as bases de um pensamento que irá adquirindo consistência cada vez maior nos séculos subseqüentes.
AMÓS
O livro atribuído a Amós é o terceiro, segundo na septuaginta, da parte de Nebi’im que reúne os textos dos doze profetas ditos “menores”. No entanto estabeleceu-se, no estudo crítico da obra, a sua precedência cronológica. Isso parece tornar Amós o mais antigo dos profetas a deixar escritos. A versão final do documento é certamente uma recriação deuteronomística, isto é, dos historiadores e teólogos dos momentos finais da independência e do período do exílio na Babilônia (após 586 a.C.), de um texto anterior (provavelmente posterior a 722) oriundo de Judá. Origem inferida por conta da centralidade que ali assume Jerusalém. Nele estão interpoladas construções típicas deuteronomísticas, que também encontramos em Reis (BLENKINSOPP, 1996, p. 74). Por exemplo, o procedimento de datar os acontecimentos a partir da correspondência sincrônica dos reis de Israel e Judá.
Era preocupação dos editores que viveram naquela época, principalmente após a conquista de Judá pela Babilônia, consolidar as tradições orais e escritas e entender as ações proféticas num plano mais amplo de determinações divinas. Nestas, os profetas teriam sido interlocutores e anunciadores. Amós foi visto, por esses autores, como um daqueles que, na época da independência política, apontou o inevitável colapso da ordem existente, por conta dos pecados dos homens e das reações divinas a essas transgressões, dadas no interior da história. Não nos parece, no entanto, que o tema da valorização da história contido em Amós deva ser entendido como uma interpolação deuteronomística. O mais certo talvez seria dizer que a história deuteronomística, em seus elementos teóricos mais gerais possui suas raízes na obra dos profetas anteriores, entre eles Amós. Se a legislação social do Deuteronômio parece ser uma resposta parcial à pregação profética, a concepção histórica deuteronomística talvez possa ser entendida como fruto de conceituações inicialmente defendidas pelos profetas.
Amós, apesar de nascido em Judá, viveu em Israel, segundo consta, sob o reinado de Joroboão II (786-746) enquanto governava Judá o rei Uzziah (783-742). Foi testemunha e interlocutor das ansiedades do período que antecede a fase do colapso da existência independente dos judeus. O texto o designa como pastor, nascido em Tekoa, uma vila a sul de Belém, em Judá. Ele mesmo se qualifica como “pastor e cultivador de sicômoros” (Amós, 7:14), o que nos permite, como diversos autores o fazem, entendê-lo como oriundo de algum tipo de setor rural proprietário periférico. Provavelmente um “provincial” segundo a tese de Blenkinsopp. Marginal, de qualquer forma, à estrutura do Estado e provavelmente vítima de suas políticas tributárias. Apesar de não se considerar um profeta, “não sou profeta nem filho de profeta” (Amós, 7:14) – provavelmente por discrição religiosa –, afirmou que Deus lhe tirou de “junto do rebanho” e lhe disse: “Vai, profetiza a meu povo, Israel!” (Amós, 7:15).
Weber entendeu a ação de semelhantes profetas como demagógica e panfletária (WEBER, 1968, p. 444-446). No caso de Amós, seu discurso era dirigido a toda a sociedade, e não apenas aos integrantes da corte, como era comum entre muitos “profetas” gentios e judeus metropolitanos. Numa das poucas passagens biográficas do texto, Amasias, sacerdote em Betel, denuncia Amós como conspirador ao Rei, porque teria profetizado que “Jeroboão morrerá pela espada e Israel será deportado para longe de sua terra”. Amasias, temeroso da ação política e agitadora profética, pede a Amós que vá para Judá e passe a profetizar lá (Amós, 7:10-17). Podemos assim visualizá-lo como um agitador social, atuando junto aos povos à revelia das instituições existentes. Essa “função” marginal não é estranha à maior parte dos profetas, e a história de confrontos com as autoridades constituídas é freqüente nos textos.
Tal fenômeno era em parte decorrente da idéia de que Deus encontra-se livre de toda a realidade, mas não existe nenhuma relação natural no universo que se encontre liberta da sua capacidade de intervenção. Tendo em vista as preocupações sociais e coletivistas da tradição legal judaica, entendidas como inspiradas, é de se supor que um dos eixos divinos de ação fosse exatamente a reafirmação da justiça que deveria presidir as relações entre os homens. A ação profética, portanto, considerada como meio ou instrumento de intervenção divina, não tinha por que se prender a hierarquias dadas. Pelo contrário, quanto mais corruptos os poderosos, menor seria em princípio a sua disponibilidade profética de promover a realização da justiça. Assim, não necessariamente o profeta era um homem de poder. De forma diferente dos costumes vigentes no Mediterrâneo oriental, por exemplo, onde as hierarquias eram entendidas como naturalmente dadas, a única relação naturalmente dada no judaísmo era aquela que implicava no poder absoluto do divino, diante do qual reis e escravos são iguais. A sociedade judaica, portanto, estava totalmente aberta à sua crítica interna, não institucional, precisamente pelo fato de que as escolhas divinas eram livres e social e juridicamente direcionadas – o que sempre alcançava e feria os poderes e interesses consolidados entre os mesmos judeus.
O mais significativo era, portanto, o conteúdo da ação profética, isto é, a crítica religiosa, ética e humanista das relações humanas. Poucos sistemas da Antigüidade eram tão humanistas nas suas proposições, já que se entendia que o divino voltava-se prioritariamente para o humano, no estabelecimento da justiça de suas relações. A pólis grega certamente era restrita no reconhecimento dessa humanidade, o budismo indiano ampliava a dignidade a outros tantos seres que não os humanos, mas o judaísmo profético era essencialmente centrado no humano e no funcionamento digno da sociedade humana – principal objeto, assim se defendia, da preocupação divina. Profetas posteriores, em Israel e Judá, desenvolverão esses elementos de leitura da sociedade e da humanidade e os refinarão. Mas o pioneirismo literário de Amós o coloca em um lugar especial na consolidação de uma tradição e no estabelecimento dos parâmetros da crítica profética.
A primeira parte de Amós trata das nações do Próximo Oriente da época e das atrocidades por elas realizadas. Amós defende no texto a idéia de que os atos de violência e injustiça suscitaram em Deus a necessidade de uma resposta vingadora. A lógica de tal resposta divina, num mundo aparentemente entregue à ganância e crueldade, é a da punição generalizada dos homens. Basicamente por aviltarem os interesses coletivos e se subtraírem à relação de temor ao divino, isto é, às suas determinações humanitárias gerais. Assim, Damasco será punida por Deus, porque esmagou Galaad “com debulhadoras de ferro” (Amós, 1:3). Filistéia, “porque deportaram populações inteiras” (Amós, 1:6). Tiro, “porque entregaram populações inteiras de cativos” (Amós, 1:9). Edom, “porque perseguiu a espada o seu irmão” (Amós, 1:11). Amon, “porque abriram as entranhas das mulheres grávidas de Galaad” (Amós, 1:13). Moab, “porque queimou os ossos do rei de Edom” (Amós, 2:1). E, além dessas nações estrangeiras, também Judá e Israel serão condenadas. Judá, “porque desprezaram a lei de Deus e não guardaram os seus decretos” (Amós, 2:4). Israel, porque, entre outras coisas, “esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos” (Amós, 2:7).
Foi introduzida aqui, portanto, a tese da universalização das responsabilidades, da qual não estavam eximidos os judeus. Também eles tornaram banais e corriqueiros atos inaceitáveis de violências. A condenação de Deus remete-se, portanto, a todo processo histórico, cujos frutos são necessariamente trágicos em função da dinâmica atroz de seu desenvolvimento. Tais ações punitivas divinas não advêm apenas, portanto, de causas naturais, como freqüentemente é mencionado nos textos bíblicos, inclusive em Amós, mas dão-se também por meio de acontecimentos políticos, no interior da História. Como escreveu certa vez Heschel, no judaísmo, o “Deus de Israel fala realmente por meio de eventos na história” (HESCHEL, 1999, p. 200). “O judaísmo” – continua – “tenta apontar para um nível de realidade onde os eventos são a manifestação de uma norma divina, onde a história é entendida como a realização da verdade” (HESCHEL, 1999, p. 204). Essa é certamente uma das teses básicas da história deuteronomística, antecipada aqui por Amós.
Na opinião de Amós, os diferentes setores dominantes da sociedade israelita encontravam-se alheios diante desse processo, que é, em sua dimensão visível, o movimento internacional de erosão de uma ordem anteriormente tida por estável. São alheios, principalmente, de sua responsabilidade em tal processo e, por isso, incapazes de perceber o significado mais profundo de toda a crise em curso. Esse alheamento assegura o predomínio da insensatez e é, na opinião do profeta, fruto das contradições internas da própria sociedade de Israel, nas quais todos estão prisioneiros. Tal distanciamento da realidade, ou das determinações divinas, é uma ação cúmplice que se articula nesse quadro geral de colapso. De fato, a disparidade entre uma aparente prosperidade dos setores hegemônicos da sociedade e a existência de um quadro brutal de injustiças sociais é um dos principais pontos de sua denúncia. Essa realidade compromete não só a capacidade dos líderes, mas toda a sociedade e estabelece a situação geral do seu colapso – não apenas material, social ou político, mas também religioso. Por isso, aquele que sabe, como o profeta, que entende o que se passa, tem dificuldade de ser ouvido por seus contemporâneos e “se cala, porque esse tempo é de desgraça” (Amós, 5:13).
Os grupos dominantes da sociedade israelense da época viviam, segundo Amós, em “palácios de inverno e verão ornados de marfim” (Amós, 3:15). Estavam “deitados em leitos de marfim, estendidos em seus divãs... bebem crateras de vinho e se ungem com o melhor dos óleos” (Amós, 6:4-6). E por outro lado, “não agem com justiça [...] aqueles que amontoam opressão e rapina em seus palácios” (Amós, 3:10). “Vendem o justo por prata e o indigente por um par de sandálias... e tornam torto o caminho dos pobres” (Amós, 2:6-7). “Oprimis o fraco e tomais dele um imposto de trigo [...] hostilizam o justo, aceitam suborno e repelem os indigentes à porta” (Amós, 5:11-12). “Esmagais o indigente e quereis eliminar os pobres da terra” (Amós, 8:4). As críticas aos rituais sacrificiais (Amós, 4:4-5 e 5:21-24) não são apenas críticas à idolatria, mas também objeções de natureza social. De fato, tais cerimônias dispendiosas oneravam os povos e eram sustentadas por contribuições compulsórias (BLENKINSOPP, 1996, p. 81).
A ação divina dá-se no interior dos processos históricos, na condenação de todas essas violências mediante uma seqüência de reações. Específicas aos poderosos: “eles serão exilados à frente dos deportados, e terminará a orgia daqueles que estão estendidos” (Amós, 6:7); e gerais a todos: “entregarei a cidade e o que nela se encontra. E acontecerá que, se dez homens restarem em uma casa, eles morrerão!’ (Amós, 6:8-9). Como Heschel afirmou certa vez:
os profetas nos lembram sobre o estado moral de um povo: poucos são culpados, mas todos são responsáveis. Se nós admitimos que o indivíduo é, em alguma medida, condicionado ou afetado pelo espírito da sociedade, um crime individual revela a corrupção da sociedade (HESCHEL, 1975, p. 16).
Essa punição generalizada, portanto, partia da crença na responsabilidade global e universal pelas misérias e tragédias da condição humana. O poder despótico existe porque todos são dele cúmplices, já que as suas loucuras irreligiosas deveriam bastar para desautorizá-lo e promover o seu fim – ou a voz do profeta seria suficiente para a sua supressão. O “dia de Deus” (Amós, 5:18), o momento em que o Criador atuará de forma irada contra os seres humanos é, entre outras coisas, um chamamento divino à responsabilidade dos homens diante de seus atos.
Amós avançou por fim num dos elementos mais significativos do discurso profético e de inumeráveis conseqüências para a história das idéias religiosas no Ocidente. Ele afirmou o caráter universal da Lei. Não se deve esquecer que, nessa época, as concepções ou as regras religiosas e jurídicas tinham basicamente legitimidade social e étnica. Seus limites de validade terminavam nas fronteiras de uma determinada cultura, povo ou grupo social, ou na amplitude de sua área de influência ou autoridade. A idéia de uma universal disseminação da humanidade, tanto no âmbito cultural quanto, principalmente, social, era muito difícil de ser equacionada em sociedades etnocentradas e profundamente hierarquizadas. Com razão se aponta o pensamento de Buddha como um dos primeiros, em torno do século VI a.C., a depreender inclinações universais humanas e pretender formular um sistema de validade universal. Mas os profetas também foram pioneiros, sob bases absolutamente distintas das de Buddha, no processo de entender a humanidade como uma totalidade cultural e social. O monoteísmo judaico, com efeito, trouxe junto consigo a idéia de que todos os homens apresentavam uma qualidade comum, a de serem descendentes de um mesmo ancestral criado “à imagem e semelhança”.
Com os profetas, o judaísmo amadurece como um sistema religioso de validade universal. Amós afirma, com efeito: “Vocês são para mim como os cuchitas, ó filhos de Israel – palavra de Iahweh. Não fiz Israel subir da terra do Egito, os filisteus de Caftor e os arameus de Quir?” (Amós, 9:7). Isto é, todos os homens são iguais em suas grandezas e misérias. Se o pacto entre Deus e os judeus é especial, isso não torna os judeus diferentes dos outros homens. Quando, mais tarde, Isaías escrever: “Eu virei, a fim de reunir todas as nações e línguas; elas virão e verão a minha glória... de todas as nações trarão todos os vossos irmãos como uma oferenda a Deus [...]” (Isaías, 66:18-20). Essa idéia será reafirmada: o pacto com os judeus é especial, mas possui validade universal, e todos os povos deverão, um dia, nele entrar. A ética religiosa judaica e as suas regras não dizem respeito apenas aos judeus, mas a todos os homens e é, levando em conta seus princípios, que Deus atua na história. Não apenas na história dos judeus, mas na história da humanidade. A ampliação dos horizontes religiosos do judaísmo será realizada numa escala nunca antes tentada por qualquer dos sistemas da Antigüidade no Ocidente.
Amós, portanto, representa um marco fundamental na gênese dos principais elementos do profetismo judaico. Ele introduziu no mundo antigo a crença na universalidade tanto da condição humana quanto de princípios éticos de perfil coletivista e igualitarista. Tais idéias, como sabemos, deram a tônica de grande parte dos processos que, a partir de então, tiveram lugar no Mediterrâneo Oriental e, depois, no mundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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