Desde que o presidente dos EUA, Barack Obama, nomeou John Kerry como Secretário de Estado, a sociedade israelense discute em média uma polêmica a cada dois dias. Kerry, aparentemente, assumiu o cargo disposto a trocar o papel dos EUA de intermediário a catalizador do processo de paz entre israelenses e palestinos. De forma distinta de sua antecessora, Hilary Clinton, e do primeiro emissário nomeado por Obama, George Mitchell, o atual ministro do exterior, em um espaço curto de tempo, visitou a região diversas vezes, pressionou o primeiro ministro Netanyahu e o líder da Autoridade Palestina (AP) Mahmmoud Abbas a retornarem às negociações, e forçou a barra para que os dois governos tomassem posturas polêmicas, causando reações da sociedade e, principalmente, de segmentos mais linha dura do governo israelense. A grande pergunta a ser feita é: até que ponto o governo israelense, a AP e outras supostas influências compartilham da mesma vontade de Kerry?

Sou testemunha de que Kerry realmente está se esforçando: o Secretário de Estado já me fez esperá-lo passar por duas vezes até que viesse escoltado com seus mais de dez veículos, uma delas entre Guilo (bairro judaico em Jerusalém Oriental) e Belém e outra na Estrada 1 (que liga Jerusalém a Tel-Aviv). No último mês, seu nome foi visto nas capas de jornais e nas principais notícias dos maiores sites informativos israelenses, e sua foto aparecia nos telejornais quase todos os dias. Quase não se escuta nem lê mais o nome do Presidente dos EUA envolvido com o caso. Kerry assumiu o protagonismo da novela, mas para alguns ele vêm sendo uma verdadeira pedra no sapato.

Na semana passada, o jornalista Thomas Freedman, do diário norte-americano The New York Times, revelou a existência de um “Plano Kerry” para a solução do conflito. Este suposto plano causou forte repercussão na mídia israelense e provocou um terremoto no governo de Netanyahu. O plano não continha nada de novo, sendo inclusive muito parecido com a Iniciativa de Genebra: Criação de um Estado Palestino com base nas fronteiras de 1967; Jerusalém dividida, cada metade como capital de um Estado; a anexação de 80% dos assentamentos judaicos por Israel em troca de terras desabitadas próximas à linha verde; um Estado palestino desmilitarizado, mas com uma polícia comprometida com a contenção do terror e contando com tropas da OTAN em seu auxílio; o reconhecimento dos dois lados, de que a Palestina é o Estado nacional do povo palestino, e que Israel é o Estado nacional do povo judeu; e indenizações aos refugiados palestinos e aos judeus expulsos dos países árabes. Dois pontos levantados por Kerry, no entanto, são novos: a permanência de parte dos colonos israelenses na Palestina, que seriam convertidos a uma minoria judaica no Estado a ser criado; e um prazo de três anos para que todas as exigências sejam cumpridas após a assinatura do acordo.

Duas reações me surpreenderam: a não reação de nenhum elemento do governo à divisão de Jerusalém (até agora) e a aceitação de Netanyahu à existência de uma minoria judaica na Palestina. Era previsível, entretanto, que o líder do partido “HaBait HaYehudi” e Ministro da Economia e das Religiões, Naftali Bennet, reagisse. A quase tudo, diga-se de passagem. Assumindo o papel de “radical de direita do governo” 1, Bennet não faz o tipo que se dobra facilmente. À diferença de Liebermann e dos radicais do Likud, o Ministro da Economia não baseia seus argumentos somente na segurança nacional, mas principalmente em doutrinas religiosas. Bennet pertence a uma corrente nacionalista-religiosa (ou sionista-religiosa), oriúnda do primeiro movimento sionista ortodoxo. O partido posiciona-se contrário à criação de um Estado Palestino na Terra de Israel, alegando ser o povo judeu o dono deste território por direito, utilizando o Tanach 2 como referência, e chegou a propor um plano de anexação dos territórios C da Cirjordânia por Israel.

Naftali Bennet

Não só Netanyahu escutou críticas de Bennet. Nesta segunda-feira (03/fev), a atacada pelo ministro da economia foi a ministra da justiça e negociadora oficial do governo, Tzipi Livni. A líder do partido HaTnua foi repreendida por Bennet após, em uma discussão com o negociador palestino Saeb Erekat, ter respondido que ambos não deveriam atrelar-se a questões de narrativa sobre o passado, mas sim olhar para o futuro e aproveitar a oportunidade de chegar a um acordo 3. Naftali Bennet afirmou que Livni não poderia dar este tipo de resposta como membro do governo: “Narrativa? 2000 anos de nostalgia são narrativa? O Tanach é uma narrativa? Jerusalém é uma narrativa? Os dois Templos Sagrados são narrativas? Narrativa para quem busca as raizes do nosso fracasso nas últimas décadas – fracasso, pois eles falam em justiça e nós em narrativa. Desta forma eu farei o que a Ministra da Justiça, que deveria representar o povo judeu, não fez: a Terra de Israel foi recebida pelos nossos ancestrais há 3800 anos. No mesmo Tanach que acreditam muçulmanos, cristãos e judeus, está escrito: ‘vão para esta terra’. (…) A Terra de Israel pertencia ao povo judeu milhares de anos antes de os palestinos entrarem neste mundo.” Livni não respondeu. A crise entre os dois não é novidade: desde que Kerry (sim, novamente ele) começou a intermediar as negociações, os dois se estranham. A libertação de prisioneiros palestinos em troca da volta das negociações foi o suficiente para que toda a bancada do HaBait HaYehudit atacasse a Livni.

Naftali Bennet não é o único político a participar de polêmicas. O Ministro da Defesa israelense, Moshe Ayalon (Likud) foi mais um a envolver-se com Kerry: Ayalon afirmou que os palestinos não desejam paz e que o que os israelenses deveriam fazer é deixar o tempo passar até que o secretário de Estado norte-americano recebesse o Prêmio Nobel da Paz, pois era tudo o que ele desejava. O Departamento de Estado dos EUA e a Casa Branca reagiram de imediato. Ayalon foi obrigado a desculpar-se, mas seus ataques ao plano de Kerry não cessaram.

A última polêmica não tumultuou somente o governo, como também as relações entre Israel e os EUA. Determinados membros do governo (Ayalon, por exemplo) deixaram claro que com ou sem acordo Israel seguirá seu bom caminho normalmente. John Kerry compreendeu estas declarações como um certo menosprezo às suas tentativas e afirmou que, caso o acordo não prossiga, será difícil evitar um boicote internacional a Israel. Foi a senha para a bomba estourar 4! Boa parte da bancada do Likud, liderados pelo próprio Primeiro Ministro e pelo Ministro de Assuntos Estratégicos Yuval Steinitz, atacaram o discurso de Kerry. Netanyahu afirmou que o boicote não seria nem justo nem viável. Steinitz recomendou a Kerry pensar antes de discursar. Yair Lapid, Ministro das Finanças e líder do partido Yesh Atid, afirmou que não cortará os incentivos às colônias 5. Alguns membros dos partidos HaBait HaYehudi e Israel Beiteynu reagiram com menos cordialidade 6, e aproveitaram a brecha para criticar os palestinos. O assunto boicote (ou sanções) é bastante delicado no país: Israel é o país que mais faz pressão por sanções radicais ao Irã, e não admite ser colocado em igualdade de condições com a República Islâmica. John Kerry causou, ao mesmo tempo, uma grande crise interna no governo e um ódio mortal à sua pessoa.

Kerry (no meio), com Livni (à esquerda) e Erekat (à direita)

O Secretário de Estado dos EUA, no entanto, não parece próximo de desistir. Está acelerando o processo para que se assinem documentos antes da libertação da quarta leva de prisioneiros, no fim de março. A libertação de prisioneiros palestinos é sempre polêmica na sociedade israelense, uma vez que a maioria deles é acusada de ações terroristas (parte comprovada), causando a ira dos familiares das vítimas. Kerry demonstra não querer esperar este momento para progredir. Mahmmoud Abbas, até agora, desaprovou apenas um ponto: o reconhecimento de Israel como Estado judeu. Netanyahu afirma que esta recusa é suficiente para que a situação siga estagnada. Parece um ponto muito pequeno próximo a todas as outras questões juntas 7. A pergunta que fica é: o que acontecerá se Abbas vier a concordar com esta exigência? O governo Netanyahu tem vontade política de assinar este acordo? Caso este hipotético futuro chegue, eu espero que sim. Mas duvido 8. Kerry que me prove o contrário.

* O título é uma sugestão de Yair Mau.

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