Creio que não haja ninguém entre nós que enxergue algum desses assassinos como um Sansão contemporâneo. Por quê? Porque o verdadeiro Sansão lutou frente a frente contra um grupo bem armado e que era maioria. Mais ainda: porque o terrorismo não é uma forma legítima de travar a guerra. E nossa atitude em relação aos árabes? Quase todos nós sabemos distinguir entre os terroristas árabes e o povo árabe. Mas não esperem que os árabes sejam capazes de distinguir entre nossos assassinos e o povo judeu por muito mais tempo. Nesse contexto, como chegar a um entendimento com os árabes? É verdade que há aqueles entre nós que consideram tal entendimento desnecessário e até prejudicial. Mas só os políticos que mais se iludem podem imaginar que nossa comunidade existirá para sempre sem o entendimento e a cooperação com os árabes.
Neste momento crítico, quem encoraja as erupções de violência cega ameaça a própria existência da comunidade judaica. Tudo o que foi construído com tanto trabalho e tanto sacrifício, pedra a pedra, pode ser destruído no caos para onde esses pretensos sansões nos arrastam. Cada golpe que eles acreditam desferir no inimigo fere, na verdade, a nós. Eles são suicidas, mas não como Sansão, que matou 3.000 filisteus na hora de morrer. São suicidas porque arrasam tudo o que foi cultivado por várias gerações de pioneiros dedicados e abnegados. Não temos o direito de fazer isso. "Não matarás", está escrito. Quem mata como eles acaba matando seu próprio povo. Eis a maior e mais fraudulenta decepção de todas: a de que é possível alcançar a redenção através do pecado. Se o povo justifica o assassinato e se identifica com quem o comete, então aceita esse pecado como seu - e deixa aos seus filhos não uma terra livre e pura, e sim uma toca de ladrões.
"Não podemos destruir, com as próprias mãos, a fundação moral de nossa vida e de nosso futuro." | |
Paz genuína - A luta em nossa terra está transbordando numa violência bárbara que se espalha com a velocidade da luz e não poupa nem os velhos, mulheres e crianças. Há pouco tempo, a cidade de Tel-Aviv era capaz de garantir que qualquer árabe pacífico e amante da paz não tinha nada a temer quando caminhasse por suas ruas. Hoje, qualquer judeu que ousa andar por um bairro árabe se arrisca a morrer - assim como qualquer árabe que entra numa área judaica. Judeus ainda são salvos por árabes, e árabes ainda são salvos por judeus, às vezes ao custo de enorme risco. Mas o número de assassinatos de pessoas inocentes está disparando - e são assassinatos cometidos à luz do dia, diante dos olhos do público e até da polícia. Não podemos destruir, com nossas próprias mãos, a fundação moral de nossa vida e de nosso futuro.
A pressa febril com que tentamos obter a declaração de independência de um estado judeu, como se fosse o último momento da história em que seria possível colocar o programa sionista em prática, foi o que nos empurrou para a crise que vivemos hoje. Os antigos hebreus não tiveram sucesso na tentativa de formar uma nação normal. Hoje, os judeus estão avançando nesse caminho num ritmo assustador. Pertenço a um grupo que, desde os tempos em que a Grã-Bretanha dominou a Palestina, não desistiu de lutar pela conquista da paz genuína entre judeus e árabes. Com "paz genuína" queremos dizer que ambos os povos devem desenvolver a terra juntos, sem que um imponha sua vontade no outro. Isso parece ser muito difícil, mas não impossível. Nesse caso incomum (e até mesmo inédito), é questão de se buscar um novo caminho de compreensão e entendimento cordial entre as nações.
Consideramos um ponto fundamental o seguinte fato: há duas reivindicações contrárias uma à outra, duas reivindicações de naturezas e origens distintas, que não podem ser colocadas uma contra a outra. É impossível tomar uma decisão objetiva entre qual delas é justa ou injusta. Consideramos nossa missão entender e honrar a reivindicação contrária à nossa. Ambicionamos reconciliar as duas reivindicações. Não podemos renunciar à reivindicação judaica; a ligação com essa terra é algo superior até à vida do nosso povo - esse trabalho é a sua missão divina. Mas estamos convencidos de que deve ser possível encontrar alguma forma de acordo entre uma reivindicação e a outra. Amamos essa terra e acreditamos em seu futuro. Vendo quanto amor e quanta fé há também no outro lado, achamos que uma união no serviço comum da terra está no alcance do possível. Onde há amor e fé, uma solução sempre pode ser encontrada - mesmo quando isso parece ser uma trágica contradição.
• Martin Buber, de 70 anos, é filósofo, teólogo, professor e educador. Nascido em Viena, é um dos grandes pensadores do sionismo, movimento a que está ligado há meio século. Ex-editor do semanárioDie Welt, principal órgão de imprensa dos sionistas, e da revista Der Jude, publicação mensal dedicada à comunidade judaica alemã, foi professor da Universidade de Frankfurt am Main. Renunciou logo depois da ascensão de Adolf Hitler ao poder, em 1933. Proibido de dar palestras, ainda fundou um centro de ensino judaico em plena Alemanha nazista. Abandonou o país um ano antes do começo da II Guerra, em 1938. Desde então, mora em Jerusalém, onde é um dos expoentes do movimento pelo binacionalismo, a defesa de um país habitado tanto por judeus como por árabes. Em 1946, publicou o livro Caminhos da Utopia, em que detalha sua visão de uma Terra Santa compartilhada pelos dois povos dentro das mesmas fronteiras.
Comentários