Duas Cartas Sobre O Judaísmo Humanista.
Paulo Blank.[1]
A ética é uma ótica”Emanuel Levinas.
Estou Aqui em Israel acompanhando todo o dia a violência generalizada no Navio Marmara, com seus mortos e feridos. |
Carta ao governo Israelense Sres. que me envergonham Judeu identificado com as melhores tradições humanistas de nossa cultura sinto-me profundamente envergonhado com o que sucessivos governos israelenses vêm fazendo com a paz no Oriente. Médio. As iniciativas contra a paz tomadas pelo governo de Israel vem tornando cotidianamente a sobrevivência em Israel e na Palestina cada vez mais insuportável. Já faz tempo que sinto vergonha das ocupações indecentes praticadas por colonos judeus em território palestino. Que dizer agora do bombardeio do navio com bandeira Turca que leva alimentos para nossos irmãos palestinos? Vergonha, três vezes vergonha! Proponho que Simon Peres devolva seu prêmio Nobel da Paz e peça desculpas por tê-lo aceito mesmo depois de ter armado a África do Sul do Apartheid. Considero o atual governo, todos seus membros, sem exceção, merecedores por consenso universal do Prêmio Jim Jones por estarem conduzindo todo um pais para o suicídio coletivo. A continuar com a política genocida do atual governo nem os bons sobreviverão e Israel perecerá baixo o desprezo de todo o mundo.. O Sr., Lieberman, que trouxe da sua Moldávia natal vasta experiência com pogroms, está firmemente empenhado em aplicá-la contra nossos irmãos palestinos. Este merece só para ele um tribunal de Nuremberg. Digo tudo isso porque um judeu humanista não pode assistir calado e indiferente o que está acontecendo no Oriente Médio. Precisamos de força e coragem para, unidos aos bons, lutar pela convivência fraterna entre dois povos irmãos. Abaixo o fascismo! Paz Já! Silvio Tendler Cineasta |
. [1] Paulo Blank é psicanalista, Doutor em Comunicação E Cultura pela ECO-UFRJ, é autor de vários estudos sobre pensamento judaico.
“Quando chegardes ao o lugar das placas de mármore brilhante não digas “Água,Água”. Advertência de Akiva aos que interpretam o que vêm de forma equivocada.
O Anjo Da História
Nestes dias conturbados em que judeus muçulmanos e cristãos guerreiam como nos velhos tempos sobre o mar mediterrâneo, a história, mais uma vez, se repete como tragédia. Tragédia em que os participantes de um jogo mortal fingem não saber das motivações que se ocultam em cada passo dos jogadores. Gritos de vingança se mesclam a apelos de pessoas isoladas dentro de corpos transformados em morada de uma consciência que sofre e deseja estabelecer contatos. Amarguradas, mas, ainda, com um resto de vontade em seus corações des-esperados, elas lançam pedidos de ajuda em e-mails, as mensagens engarrafadas de nossos tempos, imaginando que alguém chegará a resgatá-los. Mas, pode ser que acabem bloqueadas por filtros de segurança sem alcançar as pessoas certas. Ou Erradas.
Faz tempo que passei a considerar que manifestos são lidos pelas pessoas “erradas”. Da mesma forma as palestras políticas são assistidas por aqueles que não precisariam estar no recinto. Quem freqüenta estes lugares já compartilha das idéias expostas. Aqueles que precisariam conhecê-las só saberiam da existência se as mensagens chegassem até eles. Por um breve momento que antecede ao desligamento fatal, elas poderiam ser afetadas por existências estranhas ao seu ser. Problema tão antigo quanto o pensamento que gerou a noção de um mundo completo, sem nada exterior a ele mesmo. Um todo onde emoções e idéias em isolamento geram a sensação de segurança de um Eu em-si-mesmado. Eu maiúsculo. Seguido de um ponto. Final.
Serão as ideologias que perambulam entre nós a extensão social deste Eu cheio de si? Completo. Sem exterioridade. Sem os incômodos de idéias externas que causariam a necessidade de reorganização caso pudessem penetrar naqueles mundos cristalizados.
A ideologia não conhece o diálogo, a ideologia só conhece a si mesma. Tal qual o fundamentalismo religioso ela aspira a ser Leviatã. Monstro devorador de qualquer fato capaz de agitar o modo próprio do seu pensar. A ideologia encarna a verdade e não suporta dar um passo além de si mesma. No extremo de sua falência, por não conhecer a mudança, ela termina numa implosão que a transforma em montoeira de tijolos. A falência das ideologias deixa atrás de si um rastro de destroços que o anjo da história olha boquiaberto.
Mudo de horror e impotência, impossibilitado de voar para bem longe, o olhar esbugalhado, ele não acredita no que vê. A ventania que sopra do Éden mantém as suas asas escancaradas e imóveis. Talvez ele tenha aberto as asas para abraçar os humanos quando saíram do Éden. Neste gesto irrefletido, o Talmud ensina os anjos têm uma capacidade de raciocínio bem menor que a dos homens, ele foi aprisionado no vendaval gerado pelo guardião do paraíso. Rodopiando a espada flamejante o guardião do Éden impede que os humanos voltem a perturbar aquele mundo trancafiado em sua paz. Sem opção eles vivem do suor do trabalho e do rosto, suor de Eva parindo filhos, das mãos transpirando quando experimentam o primeiro medo.
Enquanto o olhar do Anjo de História abarca o redemoinho de rupturas e catástrofes que começa no Éden de um passado distante, nós nos agarramos a restos de verdades. Ilhados sobre escombros flutuantes, temos uma percepção parcial dos acontecimentos. Enquanto o anjo percebe a constância de um tempo sem garantias os humanos imaginam longos processos cheios de lógica e racionalidade. Foi isto que nos ensinaram nas aulas de história, nas cartilhas das ideologias, nas promessas das religiões, nas conversas de nossos pais, e,até mesmo,em certos divãs de psicanálise. Onde o anjo vê rupturas e acasos, nos vemos um progresso caminhando em linha reta.
A Dificuldade de Pensar.
A mente humana não suporta conviver com a existência simultânea de sentimentos e pensamentos contrastantes. Freud percebeu esta realidade da mente e propôs que fosse chamado de caráter o resultado do esforço de anular os sentimentos opostos que existem dentro de cada ser humano. Em grego caráter quer dizer marca. A marca do formão que penetra na madeira e deixa um sulco em seu caminho.
Admitir a existência simultânea de sentimentos opostos sem dizer que se trata de uma contradição, implica num esforço de acolher a diversidade dentro de si. O resultado desta tendência UMnificadora do pensar se revela na facilidade com que supomos que o bem esta do nosso lado e deixamos o mal para os opositores. Existe alguma possibilidade de escapar do caráter que engessa a vida numa seqüência repetitiva sem variações? Se a resposta for sim, teríamos que admitir que a chance de encontrar uma saída para os conflitos humanos passa pela capacidade de submeter a verdade unilateral da ideologia à violência do diálogo. Diálogo significa violência por implicar em renúncia dolorosa a um eu cheio de si que as ideologias, os fundamentalismos ou as teorias e as crenças sempre põem a venda no bazar das certezas. Olhar um acontecimento, pessoal ou histórico, por ângulos opostos ao mesmo tempo, é como admitir que amor e ódio não se anulam e vivem como forças contemporâneas dentro da mesma pessoa. Mais fácil é ditar verdades como as palavras de ordem das manifestações públicas. É preciso perguntar se estas palavras dão ordem aos que protestam ou a quem escuta o protesto? Mas, do que adianta tanta reflexão quando se trata de assuntos que envolvem judeus, muçulmanos, e cristãos em guerra sobre um mar quase parado cercado de história?[1]
A mensagem de Eva e o detalhe onde mora o diabo.
“Paulinho, onde andas? O que vc está achando de tudo isso? Vamos organizar um debate sobre o assunto? E essa carta ai, vc recebeu? Beijos, Eva”
Um dia depois de ter recebido do Kibutz Nachshon, o pedido de socorro escrito pelo Jayme Fucs Bar, Eva me reenviou o apelo de uma pessoa envolvida na mesma tormenta que o Jayme. Era uma carta do cineasta Silvio Tendler, diretor do filme Utopia ou Barbárie, recém lançado nos cinemas. Titulo que me fez lembrar Socialismo ou Barbárie, uma antiga revista dos tempos em que era fácil afirmar de que lado estava o universo da salvação e onde começava o sinistro mundo do diabo.
Dias antes do “tudo isso” que Eva me perguntava, eu andei navegando em pesquisas na internet. Na volta de Israel em um vôo da Air France, no inicio de Maio de 2010, folheando a revista “Le Nouvel Observateur” dei de cara com um título inusitado: Para Salvar Israel. Através dele soube que intelectuais judeus europeus lançaram um manifesto chamado Appel à La raison, um apelo à razão e, assim que cheguei em casa fui conferir no site indicado. Gostei daquelas pessoas que não temiam declarar de publico o seu amor a Israel mesclado à preocupação pelo seu futuro.
Entre as assinaturas do manifesto identifiquei Henri Atlan. Trata-se de um cientista e co-participante do chamado “pensamento da complexidade”, professor em Paris e Tel Aviv, é um autor que me influenciou profundamente. A sua presença junto ao filósofo Bernard Henry Levy deu ao manifesto a legitimação da urgência que nos sacode a todos, intelectuais ou não, que se consideram conectados com o estado de um Israel que amamos. Procurando saber a repercussão do manifesto através da edição digital do jornal Haaretz, descobri a flotilha que se organizava na Turquia e resolvi segui-la.
Lá pelo segundo dia de viagem soube da proposta encaminhada por Noam Shalit, pai do soldado Guidon Shalit raptado pelo Hamas quatro anos atrás e mantido incomunicável até hoje. Noam propôs aos membros da esquadra da paz uma cooperação bem interessante. O pai de Guidon Shalit é hoje figura pública em Israel à frente de um movimento que pressiona o governo israelense a uma permuta do filho seqüestrado por todos os prisioneiros exigidos pelo Hamas. Mesmo aqueles que são assassinos comprovados. O pai do soldado pedia que flotilha pacifista levasse algumas cartas da família para o seu filho em troca do seu apoio publico aos objetivos da esquadra.
Idéia perfeita. Ela teria uma enorme repercussão aumentando o arco pacifista empenhado em terminar uma guerra que nunca para de começar. Ao mesmo tempo conferia aos pacifistas marítimos um grau de legitimidade que eles não possuíam entre o púbico de Israel. De repente, o jogo viraria. De desafiadores da política Israelense eles passariam a ter aliados dentro do estado judaico.Uma quinta coluna do bem, disposta a apoiar um grupo com o qual discordavam demonstrando mais uma vez que a paz pode fazer mais que a política. Eis ai um daqueles fatores externos que embaralham a organização de um mente e promovem o seu avanço. Exatamente o que aprendi anos atrás com Henri Atlan em seu livro “Entre O Cristal e a Fumaça” onde tratava da auto organização do seres vivos.
O fator externo que penetra num sistema obriga-o a sair de seu modo cristalizado de ser e a se reorganizar de uma maneira diferente. Assim, graças a influência dos acontecimentos somos forçados a novas organizações para dar continuidade a um processo chamado vida. O mesmo Atlan que encabeçava o manifesto que me levou a descobrir a flotilha me permitia pensar na importância do que estava acontecendo. Afinal, como Gilad Shalit não é um prisioneiro de guerra, e como a flotilha estava claramente do lado do Hamas, não seria considerada inimiga. Como sabemos, ele foi seqüestrado em Israel e mantido desde então isolado o mundo desde antes da invasão de Gaza. Ate a Cruz Vermelha Internacional nunca teve acesso a ele. Realista o pai de Shalit não pedia a flotilha intermediasse a sua libertação, só queria a entrega de cartas. No dia seguinte descobri que o pedido fora rejeitado. Fiquei cabreiro.
Judaísmos Humanistas?
Humanismo judaico foi o termo que vi nas duas mensagens que transcrevi. Tanto o Silvio Tendler, aqui do Brasil, em seu manifesto de exigências ao presidente de Israel, quanto o Jayme, no coração do conflito em seu grito-de-alerta-pedido-de-ajuda, utilizam o termo Judeu Humanista. Jayme chama o seu email de “Desabafo!”. Palavra que indica pensamentos e emoções contidos que, subitamente, se libertam sem que a pessoa tenha domínio sobre aquela transformação. Elas vêm à tona de maneira desordenada e repentina criando a descontinuidade num tempo que parecia avançar dentro de uma razão lógica. A força do desabafo faz pensar que a história pessoal não caminha em linha reta. O tempo do desabafo é o anjo súbito[2] de um repente inesperado. Força emocional capaz de gerar uma experiência fundadora na vida de alguém ou uma revolução na vida de um povo. Uma visão de tempo que se apóia na tradição judaica. Tempo anacrônico quando a transformação messiânica irrompe dentro da história trazendo o mundo-por-vir para um presente inesperado. Força que se reflete no texto sem cuidados com a gramática, o estilo, a escrita bem pensante. O texto de Jayme transmite na forma o conteúdo do que tenta dizer em palavras incapazes de receber e repassar a força do seu sentimento.Escrita nervosa e cheia de pressa. Emoção que transborda o limite existente entre fala e escrita, até se consumar num grito em maiúsculo. Como se letras minúsculas ficassem apertadas para conter a vontade e a determinação do Jayme em fazer ouvir o seu desejo de instaurar a paz antes da política. Mas, sabendo que não possui este poder messiânico, ele transforma o seu desejo de paz em apelo poliglota e nos convoca a participar.
Basta! Halas! Dai! A Violência! Usando três línguas na tentativa de alcançar ouvintes imaginários, Jayme busca ultrapassar limites “falando” na língua daqueles que não podem ler o que escreve. É através do limite que procura impor à VIOLÊNCIA que ele quer envolver-nos na tragédia e na sua redenção. Como ela não depende só daqueles que sabem hebraico, é preciso também que os falantes do árabe tomem parte neste ato onde não há acusações, mas, tão somente, responsáveis. Para que a energia do desabafo possa parir um momento novo capaz de irromper no estado das coisas, é preciso esquecer a distinção entre mocinhos e bandidos. Querendo a participação dos co-responsáveis na Sulcha que ele pretende organizar, o banquete que sela a paz entre inimigos, Jayme escreve em negrito gritante: Halas! Daí! No ultimo grito, “A Violência”, falta uma crase no A e uma virgula antes. O que lhe dá um sentido de quem grita para chamar a atenção de todos aqueles que não vêm o que está acontecendo. (Olhem, olhem) A Violência esta entrando pelas janelas de minha casa cercada de flores no Kibutz Nachshon.
Dai! É palavra que segundo a tradição compõe um dos nomes de Deus, El ShaDaí transformado pela tradição em EL She Daí, o Deus que (diz) basta! Dai,basta, até aqui eu vou, mas daqui em diante é com vocês. Interpretação que nos remete a Nachshon, personagem que dá nome ao Kibutz onde mora o Jayme. Segundo tradição atribuída ao Rav Tarfon que viveu na época da revolta contra Roma, Nachshon teria sido o primeiro a confiar em Moisés e, dando o passo em direção às águas do mar vermelho, possibilitou a realização do milagre. Eis aí o humanismo judaico em sua vocação de colocar o último milagre, o passo humano em direção á água, em importância igual aos atos divinos que não se realizariam sem ele. Não fosse Nachshon não teríamos presenciado o milagre da abertura do mar e a libertação final dos hebreus.
A Carta do Silvio Tendler
Ainda lembro do Zé Eduardo Baeso Basili nos tempos da ditadura. Professor amado pelos alunos pelo seu método de dar aulas de história desenhando no quadro caricaturas dos eventos e dos personagens de quem falava, ele costumava dizer que o Fascismo é condição natural no homem e a nós competia combatê-lo. Seu argumento era que se tratava de uma posição frente a vida e ao pensamento que se manifestava em todas as ideologias políticas e em cada um de nós. O bicho homem tenta reduzir tudo que lhe pareça complexo à simplicidade imediata da certeza dando voz ao seu Fascismo totalizador. Apesar dos anos e de tantas leituras sofisticadas, nunca esqueci deste ensinamento do meu camarada. Só fiz aprimorá-lo. Anos mais tarde reencontrei o mesmo raciocínio no artigo do Freud que não conhecia naquela época.
No seu texto Silvio Tendler acusa Israel de opositor da paz, e sugere que o governo israelense receba o premio Jim Jones (aquele que realizou um suicídio coletivo de seguidores na selva amazônica da Guiana) e o chama de “genocida”. Dizer “genocida” induz inevitavelmente a pensar em nazismo. Nunca é demais lembrar o perigo da indução como arma da propaganda política que os pensamentos totalitários sempre foram expertos em utilizar. De Goebbels aos EUA passando por Beria e quem mais desejarem. Manobras fundamentalistas que nós, humanos e voluntaristas, utilizamos por causa da dificuldade de superar a certeza ideológica e de não banalizar o uso das palavras por conta de arroubos de verdade. Refiro-me a “genocídio” e “nazismo”. Palavras que pipocam com a mesma desconsideração daqueles que declaram que o holocausto nunca existiu. Se olharmos para o sec. XX somente Alemanha e Turquia (que trucidou os armênios da mesma forma que dizima o povo Curdo neste momento em que escrevo) são lembrados na história pela ação de assassinar metodicamente uma população civil em busca de seu extermínio físico.
Quando, em seu ardor justiceiro, o cineasta sugere um tribunal de “Nuremberg” para o ministro Liberman ele se coloca a disposição daqueles que escondem as suas intenções reais sob o manto protetor de uma discussão politica. Se os israelenses são fascistas, nazistas, cometem holocausto e instauram um apartheid, fica implícito que a guerra é a única maneira de lidar com esta gente. Num ato de franqueza muitas pessoas aqui no Brasil deveriam declarar o que defendem em seu íntimo. É preciso que eles admitam que no fundo consideram que a solução final (cuidado estas palavras contêm um vírus que visa induzir e seduzir o leitor) do conflito é apagar Israel do mapa.O que, sem duvida, não é o pensamento do Silvio. Nuremberg, nazismo, holocausto tal qual Shoá, são palavras que deveriam ser cuidadas para não perder o seu poder diferenciador e só mencionadas acompanhadas de dados concretos que não as deixem soltas como se fosse uma saraivada de bombas capazes de assassinar fatos. É preciso cuidar-se para não induzir na tentativa de tentar seduzir. A sedução é sempre uma relação de uso onde o outro é objeto sem vida e sem direito a ela.
Concordo com o Silvio quando afirma que precisamos que os bons se unam em todos os lugares do mundo. Eu gostaria de estar entre eles embora não saiba a quem ele se refere. Será que bons são àqueles intelectuais italianos que mês passado, numa feira de livros em Turim, tentaram boicotar e expulsar o escritor pacifista Amos Oz? Foi Humberto Eco quem saiu em sua defesa, enquanto o júri popular deu o prêmio de melhor escritor ao romancista israelense. Alguém sabe por que ainda não foi agraciado com o Nobel de literatura, embora figure na lista há anos? Ou serão boas as pessoas que Silvio teme que venham a nos considerar maus brasileiros confiáveis e de esquerda do modelo PT, caso não sejamos os primeiros a demonstrar o quanto somos judeus bons e confiáveis? Serão os bons aqueles que só se lembram da carteirinha de judeu em situações onde precisam se diferenciar dos maus e mostrarem que não têm nada a ver com os fascistas georgianos? Neste caso, devo declarar que tenho sido muito mau como humanista judeu.
Se acreditamos em um Judaísmo Humanista seria bom considerar que na origem desta cultura já se pensava na idéia que o mal e o bem são inseparáveis. Idéia presente no discurso bíblico onde Isaias falando por deus afirma “Eu crio a luz e produzo as trevas faço a paz e produzo o mal, eu sou IHVH criador de tudo isto”( Isaias 45:7). Pensamento radical por afirmar que o mal não está nos outros. Texto radicalizado pelo Mestre Ball Shem Tov quando ele o ensinou da seguinte maneira: “não existe um homem justo sobre a terra que faça o bem”. Ou seja, a melhor intenção humana está sempre atravessada pelo mal. Se este for o humanismo judaico do Silvio Tendler, estamos todos na mesma utopia do mesmo humano onde não existiria mais o “ou um ou outro”. Um Humanismo Judaico aponta para a multiplicidade de forças em cada um de nós,convivendo ao mesmo tempo e sem exclusão subvertendo a ordem do “ou um ou outro”.
Seguindo este principio talvez fosse possível apreçar a construção do mundo-por-vir( o olam há ba) capaz de acolher tanto o Jayme, quanto o Silvio, tanto judeus, quanto católicos, muçulmanos, ateus convictos e espíritas declarados, tanto os intelectuais europeus quanto as pessoas que compartilham desta idéia, juntado todos na mesma nau da sensatez.
Paz primeiro, política depois?
A ética é uma ótica. O autor desta ideia é Emanuel Lévinas. Um pensador de tamanha importância que Elizabeth Goldwin, professora da universidade de Tel Aviv, assim intitulou um artigo sobre ele: “Se existe algum sentido para o judaísmo do Estado de Israel, ele se encontra em Levinas”. Em outras palavras, ou Israel será levinasiana, ou não será judaica. Mas que judaísmo é este do qual nos fala uma autora israelense quando em Israel a religião judaica fundamentalista adquire força política capaz de influenciar a vida da maioria laica. É deste judaísmo que nos falam a autora e o filosofo Emanuel Lévinas?
Judaísmo não se resume à religião embora, tanto ela, quanto qualquer outro pensamento que se declare judeu, possua as mesmas fontes. A tradição sempre incentivou a idéia que a pratica dos preceitos não esta relacionada à fé e sim a um fazer na vida humana. Uma religião onde Deus diz: Daí, o resto é com você, diz também que a vida é você e são suas as responsabilidades. Não se trata de uma religião para crianças assustadas querendo fazer as coisas certas para serem aprovadas por uma entidade superior ou um amigo.
Trata-se de pensar com Lévinas em um humanismo do outro homem. Não de um outro homem, diferente do de sempre, mas do outro homem, aquele outro que nos convoca para uma dimensão de responsabilidade. Idéia que penetrou tanto no pensamento das religiões monoteístas, quanto em ideologias laicas como o marxismo. O outro, aquele que me antecede em minhas preocupações com o meu próprio eu, eis o cerne da questão presente no projeto humanista criado pelo judaísmo originário. Um outro presente em mim desde os primórdios de minha existência. Foi assim com Caim, é assim com todos nós.
Quando deus se dirige a Caim perguntando por Abel,ele lhe responde dizendo que não era o guardião de seu irmão. Resposta que aponta para um Caim que conhecia a possibilidade de ser responsável por Abel. Ao colocar a resposta daquela maneira, a tradição judaica nos deixa um ensinamento que se espalha ao longo de milhares de outras paginas. Sou sim, sempre, o responsável pela vida do outro homem e, se o mato através de atos ou de palavras, é porque no assassinato vejo a maneira final de negar aquele rosto que desafia o meu desejo de controle do mundo. Por isto, sempre esteve presente no texto bíblico a preocupação com a viúva, o órfão, o estrangeiro, este último, a mais clara encarnação de um outro percebido como estranho e a quem devo transformar em próximo, como nos ensinam inúmeros mandamentos da Torah.
Eis ai o cerne do Humanismo Judaico. O fundamental é isto, o resto são comentários, quem quiser se aprofundar poderá se dedicar ao estudo de milhares de variações sobre o tema. Mas, em estudando, é bom ficar de olho na tendência de assassinar a verdade do outro em nome de ideologias. Como antídoto a tradição nos ensina que devemos sempre estudar em duplas para que, diante da presença limitadora do outro, ninguém se sinta no direito de ditar a verdade. Estudar com um companheiro equivale a admitir no próprio pensamento a presença concreta de alguém que trás para perto o Daí-basta-chalas. Um outro que já se encontra instalado dentro de nós. Desde sempre. Assunto que nos traz de volta a uma pergunta feita no inicio do texto: qual é ,afinal, o remédio violento que hesitamos tomar?
A violência do diálogo.
Em hebraico a palavra GueR se escreve da mesma maneira que GaR. Numa língua sem consoantes, os “pontinhos da escrita hebraica”, as duas palavras ficam reduzidas a GRג ר)). GueR significa estrangeiro, GaR é o presente do verbo LaGuR, morar. Morador e estrangeiro, que mistério terá moldado sentidos tão diversos em escrita idêntica? Ser estrangeiro permeia o imaginário hebreu e dá origem IVRI/Hebreu: aquele que veio do outro lado do rio. Abraão viveu e morreu como Arameu, fato que as preces e a recitação da Hagadá de Pessach repetem tantas vezes “Arameu nômade foi teu pai”. A diferença de Abraão em relação aos outros habitantes com quem entra em contato em suas andanças não é étnica, é ética. O seu modo de viver errante sobre a terra obriga-o a múltiplas negociações com reis e povos estranhos e faz dele um permanente estrangeiro. Diferente de Ulisses que peregrina por terras e volta a sua querida Ática, Abraão desprende-se da casa paterna para errar sem volta.
GaLuT, palavra traduzida por exílio tem relação direta com LeGaLoT, descobrir. Estar a descoberto, sem proteção, eis o sentido hebreu de um desterro sem exílio. Como se o pensar hebreu fosse tributário de uma única idéia fundadora: um estar “descoberto” ontológico que começa em Adão e Eva e atravessa a sua história. Idéia tão presente que, segundo a mística da cabalá, deus acompanha o seu povo para a Galut-desterro sob forma da Schiná, a sua presença feminina. Deus e o seu povo estão igualmente no desterro. Era assim que os cabalistas queriam entender a história sagrada atrelado-a a história dos homens.
Será que a condição do desterrado e do viver descoberto faz o humano abandonar a certeza e criar o diálogo? Será que estamos autorizados a pensar deste modo ao perceber como o nomadismo dos hebreus é toa marcante quanto o seu apego a uma palavra que jamais pode ser capturada pela certeza? Será este o remédio violento que hesitamos tomar e por isto fazemos política? O diálogo se torna violência por que somos obrigados a uma contração em um eu que tudo quer ocupar. Quando contraio os meus desejos de dominação estou repetindo um ato divino, como nos diriam os cabalistas. Um ato de violência que o criador executou sobre si mesmo restringindo seu Ser e criando local para que houvesse mundo, o Tzimtzum, a contração de si mesmo.
É com esta experiência da auto-limitação do eu, que escavamos no ser infantil um inicio de caminho cheio de marcas que nos levará, ou não, à condição humana. Caminho que nos faz sair da biologia em que nascemos em direção à humanização. Levados a fazer parte de uma conversa infinita que nos antecede, é a maneira como cada um ocupa o seu lugar neste bate papo que vai definir o como que seremos. Caminho doloroso onde muitos se enrijecem como cristal enquanto outros se dissipam como fumaça, mas todos, sem exceção, vão assumindo um lugar na conversa infinita. Exemplo desta experiência que nos antecede é o ato fundador do diálogo acontecido entre Abraão e Deus.
Quando Deus avisa a Abraão que vai destruir Sodoma e Gomorra, imediatamente o patriarca questiona o objetivo divino. Em nenhum momento eles mencionam qualquer razão étnica para as suas intenções. O fato implícito no debate é totalmente ético. É em nome de uma ética que Deus quer destruir aquelas pessoas. É também por esta razão que Abraão questiona dizendo que o justo não pode perecer por causa do injusto. Fato que implica questionar a validade de Deus destruir quem quer que seja. Paulatinamente ambos vão recuando em suas intenções até que chegam a um número comum. Se houvessem dez justos as cidades não seriam destruídas. Ou seja, há algo maior do que deus que o engloba e limita o seu poder. Quando Abraão lhe pergunta “O Juiz de toda a terra não fará justiça?” e Ele aceita dialogar, a justiça se sobrepôs ao criador.
Eis aí a violência do diálogo que temos que aceitar para entrar na roda da vida humana. Quando a negamos corremos o risco do fascismo. O Fachio, feixe de varas e machado que simbolizava a lei romana, se torna o mal quando alguém encarna o machado e as varas e se permite cortar cabeças e dar varejadas. Chamar a si a lei é colocar-se acima dela sem curvar-se a algo maior do que o si mesmo, eis o fascismo, a materialização do mal. Nem a deus foi dado este poder. Quando assumo a violência e me esforço a um ato de contração o diálogo se instaura, a paz se faz presente, e a política pode acontecer. Política, o cuidado com a cidade dos homens, só se torna possível depois que assumimos o estado de espírito da paz, a presença comprometida com um próximo que não é o meu semelhante.
Paz primeiro, política depois.
Rio de Janeiro,4 de junho de 2010.
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