'Esquerda francesa está moribunda' - entrevista com Bernard-Henry Levy
Andrei Netto, correspondente em Paris - O Estado de S.Paulo
Há pelo menos 30 anos, intelectuais discutem a consistência e a atualidade ou não de termos como esquerda e direita. Agora, filósofos e cientistas políticos parecem mais empenhados em renovar outro debate: a própria relação com a esquerda. Proliferam pelas livrarias de Paris títulos sobre o divórcio definitivo entre os intelectuais e o pensamento progressista, para muitos sintoma da migração do marxismo ao neoconservadorismo.
Em Le Procès des Lumières - Pourquoi le Monde Vire à Droite (Seuil), o cientista político, historiador e ensaísta Daniel Lindenberg discorre sobre a aproximação crescente entre o pensamento conservador e o liberalismo econômico. E conclui: estamos em guerra. De um lado, afirma, estão os defensores da herança iluminista, progressistas por natureza. De outro, os contrarrevolucionários, regressistas por definição.
Em Les Maoccidents - Un Néoconservatisve à la Française (Editora Stock), Jean Birnbaum segue a mesma linha acusatória. Aponta intelectuais como o filósofo André Glucksmann, um dos expoentes da "nova filosofia" de 1977, de esquerda, que 30 anos depois se tornou cabo eleitoral de Sarkozy. Por sua vez, em Les Intellectuels Contre la Gauche (Agone), Michael Christofferson, historiador, Ph.D. pela Universidade Columbia e professor da Universidade da Pensilvânia, tenta entender como a intelectualidade de esquerda em um país como a França migrou do radicalismo contemporâneo, modo sartriano - marcado pela defesa da classe operária -, ao progressismo midiático.
E há Bernard-Henri Lévy, com De la Guerre en Philosophie (Grasset), no qual esboça a visão de que o exercício da filosofia pressupõe o enfrentamento violento de ideias. De volta à filosofia após a publicação de uma série de ensaios nos últimos anos, Lévy falou ao Estado, em Paris, quando respondeu às críticas a seu livro e abordou outro tema, espinhoso: a relação entre os intelectuais e o ideário de esquerda.
Como o senhor filosofa?
A tese essencial do livro é que a filosofia é uma guerra, não é um exercício sereno. Trata-se de fixar compromissos, mas também se trata de um enfrentamento ideológica e culturalmente violento. Falo da violência das ideias, do choque de ideias.
Seu livro seria muito bem acolhido pela crítica, imagino, se não houvesse um trecho no qual o senhor aborda Jean-Baptiste Botul, autor inventado por um jornalista, Frédéric Pagès. O que Botul e toda essa polêmica representam para o senhor?
O autor existe e o livro também. Não há polêmica. É um autor que se chama na realidade Pagès e que assinou seu livro como Botul. Isso não muda nada. O livro existe e a ideia que ele defende também.
O senhor está em meio a uma guerra de ideias. É preciso combater as críticas?
Quando digo que a filosofia é uma guerra, não estou dizendo que é preciso fazer uma guerra contra um autor que tirei da obscuridade. A guerra é com os autores contra os quais eu me oponho, que defendem ideias diferentes das minhas. É essa a batalha das ideias. São elas que fazem a guerra.
O senhor é um crítico da universidade e, além disso, é alguém de esquerda. Muitos estão criticando a sua obra em função deste erro. É oportunismo?
As pessoas lutam com as armas que têm. É muito interessante que se critique o meu livro a partir desta ideia. Quando observo meus erros ao longo dos anos, os verdadeiros erros, de fundo e de pensamento, vejo que não são muito numerosos. Em uma época em que toda a intelligentsia se ligava a Sarkozy, eu não o fiz. Na época em que três quartos da intelligentsia estava cega sobre o genocídio em Darfur, eu fazia parte do grupo que o denunciava. Tive razão sobre Barack Obama. Eu o anunciei, em um texto que se chamava Black Clinton, quatro anos antes de sua eleição. Isso tudo é irritante. Alguém que erra tão pouco, que é tão livre quanto eu... Não tenho nenhum compromisso com o poder. Não sou comprável por nenhum poder. Alguém como eu é exasperante. Quando se encontra uma pequena brecha, uma pequena falha em um homem livre, que se engana pouco sobre o essencial, as pessoas se atiram sobre como um predador sobre sua presa.
Isso é guerra. É guerra honesta?
Não. Seria mais interessante me atacar sobre minhas posições sobre Althusser, ou sobre a minha tese. O que defendo nessas poucas linhas (em que cita Botul) é que os grandes filósofos têm corpos, que não são puros espíritos, cérebros etéreos, mas que seu pensamento é tributário de suas fisiologias. É uma tese. Posso estar errado. Mas seria mais interessante discuti-la.
Como a obra de Botul foi parar em suas mãos? O senhor leu esse livro?
Sim. Li como leio muitos outros livros, rapidamente. O que me interessa mais é o meu pensamento, as minhas ideias. Sou como um pintor. Não passo duas horas a me perguntar o que há dentro do tubo de tinta. Eu tomo a tinta em mãos e jogo na tela. Um livro, para mim, é como um tubo de tinta. Se suas ideias vêm ao encontro das minhas, suportam as minhas teses, eu as uso.
O que significa ser de esquerda hoje?
É preferir, por exemplo, a desordem à injustiça. Há pessoas que dizem: "Não mexa nas injustiças, porque vai desorganizar a sociedade." Prefiro desorganizar a sociedade, mas corrigir a injustiça.
A bandeira brasileira ostenta o lema
Ordem e Progresso.
Nossa, eu lhes aconselho mudar a bandeira e escrever "Justiça e Progresso". Seria melhor para o Brasil. E estaria mais de acordo com o que ele é, este grande país. E também de acordo com o presidente nada mal que vocês têm, que é Lula.
Lula apertou a mão de Kadafi ano passado e chamou Ahmadinejad de "amigo".
Eu ignorava isso. É um erro. Ahmadinejad não pode ser amigo de Lula. É um homem de extrema direita. Suas referências ideológicas são os anos 30 alemães, o pensamento nazista. É preciso informar Lula.
O senhor concorda com a ideia de que existe um divórcio crescente entre os intelectuais e o pensamento de esquerda?
Não. Há oportunismo de um ou outro... Alguns intelectuais se consideram mais virtuosos que outros. Quando são cortejados, ficam fascinados. Não acho que exista um divórcio entre a intelectualidade e a esquerda. O que é certo, na França, é que existe um divórcio entre a esquerda e o pensamento. É uma esquerda moribunda.
Lindenberg diz que a intelectualidade recusa o ideário iluminista e a ideia de Progresso hoje. O que o senhor pensa a respeito?
Eu não recuso nem o iluminismo, nem o progresso.
O senhor é uma exceção?
Não creio. Mas é verdade que existe uma sombra no iluminismo. O iluminismo não é apenas luminoso. Podemos cometer crimes em nome do progresso. Já aconteceu. Sou amante do iluminismo, nele estão as minhas raízes intelectuais. Mas eu sei, ao mesmo tempo, que ele tem uma face negra.
É o tema de La Barbarie à Visage Humain (1977), seu mais importante livro. Qual é a força atual de uma obra como essa?
O que é preciso guardar dela é que ninguém fará, em lugar do homem, o trabalho de construir a própria liberdade. Não é possível contar com nenhuma providência laica ou nenhum recurso religioso para fazer o trabalho em seu lugar. A barbárie existe graças ao que eu chamava de "messianismo profano", as filosofias da História, o progressismo entendido como "a História que caminha sozinha". É a ideia de que não podemos fazer nada além do que sentar e esperar o futuro que canta. Há versões de esquerda e de direita desse fenômeno. A de direita é a ideia da mão invisível do mercado, que conduz a sociedade independentemente do que possa acontecer. A de esquerda é a mão invisível da dialética, que conduz a sociedade em direção à sociedade "sem classes", igual e melhor. Creio que essas duas visões são terríveis. Os homens têm uma tarefa, que é criar a própria história, de não se deixar levar por nenhuma dessas visões.
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