judaismo (8)

SIONISMO É RACISMO?

Não, claro que não é. Da mesma forma que Islamismo não é terror nem sexo é promiscuidade nem dinheiro é necessariamente o produto da exploração do homem pelo homem.

O que sim é verdade é que existem sionistas racistas, e muçulmanos terroristas, e não poucos degenerados sexuais, e não menos capitalistas sem entranhas.

No saber e querer diferenciar a uns dos outros, os doentes de ódio dos sãos de espírito, os inimigos mortais dos amigos leais, é onde reside a principal qualidade que nos faz diferentes dos irracionais. Hitler e Torquemada, Mussolini e o Mufti al-Husseini, não o souberam nem o quiseram, e por isso nos legaram como herança a ignomínia das suas idéias, a sem-vergonhice dos seus atos, e bastantes páginas negras da nossa História escritas com o sangue inocente das suas vítimas.

Hoje e agora, as minorias fundamentalistas islâmicas, judias e cristãs, tropeçando de novo na mesma pedra, transitam por igual caminho em direção ao mesmo precipício.

O fundamentalismo islâmico, com os seus ataques suicidas, que além de matar judeus inocentes da forma mais covarde concebida pela mente humana, salpicam com esse sangue a honra e a imagem da sua própria religião, já que o nome de Alá fica irremediavelmente associado a essa barbárie cometida em seu nome.

O fundamentalismo judeu, organizado em seitas religiosas e gangues laicas, ao tentar impor suas loucas idéias de um deus vingativo e exclusivo, e de um Grande Israel Bíblico do ponto de vista territorial, ao qual o povo judeu renunciou expressamente ao assinar a partição da Palestina, usando para tal fim não apenas o discurso ou a propaganda, mas as armas e o assassinato dos líderes do Estado de Israel (começaram com Rabin).

O fundamentalismo cristão, incitando ao ódio às outras religiões e apoiando e aplaudindo a tortura dos inimigos de seu deus todo-poderoso, transformando o conflito numa guerra santa contra o Islã, e o exército dos Estados Unidos em Soldados do Cristianismo (por analogia, os novos cruzados).

Compete a todos os que não nos deixamos arrastar por slogans pré-fabricados ou por medos manipulados pelos porta-vozes do além, enfrentar-nos a esse tudo ou nada que eles propõem, construindo uma estrada transitável que conduza à concórdia e não ao cemitério; a bom porto e não ao naufrágio da esperança.

Visto isso, só resta então formular a pergunta do milhão: afinal, o que é sionismo?...

A minha modesta resposta a esse enorme interrogante começa no início do túnel do tempo, quando o povo judeu abandonou a terra prometida por razões alheias à sua vontade (ou sumir ou sucumbir).

Durante milênios então, o sionismo hibernou no útero de uma frase simples, representando apenas a verbalização de um desejo irreprimível, um sonho condensado em poucas e premonitórias palavras: no ano que vem em Jerusalém (be shaná haba’á birushaláim, em hebraico).

E assim o sionismo, que nem mesmo sabia que esse era o seu verdadeiro nome, vivia e sobrevivia em estado latente dentro dessa simples frase que foi passando de geração em geração, de boca em boca, de coração a coração, até um dia qualquer do um ano qualquer do século XIX, em que alguns judeus decodificaram a vontade de grande parte da diáspora de voltar para casa, considerando que havia chegado a hora de traduzir a mensagem genética contida na pequena frase herdada, à linguagem dos fatos, propondo táticas e estratégias que permitissem transformar o exílio imposto em retorno; a prece milenar em pátria.

E foi assim que esse sionismo ganhou nome próprio, sobrenome comum e um projeto de viabilização, começando então a construção de uma ponte que unisse o sonho herdado à realidade possível.

Era o começo do fim do desarraigamento para todos aqueles que assim o quisessem, ainda que as resistências não fossem poucas nem banais, já que a maioria do Establishment religioso se opunha (e ainda o faz depois de tantos anos de independência) esgrimindo argumentos paridos na diáspora, sem qualquer relação com os livros sagrados, segundo os quais o retorno só será permitido com a chegada do Messias.

Essa foi a razão pela qual o Sionismo pioneiro foi fundamentalmente laico, e ainda o é, apesar de ter deixado de ser um projeto virtual para transformar-se no Estado de Israel real. Não o Israel maximalista dos fundamentalistas, mas sim o Israel possível dos realistas.

Indivíduos primeiro e grupos depois, foram pouco a pouco desembarcando do navio do tempo nos portos da velha pátria, e iniciaram a empreitada, plantando famílias no deserto e nas cidades; secando pântanos e sobre eles implantando produtivas fazendas coletivas; erigindo escolas para todos os alunos, hospitais para todos os doentes e prisões para todos os criminosos.

Isso é sionismo: o puro e simples direito de reconstruir a casa nacional sobre parte do território primitivo e nela acolher a todos os que desejarem fazer a viagem de volta (as fronteiras – não o esqueçamos - foram democraticamente aceitas pelos representantes do povo de Israel, renunciando a qualquer reivindicação de territórios fora dos limites aprovados).

Hoje, entretanto, constatamos com pesar e temor, que no corpo do Estado de Israel crescem e se multiplicam pequenos tumores malignos cujas metástases comprometem seriamente a saúde do país. É o tal do hiper-sionismo ou mega-sionismo, inspirado no fundamentalismo religioso radical, aliado a uma visão fundamentalista laica de extrema-direita, de ignorar todo o trabalho feito para a construção do Estado de Israel, das suas leis, das suas fronteiras, das assinaturas nos acordos internacionais, do respeito aos direitos humanos de todos os humanos, com a malsã intenção de implantar a pátria bíblica dos contos de fadas, tanto no que respeita à sua dimensão territorial (expulsando a milhões de palestinos de suas terras e anexando-as) quanto à imposição de um Estado clerical ao estilo das repúblicas islâmicas mais retrógradas. E isso – que não caiba nenhuma dúvida ao respeito - não é sionismo. Isso é pura e simplesmente anti-sionismo, e deve ser combatido por todos aqueles que vêm no Estado de Israel (e não na terra de Israel) a tradução fidedigna do sonho gerado e gestado pelo povo judeu ao longo dos séculos no seu caminhar diaspórico.

O sionismo é um direito e não um dever, e o Estado de Israel é o fecho de ouro dessa travessia de ida e volta do povo judeu.

Bruno Kampel, Suécia

Saiba mais…

Modigliani, além do mito - Morasha

Modigliani, além do mito - Morasha

"Sou Modigliani, judeu".É assim que o pintor italiano se apresentava. Orgulhava-se de sua herança cultural e, apesar de não ser praticante, jamais negou a identidade judaica. tornou-se símbolo de pintor boêmio criando-se, após sua morte um verdadeiro mito em torno de sua vida, trágica e curta.

linha.gif

A história de vida do artista se sobrepôs a seu trabalho, afastando-o de idéias e tradições culturais que poderiam revelar muitos significados. A força do mito é responsável pelo fato de que um dos primeiros e mais conhecidos artistas modernistas, autor de mais de 500 obras de arte, tenha sido também um dos menos compreendidos.

Foi para desvendar esse mito e mostrar ao mundo outra faceta do grande artista que o Museu Judaico de Nova York decidiu realizar a primeira grande retrospectiva do artista, na cidade, nos últimos 50 anos. Até setembro próximo, estarão expostos cerca de cem trabalhos de Modigliani. O que se pretende é desvincular as obras do mito de artista boêmio, que viveu sob o efeito da pobreza e de uma saúde cronicamente frágil. Ao mesmo tempo, passar a analisá-las tendo em mente o fato de Modigliani ser um judeu italiano sefaradita, que viveu em Paris no início do século XX, e considerar em que medida sua herança cultural teria influenciado sua arte e o anti-semitismo - da Paris pós-Caso Dreyfus - teria impactado sua arte e sua atitude.

Um livro sobre a retrospectiva, "Modigliani beyond the Myth", editado por Mason Klein, famoso historiador de arte e curador do Museu Judaico de Nova York, responsável pela mostra, explora com mais detalhes a vida e obra do grande pintor.

Assim começou

Nascido em Livorno, em 1884, Amedeo Modigliani (cujo nome significa "amado por D'us") é o quarto filho do italiano Flaminio Modigliani e da francesa Eugénie Gársin. Nasceu justamente no momento em que seu pai enfrentava graves problemas financeiros e decretava falência. Depois de perderem toda a fortuna, os pais do pintor abriram um pequeno negócio e a família foi obrigada a recomeçar a vida em nível bem mais modesto.

Na metade do século XIX, Livorno era considerada um paraíso político e religioso. Amedeo passou a maior parte de sua infância sob a orientação da mãe e da família desta. Eugénie descendia de judeus sefaraditas de Marselha e, criada em um lar liberal, era muito culta, dominando fluentemente o inglês e o francês. Sentia uma ternura toda especial por esse filho e, a partir de 1886, começou a escrever um diário que, de fato, é uma das poucas fontes de informações confiáveis sobre a infância do artista. Neste, se perguntava: "Será ele um artista?" Em suas páginas conta parte do dia-a-dia de Amedeo - cujo apelido era Dedo. Era o avô Isaac quem tomava conta dele. Intelectualizado, apaixonado por história e filosofia além de exímio jogador de xadrez, o avô levou Dedo em suas primeiras visitas a museus. Foi quando entrou em contato com as obras dos grandes artistas.

Amedeo tinha apenas dez anos quando o avô faleceu, em 1894. Abalado por essa perda, o menino fechou-se em si mesmo, adoecendo algum tempo depois e não sendo aprovado nos exames escolares. Preocupada e esperando que a arte conseguisse tirá-lo da apatia em que se encontrava, sua mãe permite que ele tenha aulas de desenho. No liceu onde estudava, os professores percebiam sua forte inclinação para essa área.

Um ano após seu bar mitzvá, em 1898, Amedeo novamente adoece e os médicos diagnosticam febre tifóide. Por causa da saúde frágil, passou grande parte da infância e adolescência em casa e, sem poder fazer grandes esforços físicos, dedica-se à leitura.

Quando se curou, teve permissão para abandonar a escola e freqüentar diariamente um ateliê. Era o ano de 1899. Mas adoeceu novamente, no ano seguinte, e os médicos descobriram que sua doença era mais grave do que supunham - aos 16 anos foi diagnosticado como tuberculoso. Para tentar combater o mal, sua mãe organizou uma viagem para regiões mais quentes, no sul da Itália. O roteiro incluiu visitas a museus e galerias de artes, que despertaram a imaginação e sensibilidade do jovem, fortalecendo o desejo que já manifestara de sair de Livorno para se aprimorar nesse campo.

Assim, com o apoio financeiro do tio materno, em 1901 Modigliani mudou-se para Florença, onde se matricula na Escola de Belas Artes. Lá decide dedicar-se à escultura, mas esculpir o mármore era uma arte que exigia muito esforço físico, principalmente para alguém com problemas de saúde, como ele. Em 1903, Modigliani mudou-se para Veneza, onde continua os estudos no Instituto de Belas Artes local. Mas ao invés de se dedicar a aperfeiçoar sua arte, passava o tempo em bares e festas. Começava a boemia.

Aos 22 anos, decide morar em Paris, então centro da vanguarda artística. Acreditava que somente na França seria capaz de desenvolver uma linguagem artística própria e realizar suas ambições. Seu primeiro lar foi o Hotel Madeleine e sua primeira escola, a Academia Colarossi, famosa por seus ex-alunos, entre os quais Paul Gauguin e Auguste Rodin. Era um jovem bonito, de estatura pouco abaixo da média, que usava todos os dias o mesmo paletó de veludo cotelê. De personalidade volátil, vivia no bairro de Montmartre às custas da mesada que o tio regularmente enviava. Era o mesmo ambiente freqüentado por Picasso, Guillaume, Apolinaire, André Derain e Diego Rivera. Tornou-se amigo de artistas e intelectuais judeus, passando a fazer parte do famoso Círculo de Montparnasse, o grupo de artistas judeus que emigrou para Paris antes da Primeira Guerra Mundial.

A vida na "Cidade-Luz" foi um período de buscas, principalmente por um estilo e tipo de arte definido. No Bâteau-Lavoir, centro do Cubismo, ele se encontrava com os pintores Picasso e André Derain, o carismático poeta e pintor Max Jacob, o escritor André Salmón e outros. Sentia estar no lugar certo. Desistindo da escultura, dedicou-se de corpo e alma à pintura, escolhendo como tema crianças e mulheres. Em tudo o que pinta ou desenha, entre 1906 e 1909, Modigliani continuava em busca de um estilo próprio, que combinasse o antigo e o novo. Apenas o tema permanece idêntico ao longo de toda a sua obra: a figura humana. É desta época a obra "A judia", que mostra a influência de Cézanne e dos expressionistas. Começou a beber, prejudicando a saúde, já tão debilitada pela tuberculose. Nesse período conheceu Paul Alexandre, médico apreciador de arte, que o incentivou e apoiou nos sete anos seguintes, comprando muitas de suas obras.

Em 1910, Modigliani expôs seis trabalhos no 26º Salão de Artistas Independentes, dos quais quatro são postos à venda: "O violoncelista", "Lunaire" e dois estudos para o retrato da amiga Bice Boralevi. Nenhuma obra foi vendida; as galerias de arte geralmente consideravam seus trabalhos muito individuais e difíceis de serem comercializados. Começa, então, uma das fases mais frustrantes e improdutivas da vida do artista. Mas apesar de todas as dificuldades, Modigliani jamais deixou de acreditar em si mesmo e em seu talento. Em 1912, expõe sete esculturas no Salão de Outono. No inverno desse ano adoece gravemente, ficando internado por um tempo. Em abril seguinte retorna a Livorno para um período de convalescença.

Alguns meses depois volta à França, aparentemente recuperado, atirando-se novamente à vida desregrada. Ainda freqüentava seu círculo de amigos de Montparnasse, entre os quais, o escultor russo Ossip Zadkine, Moise Kisling, judeu polonês que se tornara muito próximo do artista, e o pintor Chaim Soutine, judeu russo por quem nutria afeto paternal. Soutine foi um dos primeiros a apreciar o seu talento. Em 1914, o amigo e artista Max Jacob intermedia um encontro entre Modigliani e o marchand Paul Guillaume, intelectual que iniciava suas atividades no mundo das artes. Impressionado com os desenhos de Modigliani, ele compra algumas pinturas e passa a promover seus trabalhos.

No verão de 1914, eclode a Primeira Guerra Mundial na Europa. Em agosto, Paris é bombardeada e ele se muda para Montparnasse. Sua saúde continua piorando e, mais uma vez, é ajudado por amigos. Quando se restabelece, em 1916, volta a pintar, pressionado por Paul Guillaume. Nessa mesma época foi apresentado a Leopold Zborowski que, além de amigo, tornou-se também seu patrono e marchand. Foi um ano muito produtivo no qual fez muitos retratos, recebendo um salário semanal. Foi também nesse período que conheceu Jeanne Hébuterne, a mulher com quem viveria até morrer. Sua arte torna-se mais clara e tranqüila, aparentemente como resultado da presença de Jeanne em sua vida. Seu trabalho começa a ser notado e o crítico Francis Carco compra-lhe alguns quadros, seguindo de perto sua carreira.

Em março de 1918, Paris é novamente bombardeada e o mercado de arte entra em colapso. Juntamente com Zborowski e Jeanne, Modigliani parte para uma vila na Côte D'Azur, onde o clima é mais adequado à sua saúde. Em novembro do mesmo ano, o casal tem uma filha. A partir de 1919, assume seriamente o papel de pai e artista, entregando-se de corpo e alma ao trabalho, mandando quatro trabalhos por mês a Zborowski. São desse período as únicas quatro paisagens de toda a sua obra, como também um retrato de crianças da cidade e o de Jeanne.

Em maio de 1919, Modigliani retorna a Paris. Alguns meses mais tarde, Zborowski o inclui em uma mostra na Mansard Gallery, em Londres, da qual participavam também Picasso, Matisse, Derain, Soutine, Kisling e outros. A exposição é um sucesso e suas obras, elogiadas pela crítica local, são vendidas a bons preços. Mas, no inverno, sua saúde piora. Bem doente, permite apenas que Jeanne cuide dele, recusando-se a ser internado.

Em 22 de janeiro de 1920 é levado inconsciente para o Hospital da Caridade, morrendo no dia 24 de meningite tubercular. Jeanne, grávida de nove meses, retorna à casa de seus pais no mesmo dia e, no meio da noite, atira-se do quinto andar do prédio, não agüentando a dor da perda. O italiano Modigliani construiu sua reputação internacional na França. Sua arte foi praticamente desconhecida, durante sua breve vida, na terra onde nasceu. Somente após sua morte, Modigliani foi reconhecido como "filho da terra", através de duas retrospectivas na Bienal de Veneza - a primeira em 1922, poucos meses depois que Mussolini assumiu o poder; e a segunda em 1930, no auge da ditadura e da popularidade do "Duce". Por ironia do destino, Modigliani, judeu, liberal, conhecido por sua visão cosmopolita e internacional e que acreditava no ideal socialista de que todos os homens são iguais, acabou sendo usado como símbolo da Itália fascista.

Além do mito

Conhecido por ser boêmio e levar uma vida dissoluta, Modigliani fazia parte dos chamados "Artistas Malditos" da capital francesa. Recusava-se a definir um estilo para sua arte, buscando uma forma ideal que mesclasse classicismo, expressionismo e modernismo. Seu traço era sublinhado, constantemente visível, e organizava a superfície de suas telas em ritmo de grandes curvas melodiosas. Segundo seus contemporâneos, buscava uma impossível reconciliação entre tradição e audácia. É possível dizer que a vida breve de Modigliani foi uma sucessão de misérias e tristezas, fracassos e doenças. Mas, apesar disso, não se encontra em seus retratos nada de "doentio" ou deprimente.

No final de 1919, poucos meses antes de morrer, aos 35 anos, pintou seu auto-retrato, um óleo sobre tela que pode ser visto no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Na obra, ele se retrata com a paleta e um pincel na mão, como que se recusando a sucumbir às suas próprias condições. Segundo Manson Klein, esse auto-retrato coloca em xeque a imagem do artista apenas como boêmio, amargurado e fracassado. O artista se referia a si mesmo como "un juif du patriciat", um judeu nobre. Nesse romântico, mas incisivo auto-retrato, ele se revela como um indivíduo que reconcilia sua saúde debilitada com a dignidade e o intelectualismo aristocrático com a compaixão. E é dessa forma que se auto-retrata, como alguém que apesar de tudo se mantém elegante e nobre, imbuído pela vocação de dignificar a condição humana.

Sua carreira será toda uma longa reflexão sobre o rosto de homens e mulheres. Segundo Klein, por trás da opção pela arte dos retratos estava sua crença de que todas as pessoas eram iguais, independente de seu status. Modigliani as pintava com traços semelhantes: olhos e faces amendoados e pescoços longilíneos. Sua arte de retratos revela o equilíbrio entre a linguagem universal das formas geométricas e as características pessoais, emocionais e políticas do indivíduo.

Dois mundos estavam sempre presentes em Modigliani: a Itália e o judaísmo. Ele confronta o tema da identidade e do individualismo considerando a sua condição de judeu sefaradita italiano. Mais do que enraizadas em conceitos da história da arte, sua expressão artística e sua obra se originam de diversas fontes sócio-culturais. De um lado, o ideal igualitário socialista e o suposto fim das diferenças raciais, durante o Risorgimento italiano e do período da reunificação da Itália (1848 a 1870), quando em toda a Itália os judeus foram legal e civilmente emancipados. Do outro, sua rica herança sefaradita, sua compreensão do indelével caráter do judaísmo, independentemente de qualquer tipo de assimilação ou aculturação.

Aportando em Paris em 1906, mais como jovem e filosófico idealista e menos como judeu praticante, Modigliani confrontou-se com uma sociedade menos pluralista e tolerante, do ponto de vista religioso e cultural, do que de Livorno. Entre os imigrantes de Paris, muitos dos quais judeus, seu cosmopolitanismo personificava a diversidade cultural própria do famoso grupo de artistas de Montparnasse, do qual fazia parte. Porém, suas raízes diferiam profundamente das de seus colegas, principalmente os oriundos da Europa oriental. E ele introduz nesse meio não apenas o judaísmo sefaradita, mas também a cultura latina.

A comunidade judaica que moldara a personalidade de Modigliani diferia das demais espalhadas pela Europa, que na maior parte dos casos, mesmo no século XIX, permaneciam isoladas e oprimidas. Além dos judeus da Itália terem sido emancipados e gozarem de igualdades civis, foi na Livorno do século XIX que a história da intelectualidade sefaradita italiana atingiu seu ápice. Além do mais, a identidade singular de Modigliani é decorrente da habilidade do judeu italiano de aceitar a diversidade justamente em função do pluralismo cultural que existia no país.

É fácil perceber por que em Paris, enquanto Modigliani era identificado primeiro como italiano ou apenas como europeu ocidental, graças à sua fluência em francês, e só depois como judeu, artistas como Marc Chagall e Chaim Soutine eram identificados como judeus - e não como russos ou lituanos. A arte de Modigliani não pode ser entendida totalmente sem considerarmos as maneiras complexas pelas quais reagiu à nova realidade e à xenofobia e hegemonia cultural que encontrou em Paris.

Foi na França pós-Dreyfus que ele, pela primeira vez, sentiu na pele o anti-semitismo. De fato, antes de viver no enclave artístico de Montparnasse nunca imaginaria ter que reafirmar sua identidade judaica. O anti-semitismo, de certa maneira um choque para o artista, influenciou não somente a forma como interagia com os outros, mas também sua arte. Este fato motivou, em grande parte, sua maneira singular de se apresentar como "Modigliani, judeu".

Durante a vida na França, sempre criticou a maioria dos artistas judeus que optava por se assimilar, por dissimular sua verdadeira identidade, abraçando totalmente a liberdade trazida pela emancipação européia. Para ele, esta característica era resultado da falta de identidade judaica de muitos artistas que viviam na capital francesa antes da Primeira Guerra Mundial.Ao invés de se assimilar, Modigliani assumiu totalmente o judaísmo, investindo-se da posição ideológica de "pária". Quanto mais percebia que o tema "raça" se tornava importante, mais focado e simbólico se tornava seu método de trabalho.

Ao invés de ampliar suas manifestações artísticas, restringiu-se cada vez mais aos retratos, que compõem a vasta maioria de suas obras. A auto-identificação era extremamente importante para ele, que optara por ser "o outro", que preferia não ser entendido a ser percebido como burguês assimilado. Declarava sua identidade ao cumprimentar estranhos dizendo, "Sou Modigliani, judeu". Seu marco de diferença era o judaísmo.

A manifestação da identidade judaica em sua obra é abstrata, filosófica e ocidental, bem diferente, por exemplo, da maneira como aparece nas obras de Chagall, que utiliza símbolos e ícones do folclore russo. Apesar de ambos abordarem em suas obras temas como migração e mudanças, enquanto Chagall sintetiza o modernismo e o misticismo chassídico, Modigliani retrata a perda, o deslocamento e a falta de uma referência cultural específica. De certa maneira, Chagall fez parte de um esforço coletivo para desenvolver um estilo "nacional judaico" nas artes, baseado principalmente na necessidade de compensação pela desintegração da tradicional comunidade judaica. Modigliani, pelo contrário, estava determinado a permanecer independente. Para ele, a expressão artística, cultural e espiritual não podia ser determinada por nenhum tipo de dogma externo. Emergia do mais íntimo do ser.

Conclusão

Ao analisar quem foi Modigliani, o que representa sua arte, qual a sua mensagem, deve-se ir além do mito e aprofundar-se no pano-de-fundo histórico-religioso, assim como nos acontecimentos de sua curta e sofrida vida. Sua arte foi um reflexo daquilo em que acreditava e vivenciava. Seu universalismo estava sempre aliado a um respeito profundo pelo indivíduo, os traços semelhantes de seus retratos estão sempre aliados a características pessoais de cada indivíduo. A Itália e o judaísmo foram, para ele, dois grandes marcos. Suas raízes judaicas e a cultura que havia absorvido na infância, em Livorno, estavam presentes em sua vida e arte.

E ao refletir sobre o tema "raça", assunto crucial em Paris e na Europa da época - seu trabalho se tornava cada vez mais simbólico. Seus retratos, cada vez mais geométricos, estilizados. A crescente estilização de sua arte refletia a saudade que sentia de sua terra natal, a Itália, além de uma sensação de exílio. Este sentimento cresceu durante os anos de guerra. Declarava-se universalista, mas, para o pintor, ser judeu tornara-se essencial: fazia toda a diferença.

Bibliografia:

· Klein, Mason - "Modigliani Beyond the Myth", Museu Judaico de N. York, Yale University Press

Saiba mais…

ROSH HASHANÁ

Apesar do tempo, que é cruel e não descansa; da distância que é enorme e sempre aumenta; e da incomunicação, que é patente como o silêncio mais gritante, sobra intato o vínculo intangível dos laços emocionais que viajam pelo espaço como o eco, encurtando as distâncias em vôo rasante, já que uma afinidade indestrutível impede que as circunstâncias cortem e devorem o cordão umbilical eletrônico que nos mantém vivos dentro deste imenso útero cibernético.

Ainda que não sejamos muito amigos das datas históricas nem dos festejos pátrios ou comemorações religiosas, podemos constatar que esses referentes muitas vezes servem para reunir as famílias fraturadas pelo passo inexorável do tempo; para reatar laços de amizade desamarrados pelas mãos inclementes da distância; para juntar os cacos do que alguma vez fora um todo harmônico; para o reencontro de emoções perdidas; para aproximar amigos afastados, tios zangados, pais esquecidos, filhos rebeldes, irmãos incomunicados, que não por essas circunstâncias são menos queridos; ou para reviver lembranças dos que já não estão conosco, que não por pertencerem ao passado estão menos presentes.

Ainda que neste mundo cada vez mais virtualizado e globalizado e desumanizado pouco ou nada nos conheçamos, e nos faltem as palavras adequadas para dignificar e traduzir com exatidão os nossos sinceros desejos de felicidade, não devemos deixar passar esta oportunidade de reincidir, e abusando dos chips, dos megabites, de seus robustos filhos os kilobites, e de seus netinhos os pequenos bites, redigir umas poucas linhas tortas como estas, através das quais transmitir os nossos votos profundos e sinceros de que o novo ano que agora toca a campainha da porta da nossa vida traga tranqüilidade e paz interior para todos.

Rosh Hashaná, para os judeus crentes ou menos, para os judeus ateus ou mais, é uma data cuja simbologia contém uma enorme carga de significados, e é de se esperar e desejar que eles sirvam para que cada um de nós possa encontrar as respostas que nos ajudem a crescer sempre, a melhorar mais, a conviver melhor, e a colher os frutos de nossa lavoura


É hora de terminar esta mensagem...

...olhando pela janela o agonizar de muitas coisas: das horas que morrem, do dia que sucumbe, do ano que murcha, e respeitando a simetria da vida - na mesma janela e com os mesmos olhos - contemplando o desabrochar de tantas outras: das horas que nascem, do dia que emerge, do novo ano que assume o poder, e da esperança que ressuscita; sim, essa esperança insistente e persistente que não se rende, apesar de ter motivos de sobra para não desejar continuar vivendo.


Feliz ano novo! Shaná tová umetuká!

Bruno Kampel, Suécia

Saiba mais…

IMPACTOS DA ÉTICA JUDAICA NO SÉCULO XXI - Bernardo Kliksberg

As revoluções na informática, robótica, micro-eletrônica, biotecnologia, genética, comunicações e outros campos têm criado possibilidades econômicas inéditas.

Ao mesmo tempo, 30 mil crianças morrem diariamente devido à miséria, 800 milhões de pessoas estão desnutridas, 3 bilhões são pobres.

A polarização social tem alcançado índices absurdos. As três pessoas mais ricas do mundo têm um patrimônio maior que o produto bruto dos 49 países mais pobres. A América Latina, região de excepcional potencial econômico, rica em matérias-primas estratégicas, fontes de energia baratas e terras muito férteis, é vista hoje como a terra da pobreza e desigualdade. Sessenta por cento das crianças são pobres, 36% dos menores de 2 anos estão desnutridos, 1/3 da população não tem água potável.

Junto a estes paradoxos extremamente impactantes, a sensação que o grande filósofo canadense Charles Taylor denomina de “o desencanto do mundo” se espalha entre as novas gerações. A atual sociedade consumista, voltada aos bens materiais, à concorrência feroz para alcançar melhores posições, à luta pelo dinheiro e poder, gera uma sensação de solidão, que Victor Frankl chamou de um dramático “vácuo dos sentidos”.

As respostas a estes graves problemas não parecem claras. Cresce o ceticismo sobre até onde pode chegar uma globalização repleta de oportunidades tecnológicas, mas totalmente carente de um código ético que a oriente.

Neste contexto, as propostas da ética judaica estão tendo valor crescente como referência e orientação. Muitas delas estão sendo retomadas com vigor por organismos internacionais, ONGs e movimentos que visam um mundo melhor. Vejamos resumidamente o atual impacto de algumas destas propostas:

n Um princípio básico da mensagem moral transmitido por D’us ao povo judeu é o de que somos responsáveis uns pelos outros. Para a ética judaica é proibida a indiferença ao sofrimento de outros. Diz-se no Levítico: “Não desconsideres o sangue de teu próximo” (19:16). Nossa época carateriza-se por altas doses de egoísmo, daqueles que têm face aos que não têm, e de insensibilidade. O secretário geral da ONU, Kofi Anan, ao exigir recentemente que o mundo supere a indiferença diante da morte de 22 milhões de pessoas nos últimos anos por Aids, determinou que é imprescindível voltarmos a ser responsáveis uns pelos outros.

• Para a ética judaica, a pobreza não é um problema apenas dos pobres, mas de todos. Leibowitz observa que os profetas dizem “Não haverá pobres entre vós”. Não estão dizendo o que irá acontecer, mas o que deveria acontecer. Sua voz não é de oráculo, senão de exigência moral. Para que não haja pobres, a sociedade deve tomar algumas medidas. Diante daqueles que, na América Latina, atribuem a pobreza dos pobres a eles mesmos, o judaísmo se revolta porque considera tal atitude uma injustiça. Esta mensagem foi recentemente incorporada à Carta dos Direitos Humanos da ONU. Entre estes, foram incluídos os direitos básicos do homem a não ser pobre, à alimentação, à saúde, à educação, ao trabalho, à moradia entre outros. A partir de agora estes são direitos essenciais do ser humano, embora proclamados há milênios pela ética judaica.

• As grandes desigualdades são severamente censuradas pelo judaísmo. Os profetas questionaram-nas implacavelmente e julgaram moralmente os poderosos que as fomentavam. O judaísmo criou uma institucionalidade completa para prevenir as polarizações sociais. A Torá estabelece que a cada 7 anos a terra deve descansar para que os pobres possam aceder a seus frutos. A cada 50 anos a terra deve retornar a seus proprietários originais. Procura-se assim impedir sua monopolização. É o jubileu. Assim mesmo, a cada 7 anos as dívidas devem ser perdoadas. O grande movimento mundial vigente pelo perdão total ou parcial da dívida dos países mais pobres do mundo, encabeçado pelo Papa João Paulo II, apoiou-se nesta mensagem e intitula-se “Movimento do Jubileu”.

• Em recente pesquisa realizada pelo Banco Mundial, 60 mil pobres de todos os continentes disseram que o que mais lhes dói é o desprezo, o fato de serem tratados como pessoas inferiores por serem pobres. A Torá estabelece o mais absoluto respeito pelo pobre. É idêntico aos outros. D’us se preocupa especialmente por ele e exige este respeito. O Rabino Leo Baeck observa que no idioma hebraico não existe a palavra mendigo, por si só pejorativa. Esta determinação de se escutar e respeitar o pobre está sendo um eixo para a ação dos organismos internacionais.

Como ajudar o desfavorecido? Este tema, discussão permanente nos organismos internacionais, foi analisado por Maimônides no século XII aplicado à ética judaica. O genial sábio identificou oito níveis sobre “a ajuda”. O nível inferior é quando ajuda-se alguém de má vontade. A segunda categoria é quando aquele que ajuda e aquele que recebe desconhecem um ao outro; neste momento, o anonimato que protege a dignidade do pobre é completo. No entanto, o nível mais alto de todos, a melhor ajuda que alguém possa dar, é aquela que fará com que o necessitado não volte mais a precisar dela. Hoje, na ONU e nos principais organismos em prol do desenvolvimento, procura-se que os projetos tenham orientação no sentido de que haja sempre esta auto-sustentação enfatizada por Maimônides.

• Na ética judaica, ajudar os outros é um dever imprescindível. Como tal, não merece nenhum prêmio nem reconhecimento. O Rebe de Lubavitch observa que a ajuda deve ser desinteressada, não se deve esperar nada em troca e, exemplificando isto, destaca que no dia mais sagrado do judaísmo, o Dia do Perdão, nas orações sefaraditas pede-se perdão à D’us não só pelos prejuízos causados ao próximo, mas também pelos atos que não foram feitos desinteressadamente. O Rabino Abraham Y. Heschel diz que ajudar é simplesmente “o modo de viver correto”. O prêmio está em viver-se desta forma. A força destes conceitos no judaísmo, seu contínuo ensinamento no âmbito familiar e na escola judaica assentaram as bases para grandes resultados em matéria de trabalho voluntário. Os países estão tentando dar forças ao voluntariado e vêem com crescente interesse os bons resultados. Israel e as comunidades judaicas têm índices recordes de trabalhadores voluntários. Em Israel, 25% da população pratica trabalho voluntário, produzem principalmente bens e serviços sociais que representam 8% do PNB. Exércitos de voluntários, de diferentes comunidades judaicas do mundo, trabalham diariamente levando adiante suas instituições e programas em proporção superior às médias de seus respectivos países. A conclusão é clara: a possibilidade de desenvolver o voluntariado está ligada à interiorização dos valores éticos pelas pessoas.

• Hoje vemos duas instituições fundamentais do judaísmo que são bases da sociedade: a família e a educação. O judaísmo lhes assegura o mais alto valor. A Torá dá especial destaque. A ética judaica zela vigorosamente pelas relações entre marido e mulher, pais e filhos, irmãos e até sogros, genros e noras. O Rabi Yoshua Ben Gamla criou no ano 69 a primeira escola pública de que se tem referência. Hoje, muitos países estão analisando como fortalecer a família, duramente deteriorada, e gerar educação. O judaísmo tem contribuições muito expressivas para oferecer nestes campos.

• Nas sociedades latino-americanas, entre outras, adota-se com frequência políticas que sabidamente irão significar grande sofrimento para a população, com o argumento de que “o fim justifica os meios” e que são necessários para que haja maior crescimento econômico. A ética judaica não aceita tal raciocínio. Na Torá pode-se ler textualmente que “o fim não santifica os meios”. Refletindo sobre esta diferença, Albert Einstein perguntava “Quem havia sido o melhor condutor dos homens, Maquiavel (autor original do princípio de que o fim justifica os meios) ou Moisés? Quem teria dúvidas sobre a resposta?”

• Como encarar a pobreza e a desigualdade na América Latina e no mundo? O judaísmo indica caminhos que ecoam de forma crescente. Para este, o problema deve ser encarado por uma ação conjunta de todos os agentes sociais. Cada um deles deve assumir suas responsabilidades. Necessita-se de políticas públicas muito ativas. O judaísmo criou a primeira legislação fiscal sistemática para uso coletivo, o dízimo. Por outro lado, a comunidade e a sociedade civil devem organizar-se e agir. E, finalmente, tudo isso não exime cada pessoa de individualmente fazer o correto em cada situação de miséria ou injustiça com que se depare.

• Uma idéia central do judaísmo é a de Tikum Olam – ajudar a consertar o mundo. O Rebe de Lubavitch faz menção a uma simples interpretação de um conhecido episódio bíblico. Depois de sair do Egito e atravessar o deserto, quando os judeus se aproximam de Canaã, Moisés envia 12 exploradores. Ao regressarem, 9 deles desestimulam as pessoas, dizendo-lhes que não continuem. Com freqüência são considerados traidores. O Rebe observa que Moisés escolheu os melhores de cada tribo, eram pessoas excelentes; porque iriam ser desleais? O que ocorreu é que encontraram-se com sociedades perdidas na luxúria, corrupção e idolatria. O povo judeu, no deserto, era em contrapartida um povo espiritual entregado ao estudo da Bíblia. Temiam que seguindo para Canaã pudessem ser contaminados. Mas, se equivocaram disse o Rebe, pois o desejo de D’us era diferente. O que D’us queria não era que se recolhessem para conservar sua pureza e sim que levassem a espiritualidade aos mundanos, que difundissem os valores éticos nas sociedades infestadas de vícios. Em uma época como a nossa, em que tantas ideologias tombaram, a proposta do judaísmo de avançar até que o mundo se redima eticamente – e de que não é permitido ficar à deriva, mas sim agir para transformá-lo e lhe dar valores éticos – prevê grande duração e diz muito a todos os homens e mulheres empenhados em uma humanidade melhor.

A ética judaica está viva e fresca, podendo ajudar a enfrentar o “desencanto do mundo”, o “vácuo dos sentidos” e a inadiável conscientização dos paradoxos da grande pobreza em meio à riqueza potencial que particularizam a América Latina e o mundo. A mensagem deste conjunto ético foi dita pelo sábio do Século I, Hillel: “Se eu não for por mim, quem o será?” significa dizer que todos devemos defender nossa saúde, nossa vida, nossa família; somos insubstituíveis nisto. Mas, acrescentou: “E se eu for somente para mim?”, significando que a vida sem solidariedade, responsabilidade pelo destino de outrem, amor ao próximo, transcedência, não faz sentido. Finalizou: “Se não agora, quando?” O que espera a ética judaica de cada um de nós é que entremos em ação, agora!

Bernardo Kliksberg- Setembro 2001

Saiba mais…

Judaismo humanista?... Será isto?...

1.- Nos dias que antecedem a qualquer data festiva do calendário judaico - principalmente Rosh Hashaná (Ano Novo), quando se preparar para o evento e sair para comprar uma camisa de seda que combine com a calça comprada em New York na DKNY ou um sapato italiano ou uma bolsa de Gucci ou um corte de linho irlandês para as camisas ou uma jóia de Cartier ou um cruzeiro pelos fiordos da Noruega ou a moto para o filho ou o carro para a filhoca ou finalmente o chalê em Chamonix ou coisa parecida, lembre que nesses dias nascidos para festejar com alegria, na cidade em que você reside há muitos judeus vivendo em estado de extrema necessidade, e que mesmo querendo não podem comprar a roupa básica ou os livros escolares do filho ou os sapatos da filhoca ou os remédios para a artrite ou pagar o aluguel ou arranjar emprego ou coisa parecida.

.

2.- Quando decidir o que fazer com o dinheirinho que sobrou ou com o lucro inesperado da venda de ações ou com os alugueres recebidos dos apartamentinhos de temporada ou com o dinheiro extra apurado na venda dos saldos da loja ou com os juros recebidos dos depósitos que tem nos Bancos de Miami ou Bahamas, de Cayman ou Montevidéu, pense que há muitos judeus - certamente algum que você conhece - que perderam o emprego ou que ficaram sem casa ou que estão ameaçados de despejo, e que muitos pararam de pagar o seguro de saúde e que não todos podem mandar os filhos ao dentista ou que por causa de tudo isso e de mais ainda estão pensando em acabar com a própria vida ou coisa parecida.

.

3.- Quando descobrir que ainda que seja um gesto solidário ele é insuficiente, pois não basta com mandar um quilo de feijão ou dois pacotes de arroz ou tres quilos de matzá ou alguma roupa de criança velha e rasgada a alguma instituição de caridade ou uns trocados na caixinha da sua sinagoga - esmola que representa um milionésimo daquilo que poderia dar sem atrapalhar as finanças próprias - ou quando entender que doando dinheiro para que algum líder político financie a sua nababesca campanha eleitoral às suas custas, ou para que algum líder comunitário viaje como um nababo a Israel ou até a Cuba com o falso pretexto de visitar aos “coitados” judeus de lá às custas dos dinheiros que poderiam ser usados em benefício dos necessitados de cá, ou para que outros construam mais um andar na casa de fim de semana, não ajuda aos judeus carentes, mas pelo contrário, soma riqueza à riqueza dos ricos, então poderá desfrutar de uma festa realmente feliz. Caso contrário fará como a maioria, usando e abusando do egoismo para usufruir sem partilhar, para aproveitar sem dividir, para olhar para o outro lado, o que, convenhamos, é a marca registrada do gênero humano, ainda que eu espere e deseje que vocês sejam a exceção que confirma a regra.

.

4.- Chega de esmolas e de chás de beneficiência. Basta de sentar nas coberturas e de lá remendar a vida daqueles aos que a vida não lhes sorriu. É hora de parar de jogar no lixo as sobras da opulência própria e investir um pouquinho de nós na construção da infra-estrutura da solidariedade, porque com uma lata de goiabada ou um pacote de feijão ou um litro de óleo ou coisa parecida você poderá pensar que cumpriu com a sua parte, mas eu lhe digo que não, porque o feijão e o óleo e a goiabada ou a matzá são a minúscula peneira com que se quer cobrir o sol. Todos podemos fazer muito mais.

.

5.- A felicidade própria não pode fechar os olhos à infelicidade alheia. Vamos abri-los e também os bolsos. Qualquer instituição séria dará prazeirosamente o endereço de alguma família judia que está esperando há muito tempo a sua visita com uma oferta de emprego que lhes devolva a dignidade, com uma proposta de ajuda na educação dos filhos, com um empurrão que lhes proporcione a chance de escapar às garras da miséria.

.

Vamos lá, gente. Chega de fingir que ajudamos. É hora de mostrar que o fazemos. Vocês nem imaginam a felicidade que produz constatar os resultados de nossas ações. É só ver para crer.

.

.

Bruno Kampel

Saiba mais…
Educação e Talmud -
uma Releitura da Ética dos Pais

Ana Szpiczkowski*


Antes de dar início a esta explanação sobre judaísmo e educação, proposta deste encontro, gostaria de iniciar com a retomada de alguns princípios básicos judaicos, sustentáculos que facilitam a compreensão desta religião e dos princípios que regem a vida de um dos povos mais antigos da história da humanidade e que permanece vivo até os dias de hoje.

A Torá (Bíblia), base do judaísmo histórico, é a religião do povo judeu que, em conjunto com os preceitos da Halakhá (Lei Rabínica), contidos no Talmud (Lei Oral), e das Mitsvót, (regras de conduta obrigatória, de essência divina) são entendidas como um todo indissociável, partindo, portanto, do princípio de que ambas foram transmitidas por Deus a Moisés.

Nesta concepção se encontra o dogma fundamental e único do judaísmo, segundo o qual, a revelação divina tem duas vertentes: uma escrita e outra oral que não são nada mais que dois aspectos da mesma Lei, transmitida a Moisés no Monte Sinai. A aceitação desde dogma é de tal importância, a ponto de que o próprio Maimônides [1] , em seus escritos, se refere à importância do homem escolher para sua moradia um lugar onde a Lei Escrita e a Lei Oral sejam estudadas, para preservar a manutenção dos estudos e de sua conseqüente prática.

O judaísmo é constituído pela memória de gerações, em que os mais velhos têm a obrigação de transmitir os conhecimentos para os mais novos. Tal fato, por si só, demonstra a importância que se atribui no judaísmo à questão do ensino e da educação de um modo geral. Encontramos na própria Bíblia, em Deuteronômio [2] uma alusão à importância do recebimento e da transmissão de conhecimentos por herança. Também Maimônides, em seus mandamentos, afirma o dever de ensinar e estudar a Torá e o de honrar os eruditos e idosos que nela são versados.

Na realidade, esta iniciação deve se dar desde a mais tenra idade, pela repetição de alguns versículos bíblicos, cabendo ao pai a responsabilidade por esta tarefa. Em seguida, a criança de três anos é encaminhada ao Heder, instituição característica da educação judaica tradicional no este europeu, destinada a ensinar às crianças a prática religiosa judaica e da língua hebraica.

A partir da idade de seis ou sete anos, este estudo poderá ser confiado a um professor, que receberá remuneração por seu trabalho. Em toda cidade deverá haver um professor de crianças, cuja importância equivale à de um médico, assim como de uma sinagoga e de um tribunal rabínico, sob pena de ser colocada no ostracismo. Finalmente, as crianças não devem interromper os estudos por motivo algum, por mais importante que este possa ser.

Estudar a Torá representa usar a sabedoria e a inteligência com a finalidade de levar uma vida digna e justa. Envolve o cumprimento, a ação, a prática da vontade de Deus, em que a fé e a Lei devem caminhar em perfeita sintonia.

A questão das ações associadas à sabedoria é tratada também por Abrabanel [3] , quando este atribui à palavra “sabedoria” o sentido de pensamento filosófico, e à palavra “ações”, o fato de seguir os caminhos da Torá. Assim, mesmo que a ciência do homem seja grande, mesmo que os resultados de suas investigações sejam muitos, toda essa sabedoria será frágil, se a raiz estendida pela Torá for pequena. Ao contrário, aquele que escolhe como base de reflexão e de investigação a palavra revelada por Deus, se prende a esta revelação e atua em sua vida de acordo com ela. Este homem se parece à árvore que tem poucos ramos e muitas raízes e, como tal, resiste a todas as tempestades. Mesmo que todos os ateus e os incrédulos do mundo o assaltem, não conseguirão alterar suas firmes convicções.

A prática da educação no judaísmo, entretanto, vai além do puro e simples acompanhamento dos princípios religiosos judaicos. Ela visa ao desenvolvimento do ser humano como um todo, em suas facetas intelectual, emocional, comportamental e moral, e propõe uma prática voltada a todas as atitudes do indivíduo, no seu dia a dia, desde as mais simples até aquelas consideradas mais complexas e difíceis de lidar.

Um dos líderes religiosos judaicos mais respeitados do séc. XX, Rabi Schneerson, mais conhecido como Rebe de Lubavitch, afirma que para atingir bons resultados em educação é preciso ir além do ensino relacionado ao desenvolvimento da capacidade cognitiva dos educandos. A verdadeira educação, segundo o citado Rabi, ocorre, principalmente, quando acompanhada pela responsabilidade, ponderação, firmeza, paciência e polidez do educador. Preocupa-se com a formação do homem como um todo, com respeito à sua verdadeira essência e caráter, à sua situação e ao ambiente no qual o mesmo se insere, com um grau de responsabilidade que vai além da simples transmissão de conhecimentos. Envolve respeito pelo ser humano que está ali, ávido por receber novos conhecimentos, e que merece receber mais. Sua base consiste no cumprimento humilde de um dever de educar a nova geração, também adquirida das gerações anteriores. Trata-se da manifestação do cuidado pelo outro, Akher, em hebraico. Por sinal, é possível estabelecer uma relação entre esta palavra Akher – outro - e o termo Akhraiut – responsabilidade. Ambas, na língua hebraica, partem do mesmo radical e representam, como afirma Lévinas, uma das mais importantes premissas educacionais, que é a de manifestação do cuidado e responsabilidade para consigo mesmo e pelo outro, tema-chave do pensamento filosófico, teológico, político e pedagógico/antropológico do séc. XX. A necessidade de convivência, e da aceitação das pessoas pela coletividade e pela sociedade em que se inserem, implica no estabelecimento de regras que sejam aceitas convencionalmente e que normalizem esta coexistência.

Desta necessidade de regras para a convivência em sociedade nasce a moral. Moral difere de ética, embora a ética inclua a moral. Enquanto a moral consiste em um conjunto de hábitos e costumes formados por acúmulo de experiência ou pela preservação das tradições, a ética diz respeito ao exercício individual diante de questões, em função de algum critério pessoal. Nas construções de normas morais estão incutidos conceitos de ética para tornar possível à convivência humana. Estes representam, desde a Antigüidade até os dias de hoje, a preocupação da civilização ocidental e do homem como indivíduo, em vincular o ser humano ao seu modo de ser e agir e ao modo de ser e agir do próximo, com vistas à universalidade e à criação e adoção de regras e normas de convivência em sociedade, independentemente das diferenças setoriais, geográficas e históricas.

A moral não ensina ao indivíduo como ser feliz. Para ser feliz é preciso, antes de tudo, que o ser humano busque dentro de si, e decida se quer ou não cumprir aquilo que a moral exige.

Há momentos em que a moral, por ser universal, se torna repressiva para a auto-realização do ser humano enquanto individualidade. Há mesmo situações de conflitos, em que temos que optar por uma conduta que representa o que queremos e uma conduta que nos é moralmente imposta.

Grande parte das normas morais tem como fonte a Bíblia. Embora a ética não seja necessariamente religiosa, a religião necessita da ética. Todas as religiões se fundamentam em princípios éticos. O mundo da religião é o mundo da crença. Ao delimitarmos nossas crenças delimitamos nossa ação.

No judaísmo, a atribuição da Bíblia a Deus, faz com que a moral e a ética se tornem muito próximas. Trata-se de uma moral que emana de Deus, não do ser humano. A moral é feita por mandamentos, aos quais o judeu deve cumprir de tal maneira, a exercitar e aprender a perder a sua própria vontade para chegar a aprender a vontade divina.

A unidade do povo judeu na Antigüidade se dava não em relação a um território, mas à sua história seqüencial, relatada e escrita em um livro, “O Livro”, a Bíblia.

O grande personagem da Bíblia não ó povo judeu, mas é Deus. A obra de Deus é perfeita, e nela está o paraíso. A queda do paraíso se deu em conseqüência da curiosidade pelo conhecimento do homem e da mulher.

Deus impõe sua moral ao seu povo, trazendo não apenas a visão do paraíso, mas também da perda, da decadência e da punição, como um destino a ser suportado, sofrido e resgatado.

A ética judaica consiste em obedecer ao código moral, ao sistema de mandamentos divinos, definidos por Maimônides como positivos e negativos. Mas ela vai além. O próprio Maimônides em sua obra “O Guia dos Perplexos” [4] refere-se à questão de que o homem foi criado à imagem de Deus [5] , semelhança espiritual e não física, em que Deus insuflou no homem seu próprio espírito. Isto significa que todos os homens foram igualados pelo recebimento do espírito divino e possuem possibilidades iguais de convivência e desenvolvimento na sociedade em que vivem, independentemente de sua cor, estatura, nacionalidade, religião, cultura e demais características. Para que isto ocorra é preciso, pois, que o ser humano pratique o princípio de “amarás a teu próximo como a ti mesmo...” [6] , conforme consta em Levítico.

Na filosofia judaica clássica existem diferentes teorias éticas, das quais chamo a atenção para um tratado ético judaico, parte do Talmud, e que representou um marco para a sociedade aristocrática da época, desde 300 a.C. até 200 d.C. Consiste em um tratado que contém toda uma coleção de ditos e sentenças dos “pais”, os Sábios de Israel, de caráter fundamentalmente ético que representa não um código de valores e normas, mas uma série de condições mínimas necessárias para a sustentação de toda sociedade humana e do homem simples do povo. Muitas de suas máximas exaltam a Torá, a Bíblia, ao mesmo tempo em que propõem um aprimoramento individual do homem enquanto ser atuante na sociedade em que vive, com direitos e obrigações, onde impera a responsabilidade pessoal e coletiva.

Minha escolha por este tratado deu-se, principalmente, pela inesgotável riqueza de ensinamentos e reflexões sobre educação e indiretamente sobre ensino, nele contidas.

Uma de suas máximas que mais chamou minha atenção foi proferida pelo Rabi Elazar ben Schamuá [7] que diz:

“Que a honra do teu discípulo seja tão querida para ti como a tua própria, e a honra do teu companheiro como a reverência pelo teu mestre, e a reverência pelo teu mestre como a reverência pelos Céus”.

Rabi Elazar distingue nesta máxima três classes de honra: a que o homem reivindica para si mesmo, a de seu aluno e a de seu colega. Por outro lado, menciona dois tipos de respeito: o que se deve ao professor e o que se deve a Deus.

Na visão de Abrabanel, Rabi Elazar está se referindo a três níveis de contatos sociais.

O primeiro é o relacionamento entre uma pessoa com alguém diferente dele na questão da autoridade, como a do mestre e seu discípulo. Nesse caso, o mestre é advertido para estender ao seu discípulo o mesmo respeito que ele gostaria de receber.

O outro nível de contato social é o relacionamento entre iguais. Aqui Rabi Elazar nos ensina a honrar nossos iguais com a reverência que é dada a um mestre.

O terceiro nível se refere a aquele que se encontra na companhia de uma pessoa superior a ela, uma personalidade, com quem o relacionamento deve ser de deferência, reverência e respeito.

A apresentação dos três níveis de contato enumerados no texto sugere uma ordem crescente entre os tipos de honra e respeito.

A primeira colocação de Rabi Elazar refere-se à honra que o homem deve reivindicar para si próprio. Ele parte do pressuposto de que o amor-próprio antecipa qualquer relacionamento e que, sem ele, todos os relacionamentos seguintes ficam comprometidos, princípio, por sinal, referendado por autores contemporâneos como Knibbeler (1989), Prabhu (1992), Orlowek (1993), Buber (1973) e outros.

Ao comparar a honra do companheiro à honra do mestre, Rabi Elazar, se refere àposição de educador-educando que pode inverter-se, e o companheiro de hoje poderá um dia converter-se em nosso professor, e vice-versa. Por sinal, é possível completar esta idéia com a referência à outra máxima do mesmo tratado ético, onde é afirmado que:

“Quem aprende de seu companheiro um capítulo, ou um parágrafo, ou um versículo, ou uma palavra, ou mesmo uma única letra, tem a obrigação de tratá-lo com honra...”

O respeito devido ao companheiro de estudos, ao condiscípulo, está comparado aqui com o respeito que temos ao professor. A prática dialética de argumentação, promove a educadores e educandos o encorajamento, o desafio e o direito à discordância, e possibilita a constante reavaliação de sua atuação, tão necessária para o próprio crescimento e para o crescimento do outro.

A mensagem principal desta máxima é, sem dúvida, a idéia do “respeito”, que permeia todos os tipos de relacionamentos, e especificamente aqueles voltados à educação.

Certamente, sua importância é tamanha, que pode ser considerado como elemento norteador do processo educacional democrático, em que o professor respeita seus alunos e outros professores, assim como os alunos respeitam seus colegas e mestres.

O “respeito” como qualidade para os relacionamentos é vastamente apresentada nesta coleção de ditos. Há uma, porém, que atraiu especialmente minha atenção, pois ela faz referência à questão do “olhar” do professor em relação aos seus alunos, e da percepção respeitosa que ele deve ter das diferenças, capacidades e competência dos mesmos para lidar com as situações que lhes aparecem e lhes são apresentadas no dia a dia. Ele passa, assim, a considerar cada um de acordo com seu potencial individual e a respeitar nele suas próprias capacidades e ritmos distintos de aprendizagem. É ela:

“Há quatro tipos entre os que se sentam perante mestres: esponja, funil, filtro e peneira. Esponja é aquele que absorve tudo; funil, o que recebe de um lado e deixa escapar de outro; filtro, o que deixa sair o vinho e retém a borra; peneira, o que deixa sair o farelo e retém a farinha”.

Falando do tipo que se assemelha a uma esponja, os Sábios não se referiam ao indivíduo que absorve de tudo, sem discernimento, mas àquele que, por sua imensa curiosidade, absorve avidamente tudo o que emana da boca do seu mestre. Quando apontam para o segundo tipo, o funil, associam a este objeto à sua capacidade de absorção, superior à sua capacidade de restituição, o que significa que o aluno que se assemelha ao funil restitui com dificuldade os conhecimentos absorvidos. A terceira categoria de alunos é comparada ao filtro, que retém os sedimentos e deixa passar o vinho, do mesmo modo que o bom aluno deve “sedimentar” o que aprendeu e transmitir aos seus futuros alunos um vinho claro, quer dizer, os conhecimentos, de acordo com sua capacidade de compreender. Por último, a comparação com a peneira, que serve para reter o melhor da farinha, corresponde ao aluno que é capaz de conservar o núcleo dos ensinamentos e desfazer-se dos desperdícios.

A questão do respeito mútuo pode ser também constatada nas academias de estudos superiores, que se baseia em uma metodologia própria denominada Pilpul - raciocínio dialético, que se traduz em uma experiência bastante rica dentro do processo educacional. Consiste na participação integrada de mestres e alunos em que as declarações de cada erudito são aceitas e agregadas às afirmações de outros Sábios, e onde a diversidade de juízos é vista como parte complementar do processo educacional, que tende a propiciar o crescimento das partes envolvidas e, conseqüentemente, da própria aprendizagem. Os mestres expõem a doutrina, as Leis, e os alunos que não a compreendem inteiramente, costumam fazer perguntas. A essas perguntas segue-se a contestação dos professores, explicando-a mais claramente. Surgem objeções, os defensores das teses de seus mestres se enfrentam com seus contraditores, e todos os envolvidos têm direito à participação, à opinião, à contestação e à indagação, que conduzem ao discernimento. Ao término do debate, algumas opiniões são definitivamente descartadas e outras adotadas pelo reconhecimento do seu valor, e esclarecem certos aspectos ou conseqüências das doutrinas que até então não estavam claros.

Traduz-se em uma metodologia que pressupõe o envolvimento afetivo com o objeto de discussão, e a participação ativa no processo de aprendizagem. Muitas vezes a melodia é associada ao sistema de estudo do Talmud que, pelo fato de imprimir seu ritmo ao texto e aos seus comentários, promove a participação integral das pessoas e pode conduzir à fixação do conhecimento. Ela busca proporcionar ao aluno uma autoconfiança tal que ele não tenha receio de expor seus pensamentos e lhe permita explorar e criar novas idéias. Na medida em que o aluno vai se desprendendo da timidez, adquire coragem para se colocar diante dos colegas e mestres, vencer etapas e adquirir auto-estima mais elevada. Com esta prática, ele não estará somente escutando aos outros, mas tem a oportunidade de ouvir também a si mesmo e de tentar, cada vez mais, atingir um nível de argumentação apropriada que o faça igualar-se aos seus colegas.

O movimento de dar e receber conhecimentos, certamente, conduz o estudante ao desenvolvimento de sua inteligência, aguça o sentido crítico do pensamento e permite a elucidação de problemas. Promove a participação ativa dos elementos envolvidos no processo educacional, em uma verdadeira lição de democracia, na qual todos têm o direito de questionar, de emitir opiniões, de ensinar e de aprender uns com os outros. O professor, envolvido e interessado em seus alunos e no próprio conteúdo, transmite seus conhecimentos e desenvolve, o interesse, a motivação e o envolvimento com o conteúdo da aprendizagem, pertinentes à realidade destes mesmos alunos.

A partir dos seis ou sete anos a criança começa a ser incentivada ao estudo em parceria, denominados de Havruta, cuja origem é a mesma que amizade ou camaradagem, em hebraico.

Por falar em idade é possível encontrar na “Ética dos Pais” uma máxima cujas idéias nos que remetem aos princípios cognitivistas do desenvolvimento humano apresentadas por Piaget (1974) e que propõe a compreensão do conhecimento do ser humano a partir das etapas de seu desenvolvimento. Vejamos:

“Ele dizia [8] : Aos cinco anos é tempo de começar o estudo da Mikrá – Lei Escrita; aos dez anos, o da Mischná - Lei Oral: aos treze anos, o dos Mandamentos; aos quinze, o do Talmud – Lei Oral; aos dezoito anos é tempo de casar; aos vinte, é tempo de perseguir o trabalho; aos trinta, plenitude da força física; aos quarenta, do entendimento; aos cinqüenta, do conselho; aos sessenta começa a velhice; aos setenta, as cãs; aos oitenta, se houver vigor; aos noventa começa o encurvamento; aos cem é como se estivesse morto, passado e extinto do mundo”.

Esta máxima aponta para a questão de que o conhecimento é adquirido e se acumula por toda a vida, desde a infância até a morte, e deve ser administrado de modo a poder ser utilizado tanto nas suas próprias experiências de vida como na experiência e modelo que devem ser passados para as gerações mais novas.

A presença do estudo durante toda a vida da pessoa permite a aquisição gradativa de conhecimentos, de acordo com o grau de desenvolvimento da mesma, uma vez que é atribuída aos idosos a sabedoria adquirida pelo estudo iniciado ainda na infância e continuado no decorrer da vida. Isto porque as meditações de um nonagenário têm por objeto a mesma Torá que a criança de cinco anos começa a estudar.

Ao destacar a importância do estudo desde cedo, os Sábios estão se referindo aos ensinamentos dados em casa pelos familiares, pais e avós da criança. Cabe ao pai, ainda em casa, iniciar seu filho no estudo da Torá, para depois encaminhá-lo à escola. Consiste em um movimento que atribui um valor muito grande à presença familiar na vida da criança, em uma integração harmoniosa entre lar e escola, assunto freqüentemente estudado e debatido entre os educadores dos dias atuais.

Cabe salientar aqui, a importância atribuída ao livro como instrumento de aprendizagem. Este objeto tão valioso tem estado um tanto esquecido ultimamente, em função do uso exacerbado da tecnologia, em detrimento da leitura. O judaísmo, pelo contrário, confere a ele um valor todo especial, quando propõe que o estudo da Lei Escrita - se dê a partir dos cinco anos. Quando a criança já estiver familiarizada com as fontes escritas do judaísmo, está preparada para iniciar o estudo da Lei Oral, e desenvolver e aprimorar cada vez mais a prática da argumentação e estudo dialético, ao qual já me referi anteriormente, que pretende desenvolver a maturidade e a aquisição de experiência e vivência pelo homem, e que lhe possibilita viver plenamente e com sabedoria, até atingir sua plenitude.

Quanto ao exercício da liderança, também citada neste tratado, são feitas referências às atitudes de humildade e modéstia, o interesse não possessivo pelo outro, a ação pela justiça, a flexibilidade, a tolerância e a liberdade. A problematização é sugerida para ocupar o lugar do autoritarismo e para evitar extremismos e discriminações, assim como a consciência de sua responsabilidade, individual e coletiva, já que, na condição de líder, propõe-se a deixar um legado de conhecimentos para as futuras gerações.

É possível encontrar no tratado de Pirkei Avot. – “A Ética dos Pais”, uma das mais completas sínteses dos princípios essenciais da prática judaica com base na Torá, a qual cito a seguir:

“A Torá é superior ao sacerdócio e à realeza, pois a realeza requer trinta qualidades, o sacerdócio vinte e quatro, mas a Torá requer quarenta e oito coisas. E elas são: estudo, atenção pelo ouvido, repetição em voz alta, inteligência do coração, respeito, temor, humildade, alegria, pureza, convívio com Sábios, aproximação dos companheiros, debate com os discípulos, bom senso, conhecimento da Escritura, conhecimento da tradição... paciência, bom coração, confiança nos Sábios, resignação no sofrimento, conhecer o seu lugar, contentar-se com a sua porção, medir suas palavras, não exigir créditos para si, ser amado, amar o Todo-Presente, amar o seu próximo, amar a retidão, prezar as críticas, afastar-se das honrarias, não inflar o coração por causa do desconhecimento, não se deleitar em dar ordens, ajudar o próximo a carregar o seu jugo: julgá-lo com indulgência, pô-lo no caminho da paz; estudar com método, perguntar conforme o assunto e responder conforme a regra, ouvir e aumentar o conhecimento, aprender para ensinar, aprender para praticar, estimular a sabedoria do mestre, raciocinar sobre o que ouvir e dizer coisas em nome de quem as disse. Sabe-se que todo aquele que diz uma coisa, citando o nome de quem a disse, traz a redenção ao mundo, pois foi dito: “E disse Ester ao rei em nome de Mordekhai” [9] .

A estrutura formal desta máxima separa por grupos as características enumeradas. Primeiramente foram citados os requisitos necessários para que o homem esteja preparado para o seu estudo. Em seguida, são apresentados comportamentos pertinentes ao convívio e aos relacionamentos interpessoais. Logo após, é lembrada a importância da aquisição do conhecimento, acompanhada de um grupo de comportamentos de contensão e respeito, seguidas de instruções de modéstia, indulgência e benevolência. Finalmente são tratadas as questões relacionadas ao estudo e ao ensino, concluindo com a orientação para o uso de citações, sempre com identificação de fonte e autor, numa atitude de respeito e deferência por aqueles que, através das gerações, deixaram seu legado à disposição de seus seguidores. Ester, mencionada nesta máxima teve, já no séc. II a.C., o zelo de citar Mordekhai, seu tio, como mandante para que se dirigisse ao rei Assuero, a fim de solicitar a redenção do povo judeu. Obteve o apoio do rei e a redenção do seu povo.

Para finalizar, cito: “Com que se parece aquele cuja sabedoria excede suas boas ações? Com uma árvore de muitos ramos e raízes poucas, e assim, quando sopra o vento, ele a arranca e derruba, pois foi dito:... “Porque será como o arbusto no deserto, não verá a chegada do bom tempo, viverá em lugares áridos do deserto, em terra estéril e inóspita”. (Jeremias, 17:6) Mas, com que se parece aquele cujas boas ações excedem sua sabedoria? Com uma árvore de poucos ramos e raízes muitas, de modo que, embora todos os ventos do mundo soprem e a fustiguem, não a moverão do lugar, pois foi dito: “Porque será como a árvore plantada à beira da água, que estende as suas raízes para o ribeiro, não receia quando vem o calor, a sua folha fica sempre fresca; e no ano de secas não se afadiga nem deixa de dar frutos”.(Jeremias, 17:8)

Raschi [10] , se refere, com esta dupla metáfora, aos homens dignos e aos homens indignos, que são, de acordo com seu grau de enraizamento, mais frágeis ou menos frágeis. Ainda no que se refere à questão das raízes, é possível estabelecer uma analogia com ação e pensamento. As ações nobres devem ser, de certo modo, implantadas na criança como as raízes na terra, pois são elas que proporcionam à sabedoria o alimento e a força de que necessita para desenvolver-se. A ação é, nesta perspectiva, um elemento primordial para a obtenção de hábitos, para a retenção de conhecimentos e para o desenvolvimento do ser humano.

Finalmente, para concluir esta apresentação, gostaria de apresentar o seguinte dito: “... muito aprendi dos meus mestres, e de meus companheiros mais que deles, e de meus alunos mais do que de todos”. Creio que ele traduz, de maneira sucinta, a mensagem judaica de educação que tentei transmitir a todos. Espero que, por sua abrangência, esta mensagem possa servir como elo para a humanidade como um todo, e para o despertar do sentimento que une a todos os povos, independentemente de suas religiões e crenças, e preencher suas vidas de significado e de propósito.

Referências Bibliográficas

________________ A Bíblia Sagrada, Rio de Janeiro, Sociedade Bíblica do Brasil, tradução de João Ferreira de Almeida,1957.

________________ Abrabanel on Pirke Avot – New York, Shepher-Hermon Press Inc., compilado e traduzido por Abraham Chill, 1991.

________________ Maimônides - Comentário da Mishná - Ética dos Pais - Sanhedrin, São Paulo, Maayanot, 1993, tradução de Alice Frank.

_______________ Maimônides - Mishné Torá - Alumot, Jerusalém - Tel Aviv, 1965.

__ Maimônides - Os 613 Mandamentos - São Paulo, Nova Stella, 1990, tradução de Giuseppe Nahaïssi.

________________ Pirkei Avot: Ética dos Pais, São Paulo, B’nai B’rith, 1976, 1a ed., tradução e notas explicativas de Eliezer Levin.

Buber, Martin - Education, in Between Man and Man, cap.III. London, Collins, 1947.

Al Hamaasse Hakhinukhi, 1925, in Bessod Siakh, Jerusalém, 1973.

Caon, Claudia M. - A Educação Religiosa Ortodoxa Judaica - Princípios, Metas e Resultados, Dissertação de Mestrado em Educação, Universidade de São Paulo, 1995.

Kehati, Pinhas, Mishnah -Avot - Comentários a la Mishná: tratado de Pirké Avot, Jerusalém, Heichal Shlomo, 7a ed., 1976.

Knibbeller, Wil -The Explorative - Creative Way: Implementation of a Humanistic Language Teaching Model, Germany, Tübingen: Narr, 1989.

Lehmann, M. - Pirke Avot, Harambam Maimonides Corp., Miami Beach, Flórida, 1985, tradução e adaptação de Viviane Assa, revisão de Rachel Melul de Amselem.

Orlowek, Noach - My Disciple, My Child, New York, Feldheim Publishers, 1993.

Prabhu, N.S. - There Is No Best Method – Why? in Tesol Quarter Ly, vol. 24 n0 2, 1990.

Rogers, C. - Liberdade para Aprender, Belo Horizonte, Interlivros, 4a ed. 1978, tradução de Edgar Godoi da Mata Machado e Márcio Paulo de Andrade.

Schneerson, Yossef Y. - The Principles of Education and Guidance, New York, Kehot Publication Society, 1990.

Szpiczkowski, Ana – Educação e Talmud, Uma Releitura da Ética dos Pais, São Paulo, Humanitas/FFLCH/USP: Fapesp, 2002.



--------------------------------------------------------------------------------

* Profa. Dra. de Língua, Literatura e Cultura Judaicas, DLO, USP, SP.

[1] Também conhecido como “Rambam”. Nasceu em Córdoba, Espanha, 1135 -1204. Autor de várias obras dentre as quais destaca-se “Os 613 Preceitos”, “Sefer Ha - Maor” e “Schmoná Perakim”.

[2] .“E as intimarás a teus filhos”.(6:7); “Moisés nos deu também a lei por herança da congregação de Jacó” (33:4)

[3] Abrabanel, dom Isaac, (1437-1508); Importante comentador da Bíblia, fugiu da Espanha em 1492, com a expulsão dos judeus de Espanha.

[4] Redigido entre 1187 e 1190, ele estabelece um diálogo entre o mosaísmo e a filosofia, com a finalidade de tornar possível o acesso da razão aos aspectos da Torá que não estão ao alcance da capacidade humana.

[5] Gênesis, 9:6.

[6] Levítico, 19:18.

[7] Quarta geração de Tanaítas - professores e repetidores; período de 140 a 165 d.C.

[8] Yehudá ben Temá - quinta geração de Tanaítas - professores e repetidores; período de 165 a 200 d.C.

[9] Livro de Ester, 2:22.

[10] Erudito francês de ascendência davídica, autor de comentários, que se tornaram padrão, sobre importantes textos judaicos (1040-1105).



Saiba mais…

Pirkei Avot - Ética dos Pais

Pirkei Avot - Ética dos Pais : Fonte site Chazit Hanoar POA


Na Mishná, existe um tratado que fala sobre a parte comportamental, ética e moral dos seres humanos, chamado de Pirkei Avot e traduzido como Ética dos Pais. “Avot” significa "pais" ou "patriarcas". Neste caso, também pode ser traduzido como "anciãos" ou "sábios". Pirkei significa "capítulos", porém neste sentido significaria mais "ditos". Embora existam diversas opiniões sobre ética e moral, o Pirkei Avot foi baseado em ensinamentos passados nas principais escolas rabínicas de geração em geração, e, portanto, estes ensinamentos são valores eternos. Entre as regras de conduta estão normas que dizem respeito ao estudo dos textos. É preciso estudar com alegria, escutar, compreender e chegar ao fundo das coisas para aguçar a mente, formulando perguntas que promovam a busca de respostas adequadas. O estudo religioso e o respeito aos mestres são também importantes, assim como a humildade, a sensatez, a bondade e o amor ao próximo e a Deus. Além disso, existem regras para atividades do dia-a-dia: dormir pouco, cortar as conversas banais e moderar a dedicação aos negócios.

O conteúdo encontrado no Pirkei Avot geralmente é espiritual, mas pode ser praticado. A tradição judaica encoraja o estudo de um capítulo do Pirkei Avot em cada tarde de Shabat, nos meses de verão e primavera. O resultado é que judeus religiosos têm sido profundamente influenciados pelo tratado, por fazerem os estudos todos os anos. Por ter uma razão direta e ser baseado na experiência humana, O tratado do Pirkei Avot é o livro mais acessível dos livros da Mishná, sendo um guia muito útil a respeito de ética judaica.

Algumas das principais reflexões da Ética dos Pais:

HILLEL

- Não julgues o teu próximo até que te encontres na sua situação.

- Uma pessoa que é muito tímida para fazer perguntas nunca vai aprender, e um professor que é muito severo não pode ser professor.

- Se eu não fizer por mim, quem fará por mim? E se apenas fizer por mim, o que sou eu? E se não agora, quando?

- Hillel viu um crânio flutuando sobre um rio e disse: Porque afogaste a outros, eles te afogaram; e finalmente aqueles que te afogaram também serão afogados.

RABI IOSSÉ

- Que a fazenda do teu companheiro seja tão querida para ti como tua própria. Estuda a Lei Divina, pois o seu conhecimento não se adquire por herança. E que todos os teus atos sejam feitos nas melhores intenções.

BEN ZOMA

- A quem se deve chamar sábio? Àquele que aprender com todos os homens. A quem se deve considerar forte? Àquele que souber vencer as suas paixões. A quem se deve considerar rico? Quem se alegra com o que possui.

RABI SIMEÃO

- Há três coroas. A coroa da Lei Divina, a coroa dos sacerdócios e a coroa real, mas a coroa do bom nome excede a todas.

-Não procures acalmar o teu próximo no momento da sua cólera, não procures consolar enquanto estiver ante seus olhos o morto pelo qual chora , não lhe ofereças coisas de que ele se abstém, e não o procures ver na hora em que tiver sido humilhado.

RABAN GAMLIEL

- Sejam cuidadosos com aqueles que estão no poder, pois oferecem sua amizade à pessoa unicamente em benefício próprio; eles aparentam ser amigos quando lhes convêm, mas não se erguem ao lado de um homem em sua hora de aperto [necessidade].

Saiba mais…


Duas Cartas Sobre O Judaísmo Humanista.
Paulo Blank.
[1]

O estado de paz é um estado de espírito Mossaf Hasan Yousef

A ética é uma ótica”Emanuel Levinas.

Estou Aqui em Israel acompanhando todo o dia a violência generalizada no Navio Marmara, com seus mortos e feridos.

Esta realidade quase sem fim aqui no oriente médio nos deixa cada vez mais alarmado e super preocupados sobre esse ciclo da violência que vem sendo cada vez mais preocupante, transformando a nossas vidas, a nossa normalidade, e as esperanças como algo cada vez mais dificil de ser alcançado, aqui no Oriente médio.

Não queremos perder as esperanças, e nem transformar a sagrada vida humana, numa mera banalidade como ocorre aqui nestes pequeno e agitado ponto do planta.

Estamos Cansado de ver tanto Ódio, de ver nossos filhos jovens israelense e palestinos sem futuro, sem esperança.
O que nos resta a não ser gritar um GRITO FORTE para que alguém a mais dos dois lados possa nos ESCUTAR e fazer desse nosso GRITO do desespero humano, Num GRITO amplo que venha nos trazer de volta as esperanças .

CHEGA DE VIOLÊNCIA DE TODOS OS LADOS!
CHEGA DE MORTES E TRAGÉDIAS HUMANAS!
CHEGA DE OCUPAÇÃO E VIOLÊNCIA AOS TERRITÓRIOS E AO POVO PALESTINOS!
CHEGA DE TERRORISMO, E ATAQUES DE MISSEIS PALESTINOS AO POVO DE ISRAEL
BASTA DE MORTES!
BASTA DAS PALAVRAS DA FORCA!
BASTA DA VIOLÊNCIA E DAS GUERRAS!
BASTA DE PROPAGANDA E DA EDUCAÇÃO AO ÓDIO!
BASTA DE DEMONIZAR O OUTRO!

QUEREMOS CRIAR NOSSOS FILHOS ISRAELENSES E PALESTINOS JUDEUS, MUÇULMANOS E CRISTÃOS NUM MUNDO POSSÍVEL, NUM MUNDO MELHOR, ONDE A ÚNICA FORMA DE RESOLVER CONFLITOS SEJA SOMENTE ATRAVÉS DO DIALOGO E DO RESPEITO MUTUO AO DIREITO DA EXISTÊNCIA E DA DIGNIDADE DO OUTRO.
BASTA! HALAS! DAI! A VIOLÊNCIA!

Jayme Fucs Bar

Carta ao governo Israelense

Sres. que me envergonham

Judeu identificado com as melhores tradições humanistas de nossa cultura sinto-me profundamente envergonhado com o que sucessivos governos israelenses vêm fazendo com a paz no Oriente. Médio.

As iniciativas contra a paz tomadas pelo governo de Israel vem tornando cotidianamente a sobrevivência em Israel e na Palestina cada vez mais insuportável.

Já faz tempo que sinto vergonha das ocupações indecentes praticadas por colonos judeus em território palestino. Que dizer agora do bombardeio do navio com bandeira Turca que leva alimentos para nossos irmãos palestinos? Vergonha, três vezes vergonha!

Proponho que Simon Peres devolva seu prêmio Nobel da Paz e peça desculpas por tê-lo aceito mesmo depois de ter armado a África do Sul do Apartheid.

Considero o atual governo, todos seus membros, sem exceção, merecedores por consenso universal do Prêmio Jim Jones por estarem conduzindo todo um pais para o suicídio coletivo.

A continuar com a política genocida do atual governo nem os bons sobreviverão e Israel perecerá baixo o desprezo de todo o mundo..

O Sr., Lieberman, que trouxe da sua Moldávia natal vasta experiência com pogroms, está firmemente empenhado em aplicá-la contra nossos irmãos palestinos. Este merece só para ele um tribunal de Nuremberg.

Digo tudo isso porque um judeu humanista não pode assistir calado e indiferente o que está acontecendo no Oriente Médio. Precisamos de força e coragem para, unidos aos bons, lutar pela convivência fraterna entre dois povos irmãos.

Abaixo o fascismo!

Paz Já!

Silvio Tendler

Cineasta

. [1] Paulo Blank é psicanalista, Doutor em Comunicação E Cultura pela ECO-UFRJ, é autor de vários estudos sobre pensamento judaico.

“Quando chegardes ao o lugar das placas de mármore brilhante não digas “Água,Água”. Advertência de Akiva aos que interpretam o que vêm de forma equivocada.

O Anjo Da História

Nestes dias conturbados em que judeus muçulmanos e cristãos guerreiam como nos velhos tempos sobre o mar mediterrâneo, a história, mais uma vez, se repete como tragédia. Tragédia em que os participantes de um jogo mortal fingem não saber das motivações que se ocultam em cada passo dos jogadores. Gritos de vingança se mesclam a apelos de pessoas isoladas dentro de corpos transformados em morada de uma consciência que sofre e deseja estabelecer contatos. Amarguradas, mas, ainda, com um resto de vontade em seus corações des-esperados, elas lançam pedidos de ajuda em e-mails, as mensagens engarrafadas de nossos tempos, imaginando que alguém chegará a resgatá-los. Mas, pode ser que acabem bloqueadas por filtros de segurança sem alcançar as pessoas certas. Ou Erradas.

Faz tempo que passei a considerar que manifestos são lidos pelas pessoas “erradas”. Da mesma forma as palestras políticas são assistidas por aqueles que não precisariam estar no recinto. Quem freqüenta estes lugares já compartilha das idéias expostas. Aqueles que precisariam conhecê-las só saberiam da existência se as mensagens chegassem até eles. Por um breve momento que antecede ao desligamento fatal, elas poderiam ser afetadas por existências estranhas ao seu ser. Problema tão antigo quanto o pensamento que gerou a noção de um mundo completo, sem nada exterior a ele mesmo. Um todo onde emoções e idéias em isolamento geram a sensação de segurança de um Eu em-si-mesmado. Eu maiúsculo. Seguido de um ponto. Final.

Serão as ideologias que perambulam entre nós a extensão social deste Eu cheio de si? Completo. Sem exterioridade. Sem os incômodos de idéias externas que causariam a necessidade de reorganização caso pudessem penetrar naqueles mundos cristalizados.

A ideologia não conhece o diálogo, a ideologia só conhece a si mesma. Tal qual o fundamentalismo religioso ela aspira a ser Leviatã. Monstro devorador de qualquer fato capaz de agitar o modo próprio do seu pensar. A ideologia encarna a verdade e não suporta dar um passo além de si mesma. No extremo de sua falência, por não conhecer a mudança, ela termina numa implosão que a transforma em montoeira de tijolos. A falência das ideologias deixa atrás de si um rastro de destroços que o anjo da história olha boquiaberto.

Mudo de horror e impotência, impossibilitado de voar para bem longe, o olhar esbugalhado, ele não acredita no que vê. A ventania que sopra do Éden mantém as suas asas escancaradas e imóveis. Talvez ele tenha aberto as asas para abraçar os humanos quando saíram do Éden. Neste gesto irrefletido, o Talmud ensina os anjos têm uma capacidade de raciocínio bem menor que a dos homens, ele foi aprisionado no vendaval gerado pelo guardião do paraíso. Rodopiando a espada flamejante o guardião do Éden impede que os humanos voltem a perturbar aquele mundo trancafiado em sua paz. Sem opção eles vivem do suor do trabalho e do rosto, suor de Eva parindo filhos, das mãos transpirando quando experimentam o primeiro medo.

Enquanto o olhar do Anjo de História abarca o redemoinho de rupturas e catástrofes que começa no Éden de um passado distante, nós nos agarramos a restos de verdades. Ilhados sobre escombros flutuantes, temos uma percepção parcial dos acontecimentos. Enquanto o anjo percebe a constância de um tempo sem garantias os humanos imaginam longos processos cheios de lógica e racionalidade. Foi isto que nos ensinaram nas aulas de história, nas cartilhas das ideologias, nas promessas das religiões, nas conversas de nossos pais, e,até mesmo,em certos divãs de psicanálise. Onde o anjo vê rupturas e acasos, nos vemos um progresso caminhando em linha reta.

A Dificuldade de Pensar.

A mente humana não suporta conviver com a existência simultânea de sentimentos e pensamentos contrastantes. Freud percebeu esta realidade da mente e propôs que fosse chamado de caráter o resultado do esforço de anular os sentimentos opostos que existem dentro de cada ser humano. Em grego caráter quer dizer marca. A marca do formão que penetra na madeira e deixa um sulco em seu caminho.

Admitir a existência simultânea de sentimentos opostos sem dizer que se trata de uma contradição, implica num esforço de acolher a diversidade dentro de si. O resultado desta tendência UMnificadora do pensar se revela na facilidade com que supomos que o bem esta do nosso lado e deixamos o mal para os opositores. Existe alguma possibilidade de escapar do caráter que engessa a vida numa seqüência repetitiva sem variações? Se a resposta for sim, teríamos que admitir que a chance de encontrar uma saída para os conflitos humanos passa pela capacidade de submeter a verdade unilateral da ideologia à violência do diálogo. Diálogo significa violência por implicar em renúncia dolorosa a um eu cheio de si que as ideologias, os fundamentalismos ou as teorias e as crenças sempre põem a venda no bazar das certezas. Olhar um acontecimento, pessoal ou histórico, por ângulos opostos ao mesmo tempo, é como admitir que amor e ódio não se anulam e vivem como forças contemporâneas dentro da mesma pessoa. Mais fácil é ditar verdades como as palavras de ordem das manifestações públicas. É preciso perguntar se estas palavras dão ordem aos que protestam ou a quem escuta o protesto? Mas, do que adianta tanta reflexão quando se trata de assuntos que envolvem judeus, muçulmanos, e cristãos em guerra sobre um mar quase parado cercado de história?[1]

A mensagem de Eva e o detalhe onde mora o diabo.

“Paulinho, onde andas? O que vc está achando de tudo isso? Vamos organizar um debate sobre o assunto? E essa carta ai, vc recebeu? Beijos, Eva”

Um dia depois de ter recebido do Kibutz Nachshon, o pedido de socorro escrito pelo Jayme Fucs Bar, Eva me reenviou o apelo de uma pessoa envolvida na mesma tormenta que o Jayme. Era uma carta do cineasta Silvio Tendler, diretor do filme Utopia ou Barbárie, recém lançado nos cinemas. Titulo que me fez lembrar Socialismo ou Barbárie, uma antiga revista dos tempos em que era fácil afirmar de que lado estava o universo da salvação e onde começava o sinistro mundo do diabo.

Dias antes do “tudo isso” que Eva me perguntava, eu andei navegando em pesquisas na internet. Na volta de Israel em um vôo da Air France, no inicio de Maio de 2010, folheando a revista “Le Nouvel Observateur” dei de cara com um título inusitado: Para Salvar Israel. Através dele soube que intelectuais judeus europeus lançaram um manifesto chamado Appel à La raison, um apelo à razão e, assim que cheguei em casa fui conferir no site indicado. Gostei daquelas pessoas que não temiam declarar de publico o seu amor a Israel mesclado à preocupação pelo seu futuro.

Entre as assinaturas do manifesto identifiquei Henri Atlan. Trata-se de um cientista e co-participante do chamado “pensamento da complexidade”, professor em Paris e Tel Aviv, é um autor que me influenciou profundamente. A sua presença junto ao filósofo Bernard Henry Levy deu ao manifesto a legitimação da urgência que nos sacode a todos, intelectuais ou não, que se consideram conectados com o estado de um Israel que amamos. Procurando saber a repercussão do manifesto através da edição digital do jornal Haaretz, descobri a flotilha que se organizava na Turquia e resolvi segui-la.

Lá pelo segundo dia de viagem soube da proposta encaminhada por Noam Shalit, pai do soldado Guidon Shalit raptado pelo Hamas quatro anos atrás e mantido incomunicável até hoje. Noam propôs aos membros da esquadra da paz uma cooperação bem interessante. O pai de Guidon Shalit é hoje figura pública em Israel à frente de um movimento que pressiona o governo israelense a uma permuta do filho seqüestrado por todos os prisioneiros exigidos pelo Hamas. Mesmo aqueles que são assassinos comprovados. O pai do soldado pedia que flotilha pacifista levasse algumas cartas da família para o seu filho em troca do seu apoio publico aos objetivos da esquadra.

Idéia perfeita. Ela teria uma enorme repercussão aumentando o arco pacifista empenhado em terminar uma guerra que nunca para de começar. Ao mesmo tempo conferia aos pacifistas marítimos um grau de legitimidade que eles não possuíam entre o púbico de Israel. De repente, o jogo viraria. De desafiadores da política Israelense eles passariam a ter aliados dentro do estado judaico.Uma quinta coluna do bem, disposta a apoiar um grupo com o qual discordavam demonstrando mais uma vez que a paz pode fazer mais que a política. Eis ai um daqueles fatores externos que embaralham a organização de um mente e promovem o seu avanço. Exatamente o que aprendi anos atrás com Henri Atlan em seu livro “Entre O Cristal e a Fumaça” onde tratava da auto organização do seres vivos.

O fator externo que penetra num sistema obriga-o a sair de seu modo cristalizado de ser e a se reorganizar de uma maneira diferente. Assim, graças a influência dos acontecimentos somos forçados a novas organizações para dar continuidade a um processo chamado vida. O mesmo Atlan que encabeçava o manifesto que me levou a descobrir a flotilha me permitia pensar na importância do que estava acontecendo. Afinal, como Gilad Shalit não é um prisioneiro de guerra, e como a flotilha estava claramente do lado do Hamas, não seria considerada inimiga. Como sabemos, ele foi seqüestrado em Israel e mantido desde então isolado o mundo desde antes da invasão de Gaza. Ate a Cruz Vermelha Internacional nunca teve acesso a ele. Realista o pai de Shalit não pedia a flotilha intermediasse a sua libertação, só queria a entrega de cartas. No dia seguinte descobri que o pedido fora rejeitado. Fiquei cabreiro.

Judaísmos Humanistas?

Humanismo judaico foi o termo que vi nas duas mensagens que transcrevi. Tanto o Silvio Tendler, aqui do Brasil, em seu manifesto de exigências ao presidente de Israel, quanto o Jayme, no coração do conflito em seu grito-de-alerta-pedido-de-ajuda, utilizam o termo Judeu Humanista. Jayme chama o seu email de “Desabafo!”. Palavra que indica pensamentos e emoções contidos que, subitamente, se libertam sem que a pessoa tenha domínio sobre aquela transformação. Elas vêm à tona de maneira desordenada e repentina criando a descontinuidade num tempo que parecia avançar dentro de uma razão lógica. A força do desabafo faz pensar que a história pessoal não caminha em linha reta. O tempo do desabafo é o anjo súbito[2] de um repente inesperado. Força emocional capaz de gerar uma experiência fundadora na vida de alguém ou uma revolução na vida de um povo. Uma visão de tempo que se apóia na tradição judaica. Tempo anacrônico quando a transformação messiânica irrompe dentro da história trazendo o mundo-por-vir para um presente inesperado. Força que se reflete no texto sem cuidados com a gramática, o estilo, a escrita bem pensante. O texto de Jayme transmite na forma o conteúdo do que tenta dizer em palavras incapazes de receber e repassar a força do seu sentimento.Escrita nervosa e cheia de pressa. Emoção que transborda o limite existente entre fala e escrita, até se consumar num grito em maiúsculo. Como se letras minúsculas ficassem apertadas para conter a vontade e a determinação do Jayme em fazer ouvir o seu desejo de instaurar a paz antes da política. Mas, sabendo que não possui este poder messiânico, ele transforma o seu desejo de paz em apelo poliglota e nos convoca a participar.

Basta! Halas! Dai! A Violência! Usando três línguas na tentativa de alcançar ouvintes imaginários, Jayme busca ultrapassar limites “falando” na língua daqueles que não podem ler o que escreve. É através do limite que procura impor à VIOLÊNCIA que ele quer envolver-nos na tragédia e na sua redenção. Como ela não depende só daqueles que sabem hebraico, é preciso também que os falantes do árabe tomem parte neste ato onde não há acusações, mas, tão somente, responsáveis. Para que a energia do desabafo possa parir um momento novo capaz de irromper no estado das coisas, é preciso esquecer a distinção entre mocinhos e bandidos. Querendo a participação dos co-responsáveis na Sulcha que ele pretende organizar, o banquete que sela a paz entre inimigos, Jayme escreve em negrito gritante: Halas! Daí! No ultimo grito, “A Violência”, falta uma crase no A e uma virgula antes. O que lhe dá um sentido de quem grita para chamar a atenção de todos aqueles que não vêm o que está acontecendo. (Olhem, olhem) A Violência esta entrando pelas janelas de minha casa cercada de flores no Kibutz Nachshon.

Dai! É palavra que segundo a tradição compõe um dos nomes de Deus, El ShaDaí transformado pela tradição em EL She Daí, o Deus que (diz) basta! Dai,basta, até aqui eu vou, mas daqui em diante é com vocês. Interpretação que nos remete a Nachshon, personagem que dá nome ao Kibutz onde mora o Jayme. Segundo tradição atribuída ao Rav Tarfon que viveu na época da revolta contra Roma, Nachshon teria sido o primeiro a confiar em Moisés e, dando o passo em direção às águas do mar vermelho, possibilitou a realização do milagre. Eis aí o humanismo judaico em sua vocação de colocar o último milagre, o passo humano em direção á água, em importância igual aos atos divinos que não se realizariam sem ele. Não fosse Nachshon não teríamos presenciado o milagre da abertura do mar e a libertação final dos hebreus.

A Carta do Silvio Tendler

Ainda lembro do Zé Eduardo Baeso Basili nos tempos da ditadura. Professor amado pelos alunos pelo seu método de dar aulas de história desenhando no quadro caricaturas dos eventos e dos personagens de quem falava, ele costumava dizer que o Fascismo é condição natural no homem e a nós competia combatê-lo. Seu argumento era que se tratava de uma posição frente a vida e ao pensamento que se manifestava em todas as ideologias políticas e em cada um de nós. O bicho homem tenta reduzir tudo que lhe pareça complexo à simplicidade imediata da certeza dando voz ao seu Fascismo totalizador. Apesar dos anos e de tantas leituras sofisticadas, nunca esqueci deste ensinamento do meu camarada. Só fiz aprimorá-lo. Anos mais tarde reencontrei o mesmo raciocínio no artigo do Freud que não conhecia naquela época.

No seu texto Silvio Tendler acusa Israel de opositor da paz, e sugere que o governo israelense receba o premio Jim Jones (aquele que realizou um suicídio coletivo de seguidores na selva amazônica da Guiana) e o chama de “genocida”. Dizer “genocida” induz inevitavelmente a pensar em nazismo. Nunca é demais lembrar o perigo da indução como arma da propaganda política que os pensamentos totalitários sempre foram expertos em utilizar. De Goebbels aos EUA passando por Beria e quem mais desejarem. Manobras fundamentalistas que nós, humanos e voluntaristas, utilizamos por causa da dificuldade de superar a certeza ideológica e de não banalizar o uso das palavras por conta de arroubos de verdade. Refiro-me a “genocídio” e “nazismo”. Palavras que pipocam com a mesma desconsideração daqueles que declaram que o holocausto nunca existiu. Se olharmos para o sec. XX somente Alemanha e Turquia (que trucidou os armênios da mesma forma que dizima o povo Curdo neste momento em que escrevo) são lembrados na história pela ação de assassinar metodicamente uma população civil em busca de seu extermínio físico.

Quando, em seu ardor justiceiro, o cineasta sugere um tribunal de “Nuremberg” para o ministro Liberman ele se coloca a disposição daqueles que escondem as suas intenções reais sob o manto protetor de uma discussão politica. Se os israelenses são fascistas, nazistas, cometem holocausto e instauram um apartheid, fica implícito que a guerra é a única maneira de lidar com esta gente. Num ato de franqueza muitas pessoas aqui no Brasil deveriam declarar o que defendem em seu íntimo. É preciso que eles admitam que no fundo consideram que a solução final (cuidado estas palavras contêm um vírus que visa induzir e seduzir o leitor) do conflito é apagar Israel do mapa.O que, sem duvida, não é o pensamento do Silvio. Nuremberg, nazismo, holocausto tal qual Shoá, são palavras que deveriam ser cuidadas para não perder o seu poder diferenciador e só mencionadas acompanhadas de dados concretos que não as deixem soltas como se fosse uma saraivada de bombas capazes de assassinar fatos. É preciso cuidar-se para não induzir na tentativa de tentar seduzir. A sedução é sempre uma relação de uso onde o outro é objeto sem vida e sem direito a ela.

Concordo com o Silvio quando afirma que precisamos que os bons se unam em todos os lugares do mundo. Eu gostaria de estar entre eles embora não saiba a quem ele se refere. Será que bons são àqueles intelectuais italianos que mês passado, numa feira de livros em Turim, tentaram boicotar e expulsar o escritor pacifista Amos Oz? Foi Humberto Eco quem saiu em sua defesa, enquanto o júri popular deu o prêmio de melhor escritor ao romancista israelense. Alguém sabe por que ainda não foi agraciado com o Nobel de literatura, embora figure na lista há anos? Ou serão boas as pessoas que Silvio teme que venham a nos considerar maus brasileiros confiáveis e de esquerda do modelo PT, caso não sejamos os primeiros a demonstrar o quanto somos judeus bons e confiáveis? Serão os bons aqueles que só se lembram da carteirinha de judeu em situações onde precisam se diferenciar dos maus e mostrarem que não têm nada a ver com os fascistas georgianos? Neste caso, devo declarar que tenho sido muito mau como humanista judeu.

Se acreditamos em um Judaísmo Humanista seria bom considerar que na origem desta cultura já se pensava na idéia que o mal e o bem são inseparáveis. Idéia presente no discurso bíblico onde Isaias falando por deus afirma “Eu crio a luz e produzo as trevas faço a paz e produzo o mal, eu sou IHVH criador de tudo isto”( Isaias 45:7). Pensamento radical por afirmar que o mal não está nos outros. Texto radicalizado pelo Mestre Ball Shem Tov quando ele o ensinou da seguinte maneira: “não existe um homem justo sobre a terra que faça o bem”. Ou seja, a melhor intenção humana está sempre atravessada pelo mal. Se este for o humanismo judaico do Silvio Tendler, estamos todos na mesma utopia do mesmo humano onde não existiria mais o “ou um ou outro”. Um Humanismo Judaico aponta para a multiplicidade de forças em cada um de nós,convivendo ao mesmo tempo e sem exclusão subvertendo a ordem do “ou um ou outro”.

Seguindo este principio talvez fosse possível apreçar a construção do mundo-por-vir( o olam há ba) capaz de acolher tanto o Jayme, quanto o Silvio, tanto judeus, quanto católicos, muçulmanos, ateus convictos e espíritas declarados, tanto os intelectuais europeus quanto as pessoas que compartilham desta idéia, juntado todos na mesma nau da sensatez.

Paz primeiro, política depois?

A ética é uma ótica. O autor desta ideia é Emanuel Lévinas. Um pensador de tamanha importância que Elizabeth Goldwin, professora da universidade de Tel Aviv, assim intitulou um artigo sobre ele: “Se existe algum sentido para o judaísmo do Estado de Israel, ele se encontra em Levinas”. Em outras palavras, ou Israel será levinasiana, ou não será judaica. Mas que judaísmo é este do qual nos fala uma autora israelense quando em Israel a religião judaica fundamentalista adquire força política capaz de influenciar a vida da maioria laica. É deste judaísmo que nos falam a autora e o filosofo Emanuel Lévinas?

Judaísmo não se resume à religião embora, tanto ela, quanto qualquer outro pensamento que se declare judeu, possua as mesmas fontes. A tradição sempre incentivou a idéia que a pratica dos preceitos não esta relacionada à fé e sim a um fazer na vida humana. Uma religião onde Deus diz: Daí, o resto é com você, diz também que a vida é você e são suas as responsabilidades. Não se trata de uma religião para crianças assustadas querendo fazer as coisas certas para serem aprovadas por uma entidade superior ou um amigo.

Trata-se de pensar com Lévinas em um humanismo do outro homem. Não de um outro homem, diferente do de sempre, mas do outro homem, aquele outro que nos convoca para uma dimensão de responsabilidade. Idéia que penetrou tanto no pensamento das religiões monoteístas, quanto em ideologias laicas como o marxismo. O outro, aquele que me antecede em minhas preocupações com o meu próprio eu, eis o cerne da questão presente no projeto humanista criado pelo judaísmo originário. Um outro presente em mim desde os primórdios de minha existência. Foi assim com Caim, é assim com todos nós.

Quando deus se dirige a Caim perguntando por Abel,ele lhe responde dizendo que não era o guardião de seu irmão. Resposta que aponta para um Caim que conhecia a possibilidade de ser responsável por Abel. Ao colocar a resposta daquela maneira, a tradição judaica nos deixa um ensinamento que se espalha ao longo de milhares de outras paginas. Sou sim, sempre, o responsável pela vida do outro homem e, se o mato através de atos ou de palavras, é porque no assassinato vejo a maneira final de negar aquele rosto que desafia o meu desejo de controle do mundo. Por isto, sempre esteve presente no texto bíblico a preocupação com a viúva, o órfão, o estrangeiro, este último, a mais clara encarnação de um outro percebido como estranho e a quem devo transformar em próximo, como nos ensinam inúmeros mandamentos da Torah.

Eis ai o cerne do Humanismo Judaico. O fundamental é isto, o resto são comentários, quem quiser se aprofundar poderá se dedicar ao estudo de milhares de variações sobre o tema. Mas, em estudando, é bom ficar de olho na tendência de assassinar a verdade do outro em nome de ideologias. Como antídoto a tradição nos ensina que devemos sempre estudar em duplas para que, diante da presença limitadora do outro, ninguém se sinta no direito de ditar a verdade. Estudar com um companheiro equivale a admitir no próprio pensamento a presença concreta de alguém que trás para perto o Daí-basta-chalas. Um outro que já se encontra instalado dentro de nós. Desde sempre. Assunto que nos traz de volta a uma pergunta feita no inicio do texto: qual é ,afinal, o remédio violento que hesitamos tomar?

A violência do diálogo.

Em hebraico a palavra GueR se escreve da mesma maneira que GaR. Numa língua sem consoantes, os “pontinhos da escrita hebraica”, as duas palavras ficam reduzidas a GRג ר)). GueR significa estrangeiro, GaR é o presente do verbo LaGuR, morar. Morador e estrangeiro, que mistério terá moldado sentidos tão diversos em escrita idêntica? Ser estrangeiro permeia o imaginário hebreu e dá origem IVRI/Hebreu: aquele que veio do outro lado do rio. Abraão viveu e morreu como Arameu, fato que as preces e a recitação da Hagadá de Pessach repetem tantas vezes “Arameu nômade foi teu pai”. A diferença de Abraão em relação aos outros habitantes com quem entra em contato em suas andanças não é étnica, é ética. O seu modo de viver errante sobre a terra obriga-o a múltiplas negociações com reis e povos estranhos e faz dele um permanente estrangeiro. Diferente de Ulisses que peregrina por terras e volta a sua querida Ática, Abraão desprende-se da casa paterna para errar sem volta.

GaLuT, palavra traduzida por exílio tem relação direta com LeGaLoT, descobrir. Estar a descoberto, sem proteção, eis o sentido hebreu de um desterro sem exílio. Como se o pensar hebreu fosse tributário de uma única idéia fundadora: um estar “descoberto” ontológico que começa em Adão e Eva e atravessa a sua história. Idéia tão presente que, segundo a mística da cabalá, deus acompanha o seu povo para a Galut-desterro sob forma da Schiná, a sua presença feminina. Deus e o seu povo estão igualmente no desterro. Era assim que os cabalistas queriam entender a história sagrada atrelado-a a história dos homens.

Será que a condição do desterrado e do viver descoberto faz o humano abandonar a certeza e criar o diálogo? Será que estamos autorizados a pensar deste modo ao perceber como o nomadismo dos hebreus é toa marcante quanto o seu apego a uma palavra que jamais pode ser capturada pela certeza? Será este o remédio violento que hesitamos tomar e por isto fazemos política? O diálogo se torna violência por que somos obrigados a uma contração em um eu que tudo quer ocupar. Quando contraio os meus desejos de dominação estou repetindo um ato divino, como nos diriam os cabalistas. Um ato de violência que o criador executou sobre si mesmo restringindo seu Ser e criando local para que houvesse mundo, o Tzimtzum, a contração de si mesmo.

É com esta experiência da auto-limitação do eu, que escavamos no ser infantil um inicio de caminho cheio de marcas que nos levará, ou não, à condição humana. Caminho que nos faz sair da biologia em que nascemos em direção à humanização. Levados a fazer parte de uma conversa infinita que nos antecede, é a maneira como cada um ocupa o seu lugar neste bate papo que vai definir o como que seremos. Caminho doloroso onde muitos se enrijecem como cristal enquanto outros se dissipam como fumaça, mas todos, sem exceção, vão assumindo um lugar na conversa infinita. Exemplo desta experiência que nos antecede é o ato fundador do diálogo acontecido entre Abraão e Deus.

Quando Deus avisa a Abraão que vai destruir Sodoma e Gomorra, imediatamente o patriarca questiona o objetivo divino. Em nenhum momento eles mencionam qualquer razão étnica para as suas intenções. O fato implícito no debate é totalmente ético. É em nome de uma ética que Deus quer destruir aquelas pessoas. É também por esta razão que Abraão questiona dizendo que o justo não pode perecer por causa do injusto. Fato que implica questionar a validade de Deus destruir quem quer que seja. Paulatinamente ambos vão recuando em suas intenções até que chegam a um número comum. Se houvessem dez justos as cidades não seriam destruídas. Ou seja, há algo maior do que deus que o engloba e limita o seu poder. Quando Abraão lhe pergunta “O Juiz de toda a terra não fará justiça?” e Ele aceita dialogar, a justiça se sobrepôs ao criador.

Eis aí a violência do diálogo que temos que aceitar para entrar na roda da vida humana. Quando a negamos corremos o risco do fascismo. O Fachio, feixe de varas e machado que simbolizava a lei romana, se torna o mal quando alguém encarna o machado e as varas e se permite cortar cabeças e dar varejadas. Chamar a si a lei é colocar-se acima dela sem curvar-se a algo maior do que o si mesmo, eis o fascismo, a materialização do mal. Nem a deus foi dado este poder. Quando assumo a violência e me esforço a um ato de contração o diálogo se instaura, a paz se faz presente, e a política pode acontecer. Política, o cuidado com a cidade dos homens, só se torna possível depois que assumimos o estado de espírito da paz, a presença comprometida com um próximo que não é o meu semelhante.

Paz primeiro, política depois.

Rio de Janeiro,4 de junho de 2010.



[1] Ver artigo “Um Bibliotecário Escravo” publicado no Blog do “Judaísmo Humanista.

[2] Ver “Aqui também acontecem anjos” publicado no Blog Judaismo Humanista.

Saiba mais…

Tópicos do blog por tags

  • e (5)

Arquivos mensais