MARCADORES TEMPORAIS DO JUDAISMO - Jane Bichmacher de Glasman

MARCADORES TEMPORAIS DO JUDAISMO - Jane Bichmacher de Glasman Apesar do relato histórico da vida do povo judeu apresentar um sentido tão cósmico, sua continuidade cultural-religiosa de três a quatro mil anos talvez seja a mais extensa que qualquer grupo étnico-religioso tenha alcançado. Para o judeu devoto e consciente de sua história, o passado parece tão real quanto o presente, porque ele os concebe como intrinsecamente ligados um ao outro, dotados que são do mesmo propósito moral. No sentido espiritual, o tempo se conservou intemporal! Depois de as doutrinas sobre o Messias, Ressurreição, Juízo Final, terem firmado raízes no solo parcialmente místico da crença judaica durante o período pós-bíblico, também o futuro se ligou ao passado e ao presente, sintetizados que ficaram numa certeza histórica indivisível. Agora, para o povo de Israel, a vida tinha assumido um objetivo grandioso bem delineado, como a planta de um projeto arquitetônico. Poder-se-ia, em conseqüência, concluir apressadamente que, ao aprender “verdades absolutas”, a religião judaica estivesse condenada a um esta- do de permanente imobilidade e estagnação. Mas na verdade, enquanto o povo se agarrava tenazmente às principais doutrinas, princípios, atitudes e práticas tradicionais, sua evolução histórica era contínua, ajustando-se aos novos conjuntos de circunstâncias e às influências culturais do ambiente em geral e do espírito da época; em fase alguma da história judaica sua religião permaneceu estática. Costuma-se estudar e analisar o judaísmo e o povo judeu sob vários pontos de vista: histórico, sociocultural, antropológico, étnico-filosófico, literário etc. Nosso propósito, neste estudo, é destacar o papel dos marcadores temporais como elementos característicos na formação e na permanência da tradição judaica, desde os primórdios da história universal até a história contemporânea, bem como sua ligação com a natureza e sua perspectiva ecológica. Marcadores temporais universais: o calendário Ano lunar x ano solar Desde épocas bíblicas, os meses e os anos do calendário judaico foram determinados pelos ciclos da lua e do sol. Pela lei tradicional os meses seguem o ciclo lunar, desde o Molad (nascimento, conjunção) até o novilúnio seguinte. A tradição judaica reconhece numerosas afinidades entre a lua e Israel. Assim como o Sol representa a potência material reconhecida aos olhos de todos – é o apanágio das nações – a lua, brilho tênue no reino da noite, representa Israel, humilhada entre as nações na noite do exílio. A influência discreta da lua simboliza o lento caminhar das idéias do judaísmo. Mais um exemplo: o desaparecimento e depois a reaparição da lua representam a eternidade de Israel, apesar das vicissitudes. Voltando ao calendário, os meses lunares têm que corresponder com as estações do ano, que são determinadas pelo ciclo solar, devido às festividades judaicas. Pessach, por exemplo, tem que cair sempre no mês de Nissan e coincidir com o princípio da primavera e Sucot, a festa da colheita, celebrada em Tishrei, tem que coincidir com o outono (em ambos os casos, no hemisfério norte). Pode-se então definir o calendário judaico como luni-solar, em contraste com o calendário civil ou gregoriano, que é puramente solar e no qual os meses perderam toda a correspondência com o ciclo lunar. Da mesma forma, o calendário judaico é muito diferente do maometano, o qual é puramente lunar, e no qual cada mês “migra” pelas quatro estações até completar o ciclo lunar de 33 anos. Em contraste com os dois sistemas citados, o gregoriano e o maometano, o calendário judaico tem que atender dois requisitos – ser solar e lunar. Esta é a razão de sua relativamente complexa estrutura. Como o ano solar de 365 dias é aproximadamente 11 dias maior que 12 meses lunares, o calendário judaico tem que resolver o problema de balancear o ano solar com o lunar. Um ano somente lunar causaria um deslocamento das festas, que acabariam, pouco a pouco, por cair em estações diferentes daquelas para as quais foram prescritas. É para remediar este inconveniente que se agrega, em certos anos, um mês suplementar. Têm-se pois anos comuns de doze meses (353, 354 e 355 dias) e anos embolísmicos, quer dizer, de treze meses (de 383, 384 e 385 dias). O calendário judaico Em épocas remotas da história judaica, encontrou-se a seguinte solução prática: os começos de meses eram determinados por observação direta da lua. Os novos meses eram santificados e seus inícios anunciados pelo Sinédrio (Sanhedrin), a corte suprema de Jerusalém, depois que certos observadores testemunhavam haver visto o novo crescente e, logo que esses testemunhos eram examinados rigorosamente, eram confirmados por cálculos e inteiramente aceitos. As comunidades judaicas da antigüidade eram notificadas sobre os começos dos meses (Rosh Chodesh) pelo acendimento de fogueiras noturnas em cima das montanhas e, mais tarde, por mensageiros. Um comitê especial do Sanhedrin, com o seu presidente atuando como seu diretor, tinha como missão balancear o ano lunar com o ano solar. Este comitê, chamado Sod Ha-Ibur (conselho do calendário) calculava o princípio das estações (tekufot) com base em dados astronômicos transmitidos por tradição oral desde tempos remotos. Quando, depois de dois ou três anos, o excesso anual de 11 dias se acumulava até contar aproximadamente 30 dias, intercalava-se um décimo-terceiro mês (Adar II) antes do mês de Nissan, para assegurar que Nissan e Pessach ocorressem na primavera e não começassem a retroceder até o inverno (verão no hemisfério sul). Não obstante, o cálculo astronômico não era a única base para a inserção do décimo-terceiro mês. A demora na chegada da primavera era outro fator decisivo. O Talmud conta que o Conselho do Calendário intercalava 1 mês quando o trigo nos campos não se havia aberto ainda, quando o fruto das árvores não havia crescido totalmente, quando as chuvas de inverno não haviam cessado, quando os caminhos usados pelos peregrinos que chegavam para oferecer as oferendas de Pessach em Jerusalém não haviam secado. Ou, ainda, quando as andorinhas não haviam crescido para poder voar. O Conselho baseava seus cálculos em dados astronômicos combinados com as necessidades religiosas de Pessach e as condições naturais da Terra de Israel. Este método de observação e intercalação de meses foi usado durante todo o período do Segundo Templo (516 a.e.C. – 70 d.e.C.) e por um tempo após a sua destruição, durante todo o tempo em que existiu um Sanhedrin independente. No século IV, quando a opressão e a perseguição ameaçaram a existência dos judeus, o patriarca Hilel II tomou uma decisão extraordinária para preservar a unidade do povo de Israel. Para evitar que os judeus dispersos por toda a face da terra festejassem os novilúnios e as festividades em dias diferentes, tornou-se público o sistema de cálculo do calendário que, até então era guardado em extremo segredo. De acordo com esse sistema, Hilel II santificou todos os meses, de antemão, e intercalou todos os meses dos futuros anos bissextos, até o dia em que um novo Sanhedrin for reconhecido pelo povo de Israel. Este é o calendário permanente de acordo com o qual todos os Roshei Chodashim (novilúnios) e festividades são calculados e celebrados por todos os judeus do mundo. Da mesma forma que o antigo sistema, baseado na observação, o calendário fixo está baseado no princípio luni-solar. Também aplica certas regras nas quais dados astronômicos são combinados com os requerimentos religiosos. O dia começa ao aparecer das primeiras estrelas e não a partir da meia-noite: eis por que o Shabat começa na sexta-feira à noite e acaba no pôr-do-sol. As festas são determinadas pelas fases da lua. Muitas das festas caem no dia 14 ou 15 do mês lunar, isto é, na lua cheia. Sucot cai no dia 15 de Tishrei; Rosh Hashaná la-Ilanot a 15 de Shevat; Pessach a 15 de Nissan etc. Os meses do ano judaico Como a economia da sociedade judaica primitiva era agrícola, os primeiros calendários refletiam claramente os interesses especiais e as ocupações ligadas ao solo. Um dos calendários hebraicos mais antigos, rudimentar na forma, foi descoberto por arqueólogos há muitas décadas, numa elevação perto do local da antiga cidade de Gezer, na Palestina. Se bem que parte da inscrição na pedra fosse indecifrável, o que podia ser lido fazia referência clara a oito meses, à maneira de almanaque de fazendeiros: um mês da colheita das frutas; um mês de plantio; um mês de pós-grama; um mês de colheita do linho; um mês da colheita da cevada; um mês de tudo o mais; um mês de podar as vinhas; um mês da colheita dos figos. Conhecem-se hoje apenas alguns nomes bíblicos dos meses: Aviv e Ziv na primavera; Bul e Etanim no outono. Os nomes dos meses lunares são de origem babilônica e a cada um corresponde uma constelação do zodíaco. Seus nomes são: Nissan, Iyar, Siván, Tamuz, Av, Elul, Tishrei, Cheshván, Kislêv, Tevet, Shvat, Adar. A Cada dois ou três anos, intercala-se após o mês de Adar, um 13º mês, o Ve-Adár ou Adár Sheni. Cada ciclo lunar dura aproximadamente 29 dias e meio. Como é impossível estabelecer meses compreendendo uma fração, eles têm alternadamente 29 ou 30 dias (salvo Cheshván e Kislêv, que têm às vezes 30 dias). As festas judaicas e sua ligação com a natureza As festas judaicas têm, em geral, um triplo sentido: além de comemorar um fato histórico e metafísico, marcam uma efeméride agrícola ou natural. Por exemplo, Pessach (Páscoa) comemora a saída do Egito, tem o significado da passagem e da libertação e é a festa da primavera. Sucot, a festa das Cabanas, lembra os 40 anos em que os hebreus moraram acampados durante a travessia do deserto, mas tem também o propósito de fazer lembrar (como toda festa judaica) não apenas um período histórico, mas atualizá-lo com um objetivo ético profundo. Da mesma forma como em Pessach lemos na Hagadá que devemos sentir-nos como se tivéssemos acabado de sair do Egito (o que representa o redimensionamento temporal responsável pela manutenção milenar do judaísmo) e também de nos questionar acerca do sentido da liberdade humana (somos livres hoje? ), em Sucot é o momento de se refletir sobre o nosso semelhante desfavorecido, o sem-teto: devemos sair de casa e habitar, durante uma semana, numa cabana totalmente exposta à ação da natureza – seu teto deve ter aberturas pelas quais seja possível ver o céu. Se por um lado o judeu assim manifesta seu desejo de colocar-se diretamente sob a proteção Divina, por outro, Sucot serve como exemplo de como o judaísmo pede mais que pensamentos ou verbalizações – requer ação. E a experiência física da Sucá deve levar a uma conscientização social, base ética de solidariedade, geradora de uma ação pela justiça social. Um outro exemplo interessante se refere ao Ano Novo. Na verdade, no Talmud (Mishná, que abre o tratado de Rosh Hashaná), existem 4 datas que têm o significado de um Ano Novo: 1) 1º de Nissan – por comemorar o período dos Reis, a organização dos festivais e a contagem dos meses (que tem um significado interessante: por ser o mês de Pessach, só tem sentido para o homem a contagem do tempo a partir de sua libertação); 2) 1º de Tishrei – Ano Novo agrícola, com referência à observância do ano sabático e do jubileu; 3) 1º de Elul, para o dízimo do gado; e 4) 15 de Shvat, o Ano Novo das Árvores. A Mishná (Rosh Hashaná 1.1) se refere a Tu Bi-Shvat como o Ano Novo das Árvores porque nesse dia termina o inverno, cessam as precipitações pluviais e surgem os novos brotos. Assim como as pessoas são julgadas em Rosh Hashaná, as árvores o são em Tu Bi-Shvat. A Torá especificamente proíbe cortar ou danificar uma árvore que dá frutos (Deut. 10:19). Também é proibido cruzar árvores em crescimento para produzir uma nova classe de frutos. O 10º dia do mês de Shvat se chama Tu Bi-Shvat dado que as letras “tet vav”, que formam a palavra “tu”, têm o valor numérico quinze. Um antigo costume era plantar um cedro por cada filho varão que nascia e um cipreste para cada menina. Com o passar dos anos, quando esses jovens se casavam, os ramos das árvores plantadas em sua homenagem eram usados para decorar a “chupá” (dossel sob o qual se realiza o casamento). Dessa maneira, a árvore era associada com o ciclo da vida de um judeu. Hoje em dia, em Israel, é costume plantar árvores porque, à margem das razões tradicionais, este ato é uma forma de inspirar as pessoas a se sentirem mais próximas de sua terra. Tem também a finalidade de melhorar a paisagem por meio do reflorestamento. Tu Bi-Shvat se celebra preparando uma mesa com variedades de frutos, especialmente as sete espécies enumeradas na Torá como produtos especiais de Israel: trigo, cevada, uvas, figos, romãs, azeitonas e mel. Outro costume é ter 15 frutas diferentes na mesa para simbolizar o 15º dia do mês de Shvat. Além destes frutos, busca-se uma fruta da estação, que não se tenha ainda comido durante o ano para recitar a bênção de “Shecheianu”. © Jane Bichmacher de Glasman Professora da UERJ e do ISTARJ
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